(pt) anarkismo.net: Recortes e apontamentos sobre a invasão otomana-salafista iniciada em outubro 2019 contra Rojava e a resistência do Confederalismo by BrunoL
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Quinta-Feira, 24 de Outubro de 2019 - 08:21:59 CEST
No dia 09 de outubro a República da Turquia, autorizada pelos Estados Unidos sob governo
de Donald Trump, recebe a autorização fática para invadir o território que formalmente
pertence a República Á ---- As palavras que seguem procuram fazer uma "abordagem
compreensiva", como uma análise mais de corte teórico, com aportes ideológicos para além
da geopolítica clássica aplicada no Oriente Médio. Tampouco quero reproduzir a trama no
Sistema Internacional em si. Como alguém que estuda a região há três décadas, sem contar
com o envolvimento no apoio político às causas da Unidade Árabe, Libertação da Palestina
(dois povos, dois Estados), soberania política do Líbano (país de meus ancestrais
paternos) e direito e reconhecimento de etnias sem território e minorias perseguidas,
tenho o cuidado de ao menos aportar informação precisa e conceitos com o rigor necessário
para interpretar os fenômenos. Este texto também pode ser lido como um manifesto CONTRA
uma visão orientalista da região, essencialista do fenômeno do islã político e utilitária
dos destinos dos povos.
20 de outubro de 2019, Bruno Lima Rocha (Bruno Baaklini)
Apresentação
No dia 09 de outubro a República da Turquia, autorizada pelos Estados Unidos sob governo
de Donald Trump, recebe a autorização fática para invadir o território que formalmente
pertence a República Árabe da Síria mas que estava sob autogoverno do sistema do
Confederalismo Democrático da região do Curdistão oeste (dai o nome Rojava, que significa
oeste em língua kurmanji, um dos três idiomas do povo curdo; os demais são sorani e
pehlewani). Esta entidade política é denominada Federação Democrática do Norte e do Leste
da Síria, e incluía até o avanço neo-otomano, a quase um terço do território formalmente
governado pela família Assad desde 1971.
Este texto não se trata de debate de conjuntura, até porque o andamento da guerra, o
emprego de armas química por parte do Sultão Neo-Otomano Recep Tayepp Erdogan (presidente
autocrático, membro do partido islamita moderno AKP), sua aliança política com o partido
fascista turco (MHP, descendentes dos Lobos Cinzentos) e o emprego de ao menos sete forças
mercenárias com presença salafista desde a invasão do cantão de Afrïn (Operação Ramo de
Oliveira, iniciada em 20 de janeiro de 2018) implicaria em um material de mais de dez
páginas, fora os gráficos.
As palavras que seguem procuram fazer uma "abordagem compreensiva", como uma análise mais
de corte teórico, com aportes ideológicos para além da geopolítica clássica aplicada no
Oriente Médio. Tampouco quero reproduzir a trama no Sistema Internacional em si. Como
alguém que estuda a região há três décadas, sem contar com o envolvimento no apoio
político às causas da Unidade Árabe, Libertação da Palestina (dois povos, dois Estados),
soberania política do Líbano (país de meus ancestrais paternos) e direito e reconhecimento
de etnias sem território e minorias perseguidas, tenho o cuidado de ao menos aportar
informação precisa e conceitos com o rigor necessário para interpretar os fenômenos. Este
texto também pode ser lido como um manifesto CONTRA uma visão orientalista da região,
essencialista do fenômeno do islã político e utilitária dos destinos dos povos.
