(pt) uniao libertaria: POR UMA CIÊNCIA QUEER E REVOLUCIONÁRIA: UM TEXTO ANTIDOGMÁTICO,Um século a olhar sem ver nada
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Terça-Feira, 6 de Julho de 2021 - 09:35:53 CEST
Quando os europeus chegaram ao interior de África, rapidamente se maravilhariam
com as suas paisagens e, mais notavelmente, pelos animais que as habitavam, as
criaturas que rapidamente habitariam o imaginário de todas as gerações que se
seguiram, leões, elefantes, gazelas, zebras e girafas. Lado a lado com os seus
soldados, armados com as suas espingardas modernas com as quais conquistariam o
continente, vinham os seus biólogos e naturalistas, armados com uma arma ainda
mais fenomenal: o método científico. ---- Sir William Cornwallis Harris seria um
pioneiro dessa aventura, estabelecendo em 1836 a instituição do safari, da viagem
para o interior selvagem de África, para observar as paisagens, mapear os
terrenos, tomar nota da fauna, alvejá-la e enviar os exemplares para os museus da
Europa, onde ainda hoje as suas magníficas peles estão em exposição. Ao longo do
século seguinte, esse método de fazer as coisas marcharia por África adentro,
armado com as espingardas dos soldados dos impérios. Ao mesmo tempo que nações
inteiras eram enumeradas, conquistadas e dizimadas, as espécies com que
coexistiam eram catalogadas e caçadas, por vezes até à extinção.
Durante o período de dominação imperialista na África, o estudo da sua fauna foi
sempre um objeto de paixão para as elites científicas do velho continente. Os
corpos e comportamentos dos animais que habitavam o continente foram escrutinados
de forma implacável, para decifrar todo o mistério que os cativava nesses
animais, procurando saber os seus rituais de casamento, os seus hábitos sociais,
a maneira como criam os filhos[1]. Após esse século de estudo, o nosso
conhecimento do mundo natural e, por consequência, do nosso próprio mundo humano,
estava sem dúvida muito melhor desenvolvido (a descoberta dos princípios
darwinistas diz tanto quanto isso). Os cientistas da Europa fizeram um trabalho
muito extenso sobre a biologia e sociologia do reino animal. Claro que a única
coisa que lhes escapou à atenção foi acerca da existência bastante comum e
ostentativa de comportamento homossexual em várias espécies de animais, e que de
facto não aparece sequer mencionado nos seus escritos.
De facto, entre os animais favoritos dos cientistas europeus dessa era, os
previamente mencionados elefantes, gazelas, zebras e girafas, sexo e mesmo
relações homossexuais são comuns (especialmente comparados com entre nós humanos,
que claramente temos ainda muito a aprender). 45% das relações sexuais entre
elefantes asiáticos são homossexuais; entre leões, 8% das relações sexuais são
entre machos, e as fêmeas também apresentam comportamentos homossexuais comuns; e
as girafas, francamente poderiam ser adotadas como símbolo da sexualidade queer,
com um estudo colocando até 94% das suas relações sexuais como sendo entre machos.
Como se poderá imaginar, os animais não esperaram até ao final do pudor vitoriano
para começarem a ter relações sexuais mais descabidas à frente de seres humanos;
estes comportamentos sempre existiram entre eles e os cientistas europeus terão
observado estes comportamentos, e não os catalogado como tal. E de facto, ao ler
os registos dessa época, rapidamente se descobre que, de facto, os comportamentos
que registamos entre animais como sendo de relações do mesmo sexo (que não são
exatamente descabidos, tendo em conta que se trata de cópula ou fricção até a
ejaculação), eram considerados geralmente como "disputas". Ao mesmo tempo,
notou-se que esses observadores estavam a anotar como exemplos de sexo
heterossexual qualquer interação entre macho e fêmea mais íntima do que um
cheirar o outro.
Na verdade, dizer que nenhum cientista europeu tomou nota do comportamento
homossexual entre animais seria injusto; há na verdade uma exceção à regra que
ajuda bastante no argumento: Ferdinand Karsch foi um entomologista e
antropologista alemão que escreveria o primeiro estudo acerca de homossexualidade
entre animais em 1900, sem dúvida um pioneiro no campo, um visionário mesmo.
Karsch acontecia também ser homossexual, e ter vivido abertamente como tal, o que
levaria o seu trabalho a ser denegrido pelos nazis em ascensão na altura da sua
morte. O único explorador que parece ter notado a evidente homossexualidade entre
animais foi aquele que era ele próprio homossexual e orgulhoso do facto.
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[1]E claro, o mesmo foi feito aos povos africanos que encontravam que, na lógica
imperialista, pouco mais eram do que mais outro animal da savana africana
Apagados dos livros
O trabalho de Karsch, se bem que pioneiro e à frente do seu tempo (reconhecimento
de comportamento homossexual entre animais só apareceria nos anos 60 e uma
revisão genuína dos estudos anteriores só apareceria nos anos 90), não se pode
dizer que ele tenha "descoberto" coisa alguma sobre o comportamento animal. Em
particular porque os autores antigos deixam bastante claro que tinham noção de
que a homossexualidade era tão comum entre animais quanto era entre eles.
Aristóteles descreve casais do mesmo sexo de pombos, perdizes e codornizes, e o
autor do século IV d.C. Horapolo menciona hermafroditismo entre hienas (um mito
comum, devido à estrutura dos genitais das fêmeas, mas que ainda assim ilustra o
conforto com queerness animal).
Na verdade, este apagar da existência queer por parte da ciência, no seu sentido
mais extenso como a acumulação do conhecimento humano, não se cinge apenas à
história natural, mas também à história humana, à história de Aristóteles e
Horapolo, cujas atitudes perante a sexualidade seriam, se bem que diferentes das
nossas, queer no sentido de não serem heteronormativas.
Hoje nós sabemos que o mundo clássico era um que desafia as perspetivas morais da
sexualidade da nossa sociedade, mas isso foi algo que foi simplesmente ignorado
até não o poder ser mais (a derrocada começando em 1907), com o mesmo tratamento
aplicado à biologia sendo aplicado à história e à literatura clássicas: Aquiles e
Pátroclo, sem dúvida o melhor casal da Ilíada, cuja sexualidade Platão fez
questão de discutir em algum detalhe, foram marcados como simples e virtuosos
camaradas, uma imagem que, até recentemente foi a que marcou os seus retratos
culturais. Ao traduzir do grego histórias sobre a vida de Sócrates, a palavra
eros, cujo sentido não deixa muito à especulação, foi traduzida como amigo,
mentor, como se isso fizesse qualquer sentido. Traduções que continuam a ser
usadas nos nossos dias, aliás, a que nunca se deu o trabalho de rever
propriamente, aceitando a sabedoria dos vitorianos.
Se a verdade veio ao de cima, é porque é impossível escrever a história da
Humanidade sem nos incluir nela. Por muito que nos apaguem, por muito que nos
ignorem, por muito que traduzam os seus textos à nossa volta, enquanto nos
ignorarem, a sua narrativa simplesmente sofre de contradições e não consegue
fazer sentido. Ao longo dos últimos dois séculos, os autores que estudaram a
Ilíada, convictos da heterossexualidade de Aquiles, não tinham maneira como
explicar porque razão o personagem tinha reagido de forma tão profundamente
emocional à morte do seu companheiro Pátroclo, uma angústia tão profunda que
Homero teve de fazer Zeus intervir para mediar a sua honra e impedir Aquiles de
quebrar, naquele momento mesmo, os portões de Troia e quebrar a profecia que
ditava a queda tardia da cidade; na cosmologia helénica, uma profecia era algo
tão forte que nem Zeus era capaz de a mover, mas Aquiles, e o seu amor por
Pátroclo, eram capazes de quebrar a força mais poderosa no universo. É impossível
entender completamente a Ilíada sem se aceitar a existência de pessoas queer.
Hoje em dia, comportamentos homossexuais já foram observados em 1500 espécies;
olhamos para a civilização clássica, e para todas as civilizações desta Terra, e
sabemos ver a existência permanente, mais ou menos aceite, de pessoas queer, e do
seu lugar na história. Mas ainda assim, este é um trabalho que está incompleto.
Precisamos de rever os nossos preceitos biológicos, agora que o comportamento
homossexual é aceite; precisamos de reiterar as histórias, agora que não temos
motivo para evitar o tema da nossa existência histórica; temos de voltar a
traduzir os textos, agora que sabemos que homoerotismo não é um erro de
interpretação.
Numa frase: às vezes a ciência é uma mentira.
Os danos da mentira
Os efeitos que o apagar da história, natural e humana, da queerness, tiveram na
nossa comunidade, poder-se-iam resumir a uma frase: fizeram-nos sentir inaturais.
Está no próprio termo queer, o sentido de estranheza, de absurdez. Com a
queerness histórica e natural apagadas, tudo o que restava para ser analisada era
a queerness contemporânea, a nossa vontade e desejo de amar e ser amado, que
sabíamos serem diferentes daqueles da maioria dos nossos companheiros (algo que
já por si causa alienação), mas que, ao estudarmos a história do mundo, nos
víamos rodeados por um vertiginoso mar de aparente heterossexualidade.
A história e a inserção na natureza são os pilares de qualquer comunidade. São o
que nos assenta e dá sentido aos nossos rituais. Com o apagar da nossa história
que sofremos, os pioneiros da nossa comunidade nos tempos modernos viram-se
desamparados de quaisquer fundações, uma condição que parecia querer dar razão ao
argumento feito pelas autoridades científicas da altura: que o que nós tínhamos
nada mais era do que um distúrbio, algo perverso e perigoso, a ser remediado ou
punido pelo bem comum.
Eu nasci quase um século depois do trabalho de Karsch, mais de trinta anos depois
de Stonewall, numa altura em que a História já admitia há muito que os helenos
eram de facto queer e em que a ciência já catalogava muitas espécies como
apresentando comportamentos sexuais intrigantes. E, no entanto, eu cresci a
pensar que a homossexualidade era um comportamento raríssimo, perverso e
completamente inatural, sem exemplos no mundo animal nem na história, sendo a
degeneração mais recente de um mundo a descarrilar. E, portanto, mantive a cabeça
em baixo. Não queria, de todo, causar problemas, nem a mim nem a ninguém.
Creio que o primeiro personagem histórico que soube ser queer foi Michelangelo.
Isso trouxe-me algum conforto. Depois fui aprendendo sobre mais renascentistas,
sobre os gregos (Alexandre o Grande em particular sempre me trouxe muita
alegria), e sobre todos os outros povos deste mundo. Quando li o Épico de
Gilgamesh, não pude deixar de achar que aquela "amizade" entre os heróis me
parecia algo suspeita. Ao mesmo tempo, fui aprendendo sobre pinguins, bodes e
girafas, todos esses animais conhecidos pela sua versatilidade sexual, e fui
compreendendo qual era de facto o lado certo desta questão. Ainda assim, foi-me
mais fácil aceitar o mundo do que me aceitar a mim. Para isso, tive de entender
realmente que somos tantos... E a parte mais triste, é que certamente ainda nos
falta muita gente ter a coragem de se vir juntar à nossa comunidade.
De qualquer forma, o mito da nossa desnatureza teve consequências desastrosas
teve consequências desastrosas para a nossa comunidade. Desse mito surgem todas
as justificações dadas para o massacre que sofremos ao longo do século passado.
Armados com um autoproclamado entendimento científico da nossa condição, puseram
sobre ela o estigma de distúrbio mental e conceberam terapias' com o objetivo de
tentar curá-la', terapias, castrações, lobotomias, choques elétricos, que na
verdade são formas de tortura, que apenas acentuam o sentimento de alienação e
levam muitas vezes ao suicídio.
É comum apontar para o dogma religioso como fonte desta opressão, e sem dúvida
que o reacionarismo das autoridades religiosas teve e tem impacto na nossa
história de sofrimento, mas nos últimos dois séculos, a erosão da autoridade
deste dogma em favor do peso do dogma científico levou a que este dogma fosse
importante na justificação dada ao nosso sofrimento. Os desenvolvimentos na
ciência foram usados para formular oposições à homossexualidade que iam além da
condenação bíblica, que ia perdendo sentido enquanto força social. Os
sociais-darwinistas apoiaram-se das ideias ainda muito subdesenvolvidas da
seleção natural para demonstrar a nossa alegada degeneração.
