(pt) anarkismo.net: O assassinato de Marielle Franco e o genocídio estruturante no Rio de Janeiro by BrunoL
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Quinta-Feira, 22 de Março de 2018 - 08:23:23 CET
Na noite de 14 de março de 2018, uma 4ª feira no final do verão carioca, o centro da
capital fluminense foi palco de um assassinato político. ---- Na noite de 14 de março de
2018, uma 4ª feira no final do verão carioca, o centro da capital fluminense foi palco de
um assassinato político. Possivelmente um crime por encomenda, os assassinatos da
vereadora pelo PSOL-RJ, Marielle Franco e o motorista substituto de seu gabinete, Anderson
Gomes, logo ganharam difusão internacional (ver BBC). Marielle era o exemplo do
engajamento político na cidade partida. ---- 18 de março de 2018, Bruno Lima Rocha ---- Na
noite de 14 de março de 2018, uma 4ª feira no final do verão carioca, o centro da capital
fluminense foi palco de um assassinato político. Possivelmente um crime por encomenda, os
assassinatos da vereadora pelo PSOL-RJ, Marielle Franco e o motorista substituto de seu
gabinete, Anderson Gomes, logo ganharam difusão internacional (ver BBC). Marielle era o
exemplo do engajamento político na cidade partida. Ex-aluna de Pré vestibular popular,
formou-se em sociologia pela PUC do Rio e com mestrado Administração (ênfase em
Administração Pública), estudando justamente a espacialização penal da pobreza favelizada
no Rio de Janeiro. Negra (afrodescendente) foi mãe adolescente e se torna homoafetiva na
idade adulta. Trabalhou no gabinete do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e veio a
se candidatar para vereadora nas eleições municipais de 2016. Quinta mais votada da
cidade, ultrapassou os 46 mil votos e ultrapassou as barreiras geográficas e culturais do
município. No mandato, acompanhava a muito criticada intervenção federal, conhecedora que
era da péssima experiência no Complexo da Maré, de onde provinha. Nos últimos meses antes
de seu assassinato, conhecia e denunciava de perto os abusos e a violência estatal através
do 41º BPM, aterrorizando a comunidade de Acari. Enfim, tinha todos os "atributos" para se
tornar tanto um alvo da repressão - das milícias, da chamada ‘banda podre' da PM - como um
símbolo deste momento do país. No texto que segue este analista, mesmo que discordando de
algumas crenças e práticas de sua legenda, reconhece todo o mérito tanto de Marielle como
de seus companheiros de jornada. Sigamos.
Rio de Janeiro, a capital nacional da hipocrisia
Marielle foi morta ultrapassando as estatísticas. Condenava o modelo violento de apartheid
étnico-social. Falava aquilo que todos sabem e ninguém diz. No Rio de Janeiro todo mundo
sabe de tudo, de tudo. Não há o que revelar; a cidade e a região metropolitana conhecem o
papel das milícias, a disputa pelas facções no varejo, o arranjo - fracassado - das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), a evidente maior tolerância com uma facção (TCP,
Terceiro Comando Puro, herdeiro do TC dos anos '80) e menor "convivência" com o CVRL
(herdeiro do Comando Vermelho, antes Falange Vermelha, originário das galerias da Ilha
Grande). Todo mundo conhece os termos Arrego e Esculacho, e a "vela", consagrada no uso
pelo Cabo Flávio na porta do Shopping Center Rio Sul em 1995 (VER), "porque ali era
proibido roubar". Depois de mais de 30 anos, virou uma cultura; o cotidiano de violência
desmedida desde o início do governo Moreira Franco (ele mesmo, em março de 1987, VER). Se
quisermos seguir nesta linha do tempo, desde a Operação Mosaico 1 (VER). Não falta
investigação "jornalística", falta é meter a mão mesmo. E modificar o modelo policial, em
todos os níveis.
Ou seja, estamos falando de um problema estrutural e não de troca de comandos de
batalhões. Estamos afirmando que há risco de vida mesmo se a pessoa for detentora de
mandato popular ou estiver sob a toga do aparelho judiciário. Não faz nenhum sentido.
Porque Marielle não estava com escolta armada e andando em carro blindado? A vereadora
atuava no Rio de Janeiro e denunciava a violência policial e das milícias. O Brasil não é
a Escandinávia e o Rio tampouco é Estocolmo ou Oslo. Se vale a comparação, do outro lado
da Baía de Guanabara, na Região Oceânica de Niterói, as mesmas estruturas denunciadas por
Marielle cobraram a vida da juíza Patrícia Acioli (VER). Era agosto de 2011, o país vivia
o boom do crescimento econômico e havia uma aliança esdrúxula (estadual e nacional)
bancando o esquema Cabral no Rio. Desde então o modelo ruiu e o Rio foi à falência, de novo.
É preciso respeitar o pertencimento e os vínculos de Marielle
Talvez seja emblemático reconhecer que no Rio de Janeiro, a força política que polariza
eleitoralmente à esquerda é o PSOL. A cidade, "vanguarda cultural", convive com um
prefeito neopentecostal e milícias operando como Estado paralelo. Neste território a
legenda de Marielle cresceu e como tal deve ser respeitada. Nestes tempos de internet
"política", ataques não faltam. Solidariedade - a esquerda como um todo e o PSOL em
particular estão sofrendo um ataque covarde onde uma leva de "fascistoides digitais"
afirmando que "agora o PSOL sofre do próprio remédio ao defender bandido e os direitos
humanos". Cada demência dessas é um ataque direto às mais de 6300 mortes violentas no
estado do Rio em 2017 e os mais de 61.000 assassinatos do Brasil no mesmo ano.
A militante era do PSOL e cabe a esta legenda reivindicar sua companheira, assim como toda
a esquerda brasileira deve ser solidária, respeitando seu pertencimento e militância.