A base ideológica
Para interpretar o giro político que ocorreu dentro do núcleo mais orgânico do Partido dos
Trabalhadores do Curdistão (PKK) até chegar à maior instância federalista, o KCK (Uniao ou
Unidade das Comunidades do Curdistão), é preciso entender a trajetória do organismo
político. O PKK nasceu marxista-leninista e passou por algumas revisões. A mais notável e
última levou dez anos para ser processada e iniciou em 2000. A base teórica e dai a
aproximação ideológica se encontra em algumas obras. Cito duas. A primeira, mais recente,
cuja redação final se deu em 2013 e é de autoria do próprio Abdullah Öcalan e se chama em
castelhano Hoja de Ruta (Roteiro, encontrado em pdf em
https://img.txalaparta.eus/Archivos/hoja%20de%20ruta-ok.pdf). Trata-se do jovem clássico
mais importante hoje para o futuro do Oriente Médio. Sua matriz é uma interpretação que
deu base ao projeto que vive e luta na Federação Democrática do Norte da Síria. Trata-se
do livro O Municipalismo Libertário, do anarquista de origem judaica e russa Murray
Bookchin, que se radicou nos EUA até seu falecimento. Nesta obra de referência e no
conjunto do debate que se seguiu, o tema da Ecologia Social, das formas de resistência
junto ao território e coexistência muito tensionada entre a organização do poder social
contra o aparelho de Estado e seus respectivos setores dominantes e dirigentes vem à tona.
Do muito que se lê e debate até o ponto da execução, três fundamentos evidentes em Rojava
são: Democracia participativa, feminismo e ecologia! Mas, ressalto que nada disso é fácil
de ser executado. Esses princípios seculares são aplicados em sociedade tradicional, com
profundo sectarismo e etnicidade que não permite sequer o casamento interétnico e
necessita ser adaptada na origem, ao Confessionalismo Político, a fórmula francesa de
convivência no Líbano. A quebra do modelo está na existência obrigatória de Casas da
Juventude, Casas das Mulheres e Conselhos Locais com representantes eleitos e paridade na
representação entre homens e mulheres, além de ser assegurada a representatividade de
todos os grupos étnico-culturais (além dos curdos na Federação está uma massa árabe, as
minorias yázidis, turcomenas, assírias, caldeias e armênias, dentre outros setores
étnico-religiosos como curdos alevis). É democracia participativa? Sim. Chega a ser plena?
Evidente que não.
Outro alerta ao delírio de amigos "ocidentais" que tentam projetar ideias de socialização
econômica sem compreender os processos é tentar fazer absoluto o impossível, como negar a
propriedade familiar na forma privada em qualquer país do Oriente Médio. Nem na Argélia
alinhada com a URSS isso foi possível, nem coibir a pequena propriedade e menos ainda os
bazares. Em termos de projeto econômico em Rojava a maior parte da força de trabalho se
estrutura sobre base familiar. Há empresas ali de pequeno e médio porte, e a maior parte é
de cooperativas com bom nível de horizontalidade. Tanto é que no começo a contra
informação do Ocidente dizia que Rojava iria "estatizar sem Estado". Daria tempo de
desenvolver uma economia semi-planificada com liberdades relativas de produção e criação
em nível local, distrital, regional (cantonal) e federal. Daria se não fosse o esforço
agora para preservar a vida de quem está desarmado e uma razoável parcela de território.
Tensões concretas na formação: comentários relevantes
Saiu no portal Vox que em algum momento "os curdos oprimiram as populações ao redor".
Queria abordar isso com o devido cuidado. O Confederalismo Democrático foi criado justo
para não fazer isso. Na maioria das vezes os chefes de tribos votam pelo apoio militar e
aí entra o sistema Confederal. As estruturas sociais são bem complicadas lá. Por exemplo,
os yázidis originalmente hierarquizavam sua sociedade em castas. Imagina libertar esse
povo? E as YBS são a milícia armada deles com aval das SDFs. Ou seja,mesmo com tanta
controvérsia esta população tem o direito a autodefesa. Assírios e Caldeus são
cristãos-étnicos e têm força armada também. As comunidades árabes aderiram em massa às
SDF. O tema mais complexo é com a minoria turcomena, porque são turquicos e pelo
chauvinismo dividiram seu esforço militar entre as SDF e o Exército da Turquia. Turcomenos
formam duas importantes brigadas (Seljuc e Manbij) dentro da luta pelo Confederalismo.
Enfim, na ANF, Kurdish Question e The Region tem material a respeito.