O fim lógico desse tratamento da nossa condição por parte das autoridades
científicas foi levado a cabo pelos regimes fascistas, que na sua ânsia
modernista, ergueram toda a sua plataforma de ódio nas detestáveis teorias que
passavam como científicas na altura, e que tinham o peso do dogma a apoiá-las. O
Holocausto não foi movido por fervor religioso; foi o resultado de conclusões
chegadas por homens que leram os textos científicos da altura, essas imutáveis
verdades científicas, e deles traçaram um plano para uma sociedade logicamente
melhor. Uma sociedade na qual a nossa doença já não existia.
Esta visão da nossa existência como sendo uma doença teria efeitos nefastos
durante a crise da SIDA, que afetou sempre a comunidade gay com particular força
e que, antes de receber o seu nome atual, ficou conhecida como GRID (gay-related
immunodeficiency), um nome que revela um preconceito importante dos primeiros
anos do seu tratamento: a homossexualidade de muitos dos pacientes por ela
afetados era vista, não como uma condição social, mas como uma patologia de
risco, semelhante a como o próprio ser-se seropositivo faz uma pessoa mais
vulnerável a doenças infeciosas. E também contribuiu, claro, para o silêncio e a
falta de apoio no combate a esta pandemia, a quem foi permitido devorar tantas
das nossas comunidades durante anos, antes de a reconhecerem como sendo a ameaça
que era. Não há dúvidas quanto a isso: a liderança política da nossa sociedade
estava, mais do que disposta, satisfeita por haver um mecanismo natural para
efetuar a nossa matança. Se não Deus, era a natureza que nos vinha corrigir a
imperfeição.
Como já disse, o mito da nossa desnatureza, embora comece a ser desconstruído nas
ciências naturais e na história humana, mantém-se vivo na nossa cultura; eu
certamente sofri por ele, e sei que o mesmo é verdade de outros. Mesmo entre
profissionais médicos, a crença de que a homossexualidade seja uma doença
mantém-se viva entre muitos, e vários textos ainda usados afirmam essa teoria
desconstruída. Existem vários terapeutas, que deviam responsabilizar-se por
assegurar o nosso bem-estar e ajudar-nos no caminho da compreensão, que tudo
fazem para nos assegurar que algo está errado connosco, que devíamos tentar ser
diferentes, que somos patológicos. Isto é verdade quando se trata da
homossexualidade, mas é ainda mais pertinente quando se trata dos membros trans
da nossa comunidade, que muitas vezes recebem, como reação inicial dos
profissionais de saúde quanto à sua vivência, descrença, repúdio e tentativas de
"cura".
O dogma científico serviu, durante dois séculos, como ferramenta da nossa
opressão. O seu método foi utilizado para demonstrar a nossa patologia, para nos
alienar e tratar como dementes, que precisávamos de ser curados, controlados ou,
nada disso resultado, purgados deste mundo, por ato de Deus ou do Homem. E
sabemos também que esta opressão científica não coube só a nós, mas também a
tantas outras comunidades com as quais nos intersetamos: a frenologia e as suas
medições cranianas foram usadas para dar um vigor científico ao racismo que
permeou estes dois séculos; a psicologia e psiquiatria serviram como armas contra
as pessoas neurodiversas, a biologia evolucionária foi usada para justificar todo
o tipo de reacionarismos sociais quanto à posição da mulher na sociedade.
Hoje, para limpar as suas mãos desta desgraça, é comum aplicar-se o termo
"pseudocientífico" em todas estas ideias que vão sendo ultrapassadas; mas vale a
pena lembrar que, quando estas surgiram e foram aplicadas, fizeram-no seguindo os
preceitos do método e a sabedoria do dogma científico. Não estamos aqui a tratar
de teorias marginais populares entre renegados; isto foram tudo métodos e ideias
consensuais entre a comunidade científica e acordados entre os seus grandes
mestres. O inventor da lobotomia, esse maior dos desastres médicos, foi
galardoado com um Prémio Nobel e o seu nome é ainda comemorado no seu país de
origem com um hospital em sua honra em Lisboa!