Marielle era do PSOL e não de outra sigla. Era uma militante de esquerda e como tal deve
ser reivindicada. Era negra e da Maré e os mandantes de sua morte por encomenda sabiam
exatamente a quem atingir. Só queria ressaltar a desconfiança para as lágrimas de
crocodilo da Globo assim como dos poderes de fato da república; pior ainda é quem defende
a intervenção federal no RJ como forma de solucionar "a violência no Rio". Besteira. O
problema todo mundo sabe: estrutura policial corrupta, facções que mandam no sistema
prisional, falta de serviços sociais nas comunidades, racismo institucional na capital e
metrópole fluminense, além das milícias como um grande negócio de domínio territorial.
Marielle conhecia esta realidade, tanto como alguém que estudava os espaços como atuava
neles. O Rio é a cidade das milícias (VER) e pelo visto pouco ou nada serviu a CPI (VER)
que abordou este tema e foi narrada no filme Tropa de Elite 2. Ao invés de recuarem,
avançaram na forma de franquia do crime. Agora disputam espaços com as facções (ADA, TCP,
CVRL) do varejo do tráfico e crimes conexos como roubo de cargas. A franquia das milícias
estaria em 37 bairros e 165 favelas da Região Metropolitana, espacialmente controlando
área equivalente a quase um quarto da capital fluminense, com mais de dois milhões de
pessoas sob seu domínio de terror! Atuam em 11municípios, tomando como ponto de partida a
Zona Oeste do Rio, atingindo a bairros inteiros, contabilizando 608 mil domicílios.
Obviamente a "guerra do tráfico" não é contra estas "milícias". Não faltam denúncias
embora sejam poucos os denunciantes, e menos ainda àquelas a denunciar a partir dos
espaços mais penalizados. Logo, trata-se de um bando de hipócritas! O que mudou na PM do
Rio e no sistema de segurança desde a CPI das Milícias em 2008? Nada, simplesmente o
quadro se agravou. Em novembro de 2010, o cerco na Vila Cruzeiro e depois no Complexo do
Alemão foram vistos como "a guerra no Rio" (VER), com emprego de tropas federais e o apoio
integral das emissoras de televisão. Passados oito anos, tudo só piorou. Por quê?
Pelo que foi divulgado em diversas reportagens e links, a vereadora Marielle Franco
exercia um real esforço de representar comunidades carentes sob o terror de Estado. A
juventude, alvo da violência policial, constantemente recorria ao seu gabinete e mandato,
para denunciar as situações cotidianas que uma metade da cidade finge não saber que a
outra passa. Insisto que este é um momento grave. Mesmo quem discorde de algumas
interpretações desta legenda (como é meu caso), incluindo o tema da segurança pública e a
"crença nas instituições", ressalto que sua atuação é importante e corajosa. A coragem
sempre cobra um preço alto, como é o caso de gerações em Acari (VER). É a mesma comunidade
das Mães de Acari. Não custa lembrar a "CHACINA DE ACARI", 26 de julho de 1990 (VER) -
após 25 anos do crime, o mesmo prescreveu (VER), e nenhum corpo foi encontrado. A mãe que
começou o movimento foi assassinada em 1993, o ex-deputado estadual Emir Larangeira teria
ordenado a execução. Ninguém preso, todas as suspeitas sobre os Cavalos Corredores. A
vereadora Marielle Franco também atuava em Acari e denunciava regularmente os supostos
abusos cometidos por policiais militares lotados no 41º BPM, conhecido na região como
Batalhão da Morte. Ou seja, mais do mesmo no Rio.
Na tentativa de interpretar a trajetória intelectual e política de Marielle, li trechos de
sua dissertação de mestrado (VER) com o título "UPP - A REDUÇÃO DA FAVELAA TRÊS LETRAS:
UMA ANÁLISEDA POLÍTICA DE SEGURANÇAPÚBLICA DO ESTADO DO RIODE JANEIRO" defendida na UFF em
2014. O último parágrafo da conclusão é realmente emblemático.
"A política de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro mantém as caracaterísticas de
Estado Penal segundo Loic Wacquant. Os elementos centrais dessa constatação estão nas
bases da ação militarizada da polícia, na repressão dos moradores, na inexistência da
constituição de direitos e nas remoções para territórios periféricos da cidade (o que
acontece em vários casos). Ou seja, a continuidade de uma lógica racista de ocupação dos
presídios por negros e pobres, adicionada do elemento de descartar uma parte da população
ao direito da cidade, continua marcando a segurança pública com o advento das UPPs.
Elementos esses que são centrais para a relação entre Estado Penal e a polícia de
segurança em curso no Rio de Janeiro."
Enfim, a militante assassinada dominava o tema em todos os âmbitos e corajosamente
aplicava seu conhecimento e capital político nesta tentativa de representação, e também
por isso seu assassinato e o imediato reconhecimento provocaram tanta ira e canalhice na
direita.
A internet brasileira abre os portões do inferno
Ao ler os comentários decorrentes de vídeos e postagens homenageando e reconhecendo o
martírio de Marielle Franco, chego a duas conclusões. Ou estamos às vésperas do fascismo,
ou tem robô demais e ciberativistas sobrando a favor do pior do país. Ou a Casa Grande
entronizou no ativismo de internet ou realmente tem muita gente trabalhando - sendo
remunerada pelo Brasil Paralelo e as redes pró-Bolsonaro - e a partir daí manipulando uma
"audiência" que vai ao encontro tanto do conservadorismo mais arraigado (do tipo a favor
do extermínio de massas e do neopentecostalismo) e de algumas bases sociais concretas. O
inferno chegou à consciência do brasileiro e da brasileira média, reproduzindo o pior das
práticