(pt) anarkismo.net: Uma análise de fundo a partir do golpe de Estado na Bolívia por BrunoL
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Terça-Feira, 12 de Novembro de 2019 - 07:46:18 CET
As palavras que seguem somam uma reflexão de fundo antecedida pelo fato, imediato, do
golpe de Estado na Bolívia. ---- 10 de novembro de 2019 - Bruno Lima Rocha ---- Introdução
---- As palavras que seguem somam uma reflexão de fundo antecedida pelo fato, imediato, do
golpe de Estado na Bolívia. O modelo de análise seria tomando por base o caso boliviano, a
Constituição Plurinacional e a multiplicidade jurídica que assegura a "autonomia decisória
e soberania popular de fato nos territórios". Não imaginava que teria de fechar o texto
assistindo ao vivo pela Telesur e Bolívia TV o discurso de renúncia do presidente e seu
vice. ---- golpe_bolivia.jpg ---- Golpe de Estado na Bolívia ---- Domingo, 10 de novembro,
se decreta um golpe de Estado na Bolívia. Inicia com a quarta reeleição da dupla de
candidatos do Movimento ao Socialismo (MAS)-IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos
Povos). Deixo aqui a crítica, explícita, de que o MAS/IPSP teria, necessariamente, de
indicar novos candidatos e assim quebrar o ciclo de concentração de poder, algo que,
evidentemente, fortalece a posição dos partidos à direita e ligados ao imperialismo mais
tacanho. Ocorre justo o oposto.
Evo e Linera concorreram. Na noite de 20 de outubro estariam ganhando, mas teria um
segundo turno. Logo a contagem é interrompida e no retorno, pela legislação boliviana, a
chapa oficialista supera em dez por cento o segundo colocado, o ex-presidente Carlos Mesa
e, teria vencido. A oposição obviamente não aceita o resultado - na verdade nãoaceitaria
resultado algum - e retomam uma sublevação a partir de Santa Cruz de La Sierra. Liderados
por Luís Fernando Camacho, à frente do Comitê Cívico desta localidade (que possui expansão
nacional,) operando como força de choque, iniciam os cercos nas grandes cidades, nas
estradas e ampliam a conspiração junto às forças mais reacionárias. Articulações com
igrejas evangélicas com base nos EUA, papel fundamental da União Europeia, da recontagem
da Organização dos Estados Americanos (OEA) e fortes suspeitas da presença de operadores
brasileiros (ver:
https://elperiodicocr.com/bolivia-filtran-audios-de-lideres-opositores-llamando-a-un-golpe-de-estado-contra-evo-morales/).
Há que se levar em conta o papel dos meios de comunicação privados e pertencentes aos
oligarcas, como também do acionar de redes muito conservadoras de igrejas pentecostais.
Lemas como "a bíblia de volta ao palácio" circularam influenciados por robôs e servidores
que teriam a mesma origem dos operados nas eleições brasileiras. Ou seja, um enredo mais
ou menos previsível.
Na manhã de domingo, 10 de novembro, já sem nenhuma capacidade de defesa do Estado e menos
ainda das instituições de base (das organizações sociais), altos mandos militares se
declararam em desobediência ao Chefe de Estado e aquartelados. Segundo o que circula
através de militantes feministas na Bolívia, o procedimento dos "centros e uniões cívicas"
é cercar uma sede de sindicato, associação ou movimento indígena, incendiar esta sede,
baixar a bandeira Whipala (indígena de base aimará), erguer a bandeira do país e entoar o
hino nacional. Ato explicitamente racista e anti-indígena. Era previsível a capacidade de
instabilizar e surpreende o fato de não montar uma estrutura de resistência.
É incompreensível. O governo deposto do MAS, no último pronunciamento público de Evo,
afirma que confiava inteiramente na Polícia Nacional! Isso depois de tudo o que a Bolívia
passou, contando apenas com o século XXI. Dia 20 de outubro, domingo, foram às eleições
sabendo que poderia haver virada de mesa por parte da direita. Logo, porque não prepararam
a base para resistir? Tinham base social para isso? Pelo visto não. Ah, Evo reclama, quase
80% da formação da Polícia Nacional é de origem indígena. E? O pertencimento étnico supera
a disciplina militarizada? Óbvio que não. Confiaram cegamente na "lealdade dos militares"?