Efetivamente, os pais da ciência da nossa opressão são os pais de toda a ciência.
A sua obra continua a ser a base do que hoje estudamos. Não será surpreendente,
portanto, saber que o seu dano se perpetua até aos dias de hoje.
A cegueira subjetiva
Que o único observador contemporâneo aos grandes naturalistas europeus da era
imperialista que tenha notado no comportamento homossexual entre os animais que
observava, Ferdinand Karsch, tenha sido ele próprio homossexual, não é
surpreendente, tal como não o é que Aristóteles, cujos métodos e ferramentas para
observação do mundo era muito mais fracas do que a dos cientistas modernos, tenha
conseguido notar esses comportamentos, enquanto esses cientistas sofreram de um
aparente caso de cegueira seletiva durante todo um século.
O que diferencia Karsch e Aristóteles dos cientistas europeus da era moderna é
que eles estavam cientes da existência de comportamento homossexual entre
humanos, e não o viam como sendo algo particularmente alienígena; portanto,
quando observavam comportamentos de atração entre o mesmo sexo nas espécies
animais, não lhes era difícil imaginar de que se trataria, tinham experiência do
que aquilo era e não precisavam de fazer qualquer ginástica mental para encaixar
essa nova observação naquelas que já tinham feito, no seu próprio dia-a-dia. Os
contemporâneos de Karsch, por sua vez, ou eram totalmente ignorantes da
homossexualidade e dos comportamentos a esta associada, ou estavam predispostos,
pelas normas sociais, religiosas e pelo dogma científico herdado dos seus
antepassados académicos, a associá-la a um distúrbio humano, algo de inatural que
era inconcebível encontrar-se nas selvas africanas, onde havia liberdade da
degeneração dos homens.
Isto demonstra uma fragilidade do método científico, que depende, para o seu
funcionamento, de uma objetividade do seu observador. A sua teoria baseia-se na
suposição de que, se um observador humano tratar apenas os dados que lhe são
fornecidos por materiais e medições precisas, e se cingir a estes e a estes
apenas, as suas conclusões, então chegará a um resultado verdadeiro. O que este
século de cegueira subjetiva quanto à homossexualidade no reino animal demonstra
é que o próprio observador e medidor desses dados, não tem como se desligar de
todos os preconceitos que traz consigo, da sua condição enquanto criatura social.
Este observa não de forma objetiva, como o método pressupõe, mas acarretando no
seu olhar todos os preconceitos que a vivência lhe deu. No caso dos naturalistas
da era imperial, um desses preconceitos foi não conseguirem conceber interações
entre animais do mesmo sexo como tendo cariz de atração sexual.
A objetividade, a ideia de que um observador humano possa extrair dos seus
sentidos, por meio da sua razão, conhecimento intocado pela sua subjetividade, os
seus preconceitos, é um pilar no qual descansa o método científico. E é um pilar
que, francamente, deveria ruir. Penso que as experiências descritas até agora
mostram que, de facto, o ser humano se mostrou mais do que incapaz de ser
genuinamente objetivo no seu tratamento do mundo natural, trazendo à sua
observação dele todos os preconceitos da sua sociedade.
Mas fosse esse o legado deste erro, tivesse este cingindo-se a uma fraca
compreensão dos comportamentos sociais das girafas, menos mal seria. Mas o dogma
científico, essa acumulação apoteosada do conhecimento humano, não é apenas
teórica e académica; tem o seu propósito, e muitas vezes tem motivação para ser
recolhido, de cariz político. Abdullah Öcalan, no capítulo de epistemologia com o
qual abre o seu Manifesto por uma Civilização Democrática, avisa: "o objetivismo
não é um conceito científico inocente, longe disso". Como vimos ao discutir os
danos da mentira, os dados recolhidos da natureza, reclamando autoridade do
objetivismo, mas acarretando consigo os preconceitos da sociedade do seu
observador, foram apresentados como prova científica para confirmar na sua
sociedade os mesmos preconceitos que já tinham estado presentes na sua génese.