O tema é antigo, pois diziam as mesmas calúnias do Exercito Insurrecional dos Camponeses
da Ucrânia (liderados por Néstor Makhnó na Ucrânia. Como era proibido pogrom algumas
comunidades muito antissemitas sofriam mais vigilância.
Imaginemos um pelotão das YPJ (Forças de Autodefesa das Mulheres) chegar numa casa onde o
sheikh local tem sete esposas e, na ponta do fuzil, a combatente oficial eleita afirmar:
"ACABOU A POLIGAMIA!". Claro que a família do infeliz vai reclamar e querer ser
indenizada. Num ambiente desses imaginem um homem de 60 anos ter de pedir permissão para
jovens de 20 e armadas? Como no Confederalismo é proibida poligamia, o casamento
arranjado, a mutilação de corpos das mulheres e a cobrança de dotes, a situação pode se
tornar delicada por alguma revolta comunal contra as leis seculares dentro do Contrato
Social da Constituição de Rojava.
Mas observa-se que diante do comportamento reacionário as YPG/YPJ têm uma postura muito
positiva e humanista. Tanto é que tinham uns 11000 terroristas do Daesh presos e não
fuzilados. Logo, rogo muita observação em detalhes quando o tema for democracia e
feminismo no Oriente Médio. O que as mulheres do Curdistão estão fazendo beira a um
milagre e como tal deve ser respeitado.
Formas de resistência e o tema mais controverso: a coalizão Anti DAESH junto aos EUA
Uma afirmação histórica é correta. Desde o século XIX o Curdistão é o jazigo dos
imperialistas. Não é fácil dominar a região e antes e depois do famigerado Acordo
Sykes-Picot (Império Britânico e Império Frances, maio de 1916, combinando a pilhagem e
divisão das províncias otomanas no Oriente Médio) o problema continuou. O mesmo se dá
quanto aos arranjos geopolíticos, muito mais complexos do que a "alienação livresca
essencialista" pode permitir conceber.
Há certa controvérsia nas declarações do Saleh Muslim, alguém que tem a infelicidade da
palavra. O secretário-geral do PYD (organização confederal no mesmo gurada-chuva do PKK)
que não batem com a decisão do KCK (Congresso das Comunidades do Curdistão, órgão máximo
da esquerda curda), sendo que ele mesmo (Saleh) é ex-KDP ramo sírio logo, alguém muito
esforçado, mas com passado oligárquico (ligado ao clã de Mahmoud Barzani, aliado dos EUA,
amigo de Erdogan e presidente do Governo Regional do Curdistão iraquiano, o líder mais
importante da direita curda). Nunca houve muita expectativa na aliança tática que garantiu
a presença de tropas dos EUA além do apoio aéreo, fundamental para derrotar militarmente o
Estado Islâmico cujo confronto direto inicia em setembro de 2014 com o cerco de Kobani e
termina com a libertação de Raqqa, na grande batalha que termina em outubro de 2017. No
chão quem derrotou os terroristas do ISIS foram as Forças Democráticas da Síria (SDF),
coordenadas pela esquerda curda e operando como força beligerante da Federação Democrática
do Norte e do Leste da Síria (Tev-Dem, FDNS, Conselho Democrático Sírio).
Ninguém nutriu ilusão alguma sobre a relação com os EUA, era uma maneira de tentar
prorrogar a presença de tropas da Otan e ganhar tempo em relação à invasão turca e a
liberação de milhares de salafistas para apoiar o Erdogan. O primeiro convênio era com o
KDP, e os oligarcas-corruptos de Irbil demoraram setes meses para enviar 150 soldados
ainda para romper o cerco de Kobani. Foi o acordo com Barzani/KDP, líder do partido rival
do PKK, que permitiu a chegada da coalizão anti-ISIS em peso, em especial pela cobertura
aérea. Como os pershmergas (forças de defesa do governo de Irbil) não lutavam com o mesmo
ímpeto e nem eram tão bons militarmente, Washington se viu diante de um desafio. Apoiar a
esquerda da região ou correr o risco do vexame internacional da vitória do ISIS mesmo com
os bombardeios dos países ocidentais?