Em 2008 a tentativa de golpe foi derrotada na rua. E a resistência? Onde estão os Ponchos
Rojos? E agora?
Transformar uma sociedade através do Estado?
Definitivamente o Estado é um aparelho complexo, tem desde o serviço público sob alguma
forma de pressão popular (como no caso brasileiro, o combalido SUS ou a educação pública)
e ao mesmo tempo não é só governo e serviços, têm corpos especializados permanentes,
verdadeiros estamentos, como o Judiciário, o Ministério Público (MPF e Estaduais) e o
conjunto do aparelho repressivo.
O Estado se for dotado de corpos militarizados (tal é o caso do golpe
cívico-midiático-policial na Bolívia, em curso), tem relação de mando e obediência e
divisão social do trabalho entre oficiais e praças. Logo, este tipo de instituição não
produz novas formas de reprodução da vida, ao contrário. Tais corpos tendem a se
reproduzir mesmo sob mudanças extremas de regimes, vide o caso do Império Russo (Okhrana),
Períodos soviéticos (Cheka, GPU, NKVD, KGB) e Rússia de novo (KGB).
Portanto, assim como é necessário ousar no arranjo Jurídico (a exemplo das Constituições
Plurinacionais de Equador e Bolívia) é preciso ousar em instituições tabus, como as de
autodefesa na América Latina. Se militarizar um processo de câmbio, mata a semente, ou
ficamos dependentes das cadeias de comando (tal como Velasco Alvarado foi sucedido por
militares pró-EUA, o mesmo ocorrendo no Panamá, quando Manuel Noriega termina tomando o
poder após o assassinato de Omar Torrijos). O inverso também é verdadeiro. Se não nos
defendermos, como país e territórios soberanos, morremos quase todos e enterramos vivos
nossos projetos.
Qual economia política aponta processos de câmbio?
É preciso repensar a economia política mesmo dentro do capitalismo. Se não romper com a
falácia fiscalista (a mentira vem assim "não tem verba porque não tem dinheiro, não tem
dinheiro porque não há crescimento") NÃO HÁ SAÍDA DE CRÉDITO. Se esta falácia acima citada
fosse verdadeira, os EUA não teriam saído da Grande Depressão. É circulando dinheiro em
suas várias funções (unidade de conta, reserva de valor, elemento de troca, garantia de
depósitos e transações) que faz girar a economia capitalista e outras também (como com
moedas sociais). Logo, se não romper com a falácia fiscalista (insisto com isso), as
comunidades territoriais vão sobreviver com seus recursos, mas haverá ausência de política
pública.
Mas só a economia capitalista na forma de serviço público não resolve. Essa constatação
vale para reservas territoriais e a gigantesca mancha metropolitana na América Latina. Os
territórios e seus projetos produtivos não precisariam ficar apenas no jogo econômico do
capitalismo. Já ocorrem feiras de trocas, circulação de moedas sociais, crédito
comunitário sem usar a moeda oficial. Enfim, como os tempos que vêm serão de ainda maior
escassez, quanto maior o volume de experiências de economia comunal melhor, até porque,
não se desenvolve tudo do zero se houver transformação da sociedade, ainda que na forma
intermediária de duplicidade ou multiplicidade jurídica.
Quem governa e como governa? Fazer o que com as relações de poder local?
É preciso pensar alguma forma de co-governo, de elementos de pressão no poder municipal e
nas regiões. Tem tradições que chamam isso de municipalismo libertário e ecologia social,
mas podemos denominar de outros conceitos, tal é o caso do Curdistão sob Confederalismo
Democrático. Tem experiências vitoriosas deste municipalismo na América Latina, tanto no
maior autogoverno e autonomia, como em Chiapas e em todos os estados mexicanos, como na
ação urbana de Cochabamba, Bolívia, na chamada "guerra da água" que ocorreu entre abril e
junho de 2000. Ali foi a virada que levou, inclusive, à vitória na Guerra do Gás, em 2003
e a consequente vitória eleitoral do MAS/IPSP (em dezembro de 2005) e a Constituição
Plurinacional (de fevereiro de 2009).