Como Öcalan o coloca: "Se se investigar a fundo a legalidade objetiva, ver-se-á
que é a versão moderna da antiga palavra de Deus. Nesta objetividade ouve-se o
eco da voz das forças que transcendem a natureza e a sociedade e, se afinarmos
ainda mais o ouvido, chegaremos à conclusão de que essa voz deriva do domínio do
tirano e do abusador."
O método científico serviu como ferramenta para a sociedade opressora de
justificar a si própria a opressão que causava. Que outra justificação poderia
haver para a frenologia? No século XIX, começámo-nos a aperceber da terrível
realidade que Nietzsche anunciou - a de que Deus estava morto, e a que a
autoridade divina já não serviria para justificar os nossos preconceitos. E, como
Nietzsche também profetizou, devido à natureza do Homem, a sua sombra viverá
durante milénios em cavernas; com o fim do poderio da autoridade divina como
justificação para a opressão da vida humana, novas e imaginativas formas de
justificar opressão surgiriam, e bem que surgiram, no século que se seguiu à
morte da autoridade divina. Entre essas justificações, veio a do método
científico: em vez de um padre a interpretar os textos divinos que caíram do céu,
temos um cientista a interpretar as observações cá da Terra!
Nietzsche bem que o disse, que o seu século XIX não seria caracterizado pela
vitória da ciência, mas pela vitória do método científico sobre a ciência. Armado
com a mais simples da falácia, aquela da infabilidade científica, esses
exploradores partiram para a selva, à procura de novas e entusiasmantes verdades.
E para a surpresa de ninguém que prestasse atenção, regressaram com nada mais do
que reformulações das velhas mentiras.
Pegando numa última vez em Nietzsche, a sombra de Deus, da autoridade divina, dos
preconceitos que esta lançou sobre nós, vive ainda, nas cavernas da Humanidade. E
é nossa missão destruir também esta sombra.
O que fazer
A intenção deste texto não é derrubar a procura humana por verdade; ainda
ambiciono saber mais, entender mais, fazer mais, procurar neste mundo por uma
verdade que me aqueça o espírito. Não tenho entusiasmo pelo abandono desta
procura, e por sucumbir ao niilismo, à realização infeliz que não existe sentido
neste mundo, e de que nada pode ser feito para o conceber. O que eu quero é
derrubar os dogmas científicos que foram apoteosados sob a luz de um objetivismo
científico.
A ciência nasceu rebelde; nasceu a questionar o mundo e a fazer frente às
autoridades fanáticas que a detestavam por fazer perguntas difíceis ao esquema
das coisas que eles tinham montado, mas que ruía ao mínimo de pressão da lógica.
Veio para destruir a sabedoria dos sábios e aniquilar o entendimento dos
entendidos. Era revolucionária e era queer (tal como o eram muitos dos seus
primeiros aderentes).
Mas essa ciência, que nasceu como uma contestação à autoridade, tornar-se-ia ela
própria a autoridade a contestar, fruto do próprio processo de transição política
e económica na Europa do feudalismo para o capitalismo e liberalismo. A nova
classe dominante burguesa, não podendo, à semelhança dos seus antecessores
aristocratas e clérigos, justificar a sua autoridade nos preceitos religiosos,
virar-se-ia para o método científico como forma de justificar a sua existência.
Daí que a Revolução Francesa, a revolução liberal por excelência, tenha também
tido uma componente forte de revolução antiteísta em prol da ciência, da razão e
do objetivismo: procurando derrubar o velho fanatismo opressor, criaram uma nova
ordem social, um Culto da Razão, baseado em valores tidos como profundamente
objetivos e científicos. Se Deus morreu no século que se seguiu à Revolução
Francesa, foi substituído no seu trono pela sombra da sua autoridade, sobre a
forma do objetivismo científico, para satisfazer os interesses de uma nova classe
dominante que, por sua vez, tinha usurpado o trono de outra, morta na guilhotina.
