(pt) Burocracia acadêmica: as relações de dominação nos laboratórios e universidades - OASL1
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Sábado, 19 de Junho de 2021 - 08:57:14 CEST
Com o avanço da covid-19 e o desenvolvimento de vacinas para seu combate, fica
evidente o valor social do trabalho das e dos cientistas envolvidos nessa função.
Apesar do assunto estar em alta, quem de fato são as pesquisadoras e
pesquisadores? Há relações de dominação interna dentro dos laboratórios e
universidades? ---- Sem levar em conta aspectos políticos, a função do
pesquisador é, basicamente, avançar a fronteira do conhecimento científico em
alguma área específica. Para isso é preciso estar constantemente atualizado/a
sobre os últimos desenvolvimentos na sua área de atuação, refletir criticamente e
teorizar levantando novas hipóteses, testar e validar as novas ideias para então
formalizar e documentar os avanços e descobertas.
O que é demonstrado para a sociedade, em geral, são entrevistas com responsáveis
por projetos de grande impacto na sociedade, em sua maioria professores chefes de
departamento de grandes universidades, ou seja, o setor mais próximo das
estruturas de poder das universidades. Em muitos casos, professores que se
especializam na manutenção de seu capital político dentro das burocracias
universitárias, e há muito não se dedicam integralmente a suas pesquisas. Desta
forma, assim como hoje não se espera que um diretor de indústria saiba como
operar o maquinário da empresa que dirige, também não é a figura no alto da
hierarquia acadêmica que, de fato, realiza a pesquisa. Essa tarefa é cumprida por
suas alunas e alunos, orientandos/as etc. Que afinal quem são?
Hierarquia
O professor responsável por um grupo de pesquisa costuma ter sob sua orientação
alunos/as de iniciação científica, de trabalhos de conclusão de curso da
graduação, pessoas no mestrado, doutorado e pós-doutorado. Responsável, também,
por delimitar as linhas de pesquisa do grupo, o professor tem a palavra final
para todas as decisões envolvendo o grupo, já que sua assinatura é exigida em
toda e qualquer formalidade relacionada ao grupo. Assim, é comum que vários
alunos e alunas participem de um mesmo projeto nas suas diferentes fases, de tal
forma que as responsabilidades são divididas conforme a hierarquia colocada entre
os orientandos e orientandas.
Essa hierarquia é baseada no argumento do tempo de experiência, no qual, segundo
a sequência colocada anteriormente, a iniciação científica é o primeiro passo e o
pós-doutorado o último passo antes da posição do professor. Essa forma de
organização é refletida pela remuneração de cada posição, que normalmente é
proveniente de agências governamentais e tem seus valores tabelados[1], no
prestígio político e no posicionamento nas decisões dentro das estruturas de
poder do Estado.
Apoiando-se na hierarquia apresentada, os pesquisadores em posição superior
repassam tarefas julgadas de menor demanda intelectual* para as posições
subalternas, de forma que exista uma base que de fato gerencia e mantém o
funcionamento dos laboratórios de pesquisa no seu dia-a-dia. Gerando assim o
descompasso observado no qual o professor responsável pelo grupo não possui
familiaridade com a operação dos equipamentos do seu laboratório. Além disso, vem
crescendo no país a utilização de pesquisadoras e pesquisadores como força de
trabalho especializada barata. Com os crescentes cortes de verbas e repasses para
as agências de fomento e universidades, a falta de contratação leva esses
professores em posições de direção a impulsionar políticas de contratação de
estagiárias e estagiários da graduação para cumprirem atividades
técnico-administrativas, e professores/as temporários com contratos extremamente
precarizados, os quais fazem o trabalho de docência e orientação, enquanto os
professores titulares fazem o trabalho político dentro das burocracias e de
divulgação para a sociedade.
Outras diversas problemáticas surgem dessa forma de organização, já que são
criadas métricas arbitrárias para avaliação do mérito individual, mas existe
ainda um agravante que é a falta de incentivo à pesquisa por parte do Estado e do
setor privado, muitas vezes ratificada por esses mesmos membros da burocracia
universitária que compõem as estruturas de poder, e mantém relações próximas com
os gestores do Estado e políticos vínculados aos partidos da ordem. Nesse
sentido, no ambiente do trabalho de pesquisa se entrecruzam mecanismos de
dominação cultural-ideológica e dominação político-burocrática[CAB, Capitalismo,
Estado, Luta de Classes e Violência].
O reflexo de políticas liberais como o Teto de Gastos[2,3]e os cortes de repasses
às instituições de fomento[4,5], colocam em xeque a disponibilidade de bolsas
para todos os níveis citados, sendo que os valores das bolsas não seguem o
reajuste mínimo conforme a inflação desde 2013[6]. Na verdade escancara outros
problemas como a dificuldade para renovação e contratação de novos professores,
chegando inclusive ao absurdo de universidades de alto reconhecimento científico
declararem o encerramento de suas atividades[7,8].
O resultado é o sucateamento do ambiente de pesquisa com a perda de profissionais
altamente capacitados para funções de baixa complexidade e mínimo retorno social,
como é o caso do mercado financeiro, ou a fuga de pesquisadores para outros
países. A alternativa na iniciativa privada, por parte das indústrias, não se
apresenta como realidade, já que apenas algumas grandes multinacionais realizam
algum tipo de desenvolvimento tecnológico no país, sendo muitas vezes apenas
adaptações de projetos desenvolvidos na sua matriz, o que é vulgarmente conhecido
como "tropicalização do projeto" - sem contar o processo de desindustrialização
por que passa o país, com o sistemático fechamento de fábricas. É comum, também,
a recusa do pesquisador e pesquisadora na indústria por ser considerado
qualificado demais' para uma vaga[9], o que pode ser traduzido como um
profissional muito caro para a empresa. A pandemia de covid-19 potencializou
ainda mais esse cenário, aumentando a quantidade de desalentados, pessoas que
simplesmente desistiram de procurar trabalho[10].