Fazer dos territórios formas de vida e escolas de resistência múltipla e igualitária?
Para no mínimo gerar um Impasse Político, ou uma dualidade de Poder Político no país,
tomando como exemplo a ação da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador
(CONAIE), é preciso além da luta por terra e território, ousando em nova juridicidade
baseada em usos e costumes e, no caso brasileiro, necessariamente passando por Diálogo
Inter Religioso (não sei se esse termo está correto, mas fico aguardando aportes para o
conceito adequado). Unir o povo na sua diversidade, também nos quesitos de jurisdição e
resolução de conflitos. Isso já ocorre em diversos locais da América Latina e do Caribe.
Um exemplo se dá nos municípios de maioria indígena na Guatemala, como uma compensação e
até vitória pontual depois de 33 anos de guerra civil (1962-1995). No caso brasileiro, há
uma consideração importante. Temos a condição demográfica de não contar com uma maioria
indígena e sermos um país metropolitano, onde a população afro-brasileira é majoritária e
as culturas afro-brasileiras operam como espinha dorsal da nacionalidade moderna. Logo, o
debate entre Religiões Afro-Brasileiras, Cristianismo Popular e sim, uma enorme parcela
das Igrejas Evangélicas - como projeto de poder social materializável - esse debate mesmo
sendo delicado, deve seguir. Importante ressaltar que o reboquismo nunca leva a nada a não
ser o desastre. A CONAIE só está viva porque não teve adesão, não se subordinou ao governo
de Rafael Correa. Mas só consegue virar situações limites porque faz aliança com a luta
urbana e metropolitana.
Projeto político, projetos políticos e consequências?
Eu seria irresponsável se não lhes colocasse a relevância da soberania alimentar e a
defesa do território diante das pressões do Sistema Interacional, incluindo aí a China,
que é dona da Syngenta, por exemplo. O mínimo que um país precisa é se alimentar, ter
energia o suficiente para o que necessita ou projeta, manter seus recursos naturais sob
controle popular e poder se defender. Mesmo em uma situação de um governo mais à esquerda,
sem necessariamente um processo de câmbio, quem vai empurrar este "suposto governo" é o
conjunto de povos auto organizados dos Brasis. O mesmo se dá nos demais países da América
Latina. Não devemos nos perguntar se em isso acontecendo, se vai ter virada de mesa. Mas
sim quando os colonialistas e seus aliados internos vão tentar dar uma ou mais viradas de
mesa. Um impasse político com controle territorial de uma parcela do país é algo que já
ocorre em vários países da América Latina (como nos territórios indígenas do México,
Colômbia, Bolívia, diversos países caribenhos, dentre outros) e pode se tornar um modelo
mais unificador para as esquerdas de nosso Continente.
Homenagens: Honduras e Bolívia
Queria dedicar esse minúsculo esforço do texto acima à memória da liderança Garífuna
(equivale a quilombola em português ou palenquero na tradição colombiana e venezuelana)
Francisco Guerrero Centeno (39 anos) e antes o martírio da dirigente também garífuna María
Digna Montero. Centeno era liderança na comunidade de Masca, na costa (atlântica
caribenha) de Honduras. Este país sofreu o primeiro golpe de Estado de novo tipo na
América Latina (junho de 2009) já na execução do Projeto Pontes, no ciclo dos chamados
Golpes Constitucionais auxiliados pelo Departamento de Estado dos EUA: Honduras 2009,
Paraguai junho 2012 e Brasil abril de 2016. O mais recente golpe de Estado se deu no
fechamento desse texto, em novembro de 2019, na Bolívia.
Bruno Lima Rocha é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência
política; é professor nos cursos de relações internacionais, direito e jornalismo.
Contatos: blimarocha gmail.com (para E-mail e Facebook); grupo do Telegram
(t.me/estrategiaeanalise), estrategiaeanaliseblog.com (textos e áudios) e
www.estrategiaeanalise.com.br (arquivos até maio de 2018).
https://www.anarkismo.net/article/31641
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