Em suma, a ciência veio destruir a sabedoria dos sábios e aniquilar o
entendimento dos entendidos, apenas para o substituir por novos sábios e
entendidos, agora armados segundo a sua própria lógica circular. Isto fica muito
aquém do que se desejava, ficando então a ciência com o papel da religião, de
servir como argumento de todos os conservadores e reacionários deste mundo para
justificar o seu ódio e alimentar o seu preconceito. Todas as novas descobertas
sociais, e todas as grandes revoluções ficam sujeitas a um novo paradoxo: ao se
oporem ao que antes era conhecido, estão-se a opor ao dogma infalível e, pela sua
própria lógica, estão em erro.
Öcalan coloca muito bem esta questão (ênfases minhas): "Não tenciono propor um
novo método nem sugiro o caos, a ausência total de método. Estou consciente de
que existem métodos, formas de interpretação e leis sobre a vida do ser humano e
sobre a natureza no seu conjunto, mas devo enfatizar que, como no método e nas
leis há sempre uma certa essência determinista, a insistência e permanência neles
colocam-nos perante o perigo de negar o progresso e a liberdade. Também não
imagino uma existência sem método nem leis, porém não confio nessa visão do
universo de Descartes reduzida à ordem matemática. A lógica baseada nas
matemáticas e nas leis apresenta-me grandes dúvidas, devido ao carácter perverso
de quem, esgrimindo-as como armas inquestionáveis, apenas as usa para justificar
os seus interesses."
É-nos essencial lembrar que todos os dogmas foram, essencialmente, compilados e
forçados sobre a sociedade, não necessariamente por quem o fizesse cresse neles
(embora seja possível, o ser humano é como vimos, excelente a só ver o que quer),
mas porque estes são do seu interesse. Os dogmas são, na sua essência,
subjetivos, especificamente, são moldados pelo que é útil ao seu ator ter como
verdade inquestionável. A objetividade é um mito, nas palavras de Öcalan, um deus
mascarado e um rei encoberto, desenhada especificamente com o objetivo de
justificar o poder dos poderosos, tal como o dogma religioso o tinha sido antes
dele. De que outra maneira justificar as interpretações disparatadas e opressivas
do culto de Jesus Cristo?
Então, o que devemos fazer? Devemos abandonar todos os dogmas, e abandonar a
própria ideia de que é possível ter um dogma correto. As observações feitas pela
ciência não o podem ser feitas uma só vez e consideradas como certas, mas têm de
ser repetidas, vez e vez sem conta, comparadas com o que se obteve antes e tendo
em conta as mudanças sofridas pela nossa sociedade e pelo nosso olhar. O
comportamento dos animais tem que ser analisado de novo, e as traduções feitas
dos livros antigos têm de ser feitas outra vez e outra vez, para garantir que
cada geração olha para elas mais livre da ignorância dos seus antepassados, mas
ciente do seu próprio preconceito, que gerações vindouras terão também de saber
ultrapassar.
Este perpétuo ciclo de auto-reinvenção é um reflexo da própria natureza das
pessoas queer, da nossa mudança constante e desenvergonhada, da nossa energia
revolucionária para nos mudarmos a nós próprias, por fora e por dentro. É esse
espírito que a ciência deve também saber absorver, mais do que a humildade de
saber que tem de mudar, a vontade fogosa de o fazer, e de ser algo diferente, de
ver as suas fronteiras ultrapassadas e chegar a onde nunca antes tinha chegado.
Apenas esse completo abandonar do dogma, em prol de uma permanente reinvenção do
que sabemos, um constante questionar de tudo, um completo desprezo pela sabedoria
dos sábios e o entender dos entendidos, nos poderá conduzir a uma ciência que, se
não livre do subjetivismo dos preconceitos sociais, então pelo menos, menos dada
a servir de sua justificação e autoridade. Uma ciência que saiba evoluir e
crescer connosco, enquanto nos tornamos também uma civilização mais livre e
democrática.
Termino agora com uma citação de Öcalan, na qual ele liga a análise das
metodologias da verdade ao trabalho político a tomar em frente, dando uma palavra
de ordem que é na sua génese tão queer, que a devíamos adotar como sendo nossa:
"Vivemos um período no qual o amor pela verdade nos aproxima da vida livre; a
palavra de ordem deve ser: A VERDADE É AMOR E O AMOR É VIDA LIVRE!"
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