(pt) caban arquista: A dominação pela relação devedor-credor no capitalismo financeiro - Parte 1 Por Vitor Mateus, militante da FAG/CAB (ca, en, it) [traduccion automatica]
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Quarta-Feira, 2 de Setembro de 2020 - 08:33:03 CEST
A produção de subjetividades individualizadas ---- Ao se pensar o atual momento da elevação no custo de vida e na narrativa da crise, é
fundamental se ter em conta o papel que cumpre aquilo que podemos chamar de mecanismo da dívida. Essemecanismo começa a ser gestado ainda na
década de 1970 e se desenvolve a partir das técnicas de governo neoliberal, culminando na crise dos subprimes em 2008 e se reinventando (com
uma prática ainda mais violenta de expropriação da riqueza produzida coletivamente e aumento da pobreza a nível global) desde então. ---- Ao
contrário do que os noticiários dos oligopólios de mídia retratavam, o fato de que, no Brasil pré pandemia do Coronavírus, mais de 60% das
famílias encontravam-se endividadas (número esse que vem aumentando durante a pandemia, aproximando-se dos 70%) não é uma questão meramente
pontual, tampouco um simples reflexo da "crise" que a economia brasileira vem vivendo nos últimos anos (por "crise" aqui nos referimos ao
relativamente baixo crescimento do PIB nacional). Pelo contrário: o alto endividamento da população de mais baixa renda é parte de um
projeto que favorece descaradamente o acúmulo de riquezas por parte daquele 1% mais rico, que fomenta a construção de uma subjetividade que
interioriza, individualmente, os mecanismos opressores e que permite a captura do porvir, do futuro, dos sujeitos endividados. Em outras
palavras, o endividamento em massa não é reflexo da crise, mas sim a sua base constitutiva; é a premissa da dívida que permite a sujeição às
políticas de ajuste impostas pelo modelo neoliberal de governo, que cortam fundo na carne do povo pobre e socializam os riscos assumidos
pelas aventuras financeiras praticadas pelos agentes de mercado.
É válido relembrar que o acesso ao crédito foi amplamente popularizado do final dos anos 1990 pra cá (no Brasil), com uma ampliação no
acesso ainda maior durante os governos petistas. Em boa medida, essa chamada "democratização do crédito" supriu, inclusive, as demandas por
reajustes salariais, uma vez que a capilarização da lógica do consumo tornou equivalente (de maneira equivocada) o acesso a bens antes
inacessíveis com o sentimento de melhora nas condições de vida. Tal fenômeno contribuiu também para o fortalecimento da subjetividade
individualizante apregoada pelo neoliberalismo, o famoso "empreendedor de si mesmo". Se antes, por exemplo, a luta por moradia era coletiva,
com a profusão das linhas de crédito imobiliário (beneficiadas por incentivos estatais que corriam diretamente para o caixa dos grandes
bancos) a conquista da casa própria tornou-se uma realização individual; do mesmo modo, garantir uma geladeira ou uma televisão em casa não
dependia mais de um salário digno, mas apenas da capacidade individual de manter em dia o pagamento dos boletos ou do cartão de crédito. Em
suma, com a ampliação do acesso ao crédito, a luta coletiva foi substituída pela lógica do "se eu organizar minhas contas certinho, dá pra
pagar".
Com esse processo individualizante, que chama para si uma luta que deveria ser coletiva, ocorre também uma internalização do sentimento de
responsabilidade. Ou seja, a responsabilidade de garantir o pagamento das dívidas contraídas é do indivíduo, exclusivamente - é minha. Ao
aspecto econômico, soma-se o aspecto moral. Não há a quem recorrer caso o pagamento da dívida não seja respeitado - no máximo, à família,
com o risco de endividar os parentes próximos.