Barreira de classe
Nesse panorama, as pessoas interessadas no desenvolvimento científico que ainda
encontram alguma esperança, muitas vezes se sujeitam a cumprir parcialmente ou
completamente os projetos sem qualquer subsídio financeiro. Sendo essa mais uma
barreira de classe imposta, já que muitas/os pesquisadoras/es não encontram
alternativa se não jornadas duplas, com empregos paralelos, para conseguir a
renda necessária para se manterem. Isso fomenta a lógica elitista das
universidades brasileiras, tendo em vista que as e os pesquisadores que
permanecem precisam se submeter às demandas das estruturas de poder para manter
suas pesquisas e, quem sabe, entrar nesse grupo restrito de privilegiados. Com a
diminuição da permanência estudantil, quem aguenta toda essa precarização são os
membros das elites que já possuem acordos ideológicos e meios financeiros
externos para se manter pesquisando. Também demonstra o caráter racista e
patriarcal desses setores, com mulheres e pessoas negras nas ocupações mais
precarizadas do ambiente da pesquisa.
Assim como no conjunto da classe trabalhadora, a saúde mental das e dos jovens
pesquisadores é atacada, também, pela diminuição ou total falta de reconhecimento
no seu trabalho. Uma vez que o capital acadêmico pode ser reduzido, de forma
simplificada, à produção de artigos científicos e citações em revistas de renome,
existe uma pressão, por vezes exigência, para a produção de artigos como
resultado dos projetos de cada pesquisador.
Apesar de as pesquisadoras e pesquisadores terem seus nomes publicados junto à
sua produção, é uma regra tácita a inclusão do nome do professor responsável,
muitas vezes como primeiro autor. Com isso, por orientar diversos estudantes, o
professor possui uma produção acadêmica impossível de ser alcançada pelas
pesquisadoras e pesquisadores que de fato estão produzindo os trabalhos.
Resultando assim na concentração do conhecimento de áreas específicas em poucos
grupos que serão privilegiados nas disputas por recursos. Assim como se
privilegiam na reprodução ideológica e das linhas de pesquisa defendidas por eles.
Essa concentração de poder no conhecimento, em conjunto com a escassez de
recursos, facilita a cooptação por parte da iniciativa privada para a execução de
projetos do interesse exclusivo de algumas indústrias, sendo o interesse público
deixado para segundo plano. Esse esquema é cada vez mais incentivado pelo Estado,
que garante redução tributária às empresas que realizarem projetos em parceria
com universidades. O que foi justificado como uma aproximação entre universidade
e indústria, na verdade, se mostrou como repasse direto de recursos públicos para
a iniciativa privada e posicionamento dos grupos de pesquisa como reféns dos
interesses de empresas.
Pelo povo e para o povo
Como demonstrado nos trabalhos de combate à pandemia de covid-19, a pesquisa não
pode ser guiada pela rudimentar lógica capitalista. A ciência deve ser feita pelo
povo e para o povo, para que não se torne mais uma ferramenta de exploração por
parte dos de cima, mas sim uma ferramenta de emancipação popular. Como já disse
Malatesta, "Em nosso programa está escrito não somente pão para todos, mas também
ciência para todos. (...) A ciência, como o pão, não é um dom gratuito da
natureza. É preciso conquistá-la com esforço, e nós lutamos para criar condições
que possibilitem a todos esse esforço."[11]
Referências:
[1]https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/bolsas/prestacao-de-contas/valores-de-bolsas
[2]https://epoca.globo.com/ideias/noticia/2016/10/teto-de-gastos-o-que-pec-241-muda-na-educacao.html
[3]https://diplomatique.org.br/a-educacao-perdeu-r-326-bi-para-a-ec-95-do-teto-de-gastos/
[4]https://jornal.usp.br/universidade/politicas-cientificas/orcamento-2021-coloca-ciencia-brasileira-em-estado-vegetativo/
[5]https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/22/cnpq-vai-pagar-so-13-das-bolsas-aprovadas-em-edital-e-frustra-cientistas.htm
[6]http://www.anpg.org.br/04/02/2019/o-reajuste-das-bolsas-de-pos-graduacao-e-urgente-e-necessario/
[7]https://diariodorio.com/ufrj-pode-fechar-as-portas-no-segundo-semestre-por-cortes-de-verba/
[8]https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/brasil/2021/05/corte-de-verba-deixa-as-universidades-na-penuria.html
[9]https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44696697
[10]https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57035017
[11]"Anarquismo y Ciencia". In: RICHARDS, Vernon (org.). Malatesta: pensamiento y
acción revolucionarios. Buenos Aires: Anarres, 2007.
*Aqui é possível falar sobre a delegação de atividades julgadas de menor
intelectualidade e também sobre as que exigem um nível mais alto da/do estudante.
Por exemplo, dentro do laboratório, dezenas de vezes fazemos trabalho de
mestrandos/doutorandos e temos que buscar o conhecimento por conta própria, o que
demanda tempo de estudo e pesquisa não-remunerados, pois é como se fosse nossa
obrigação dar conta de toda a estratégia da pesquisa, independentemente do nível
acadêmico em que nos encontramos, e por fim, em boa parte as e os estudantes
envolvidos no laboratório nem chegam a ser mencionados em alguns estudos, apenas
os coordenadores de maior nível acadêmico. O que é super precário para uma
pesquisa que demanda as diferentes experiências e níveis para construir um estudo
e experimento.
https://anarquismosp.wordpress.com/2021/06/01/burocracia-academica-dominacao-laboratorios-universidades/
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