E como seria relativamente fácil de neutralizar a presença de tropas estadunidenses? Tudo
isso se resolvia com a presença de "observadores russos" na região, fato que nunca houve.
Por mais besteira que o Salih fale (eu próprio o escutei na CNN com dois dias passados da
invasão otomano-salafista), isso não influencia a linha da estratégia do conflito.
As Forças da Esquerda Curda fizeram parte da Coalizão Anti ISIS, que continha apoio aéreo
russo também. Não era uma aliança entre EUA e PYD-PKK. A articulação saiu via governo de
Irbil, do KDP, do oligarca Barzani, que como corrupto, estava lavando dinheiro para o ISIS
assim como o filho do Erdogan na Turquia. Ambas as denúncias foram feitas pelo presidente
da Rússia Vladimir Putin, na reunião do G20/2015 em plena Turquia e depois ratificadas em
comunicado na ONU. Agora estamos diante disso. CRIME INFAME.
Pouco antes da ofensiva turca com a autorização dada pelo presidente dos EUA, Donald
Trump, as SDF libertaram Mambij como extensão da retomada de Raqqa, a cidade que fora
considerada capital do Califado de Al Baghdadi, o famigerado líder do Estado Islâmico. A
extensão territorial do Confederalismo Democrático atingia a quase um terço do tamanho
formal do Estado sírio e "eliminar" esse perigo convinha a todos os poderes e potências:
EUA, Turquia, Rússia e Síria através de seu governo de Damasco.
Para termos uma ideia do tamanho do território confederal, as forças conjuntas das SDFs
ampliaram na primeira semana a linha de defesa para 650 kms apostando em maior mobilidade
de pequenas unidades para não ser alvo de intenso fogo de barragem por parte do segundo
maior contingente da OTAN (a Turquia). Já Ankara se propõe a organizar uma zona tampão de
"segurança", retornando com no mínimo 2 milhões de refugiados podendo chegar até a 3,5
milhões. Esta população estaria sob vigilância da Turquia e de seus aliados mercenários
salafistas em uma área de mais de 400 kms de extensão e 30 a 32 kms de profundidade,
incluindo uma rodovia para cortar o território invadido.
Posições controversas dos agentes no conflito
Na primeira semana havia um conjunto de dúvidas que permanecem. Será que Damasco toma
vergonha na cara e ajuda no esforço contra os invasores otomanos e seus aliados
salafistas? O Irã condenou o ataque da Turquia, será que vai apoiar o contragolpe, ou
aproveita o embalo para aumentar a repressão contra o PJAK, o partido da esquerda curda
operando no Curdistão ocupado pelo Estado persa?
Parece que a tragédia anunciada se realiza. Até se prove o contrário, os Otomanos vão
soltar os terroristas salafistas e colocar eles lutando dentro da Síria. Até se prove o
contrário, aparentemente Rússia e Irã lavam as mãos numa banheira de sangue. E, como
sempre, espera-se apenas muita hipocrisia do Conselho de Segurança da ONU a respeito da
invasão otomana em Rojava.
Conclusões possíveis
Os malditos otomanos e seus aliados salafistas sabem que o genocídio anunciado não será
aceito e a vingança da esquerda curda cedo ou tarde chagará. Outra possibilidade é ampliar
o conflito dentro do Curdistão Iraquiano. Irbil vai ser a capital do Curdistão socialista?
A tensão certamente vai parar toda no Governo Regional Curdo (KRG), o oligarca traidor
Massud Barzani (líder de clã e de seu partido, o KDP) pode ter de enfrentar eleições pela
primeira vez em sua vida e ver seu poder escapar entre as mãos. Irbil pode ser a próxima
capital do Confederalismo Democrático ou o epicentro de uma nova "guerra entre irmãos",
dando sequência da guerra civil no Curdist
https://www.anarkismo.net/article/31604
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