Perceba-se que esse elemento moral no complexo do endividamento é fortemente trabalhado, inclusive vinculado a questões como a honra
(principalmente na constituição da masculinidade, o que leva, quando a dívida não é "honrada", a atitudes extremas como o suicídio e até
mesmo ao homicídio da companheira e dos filhos). E é justamente essa cobrança moral que garante o pagamento da dívida, o que, em outras
palavras, significa o comprometimento da renda futura - ou seja, do futuro propriamente dito. Estruturas como a restrição ao crédito em caso
de registro negativo (via órgãos de restrição ao crédito - SPC, Serasa, etc.) e o compartilhamento de informações entre instituições
financeiras (por meio do qual o risco do "cliente" é ranqueado, influenciando a taxa de juros aplicada e condicionando a liberação de
crédito) garantem a exclusão do indivíduo que não respeita o compromisso da dívida à pretensa melhora nas condições de vida (entendida
enquanto acesso ao mercado de consumo).
Assim, a partir da garantia do pagamento futuro com prestações a se perder de vista, renovadas por outras tão logo as primeiras sejam
quitadas (e assim numa lógica infinita), o setor financeiro da sociedade apropria-se da renda das classes populares, a fatia mínima que lhes
compete sobre o total da riqueza que elas mesmas produzem. É por meio da cobrança de juros que essa elite financeira garante a multiplicação
de suas fortunas, implementando uma lógica que permite a expropriação da pequena parte que chega às mãos da classe trabalhadora da riqueza
socialmente produzida.
Se, por um lado, as aves de rapina do setor financeiro entenderam o potencial que o mecanismo da dívida tem para espoliar o andar de baixo,
por outro, elas também compreenderam que esse mesmo mecanismo tem seu potencial expandido a partir do aparelho de Estado. Por meio da
tributação, a estrutura estatal reúne cifras acima das de qualquer empresa, atiçando a cobiça daqueles que não cansam de encher seus
bolsos1. Por isso, o modelo de governo defendido pelo neoliberalismo sacraliza um único gasto em todo o orçamento público: o pagamento da
dívida pública. Para garantir-se esse pagamento, todas as demais variáveis tornam-se passíveis de ajuste, inclusive os gastos sociais com
saúde, educação, seguridade, transporte público, etc. - estes sim vinculados a uma melhora nas condições de vida gerais. Independente do
partido que assuma a gestão do Estado, a cartilha neoliberal é imposta por instituições autônomas (como FMI, Banco Mundial, BCs autônomos,
etc.), gestadas para garantir o modelo econômico em voga, diminuindo cada dia mais a margem de atuação para aqueles que ainda acreditam em
rupturas por meio da democracia burguesa.
Assim, como um ciclo que se fecha em perfeita sincronia, a subjetividade geral em favor do pagamento da dívida tende a não questionar essa
variável sacralizada. Pelo contrário, a tendência é de não questionar a mesma, alçando-a à prioridade máxima - seja no orçamento público,
seja no orçamento familiar. Mais do que isso, com a falta de investimentos nas áreas sociais, os serviços públicos passam por um processo de
sucateamento, levantando a desconfiança geral sobre sua eficiência. Em contrapartida, retroalimentando o imaginário de saídas individuais
para problemas coletivos, as soluções apresentadas descambam para a iniciativa privada. São exemplos dessa lógica o surgimento de sistemas
de capitalização e previdência privada (no lugar de um sistema previdenciário geral), a expansão dos planos de saúde (em detrimento de um
sistema único e público), a privatização inconteste da logística urbana (com empresas de ônibus impondo aumentos anuais na passagem sem
qualquer transparência nas suas contas), entre outros.
Ou seja, para além da captura do futuro (por meio da renda) dos setores oprimidos, o mecanismo da dívida acentua a piora nas condições de
vida a partir da apropriação da renda geral por meio do sistema de tributação próprio da máquina estatal - fato este que, no Brasil, é
agravado por um sistema de tributação regressivo, extremamente desigual de cobrança de impostos (desfavorecendo as classes com menor poder
aquisitivo).
Continua.
1 Não estamos aqui entrando no debate a respeito do papel da dívida pública no financiamento de investimentos públicos, tampouco discutindo
diferentes mecanismos de tributação. Fazemos menção às dívidas nacionais soberanas como estruturantes dos mercados financeiros e a relação
que os governos mais ou menos liberais adotam com a mesma.
http://cabanarquista.org/2020/08/27/a-dominacao-pela-relacao-devedor-credor-no-capitalismo-financeiro-parte-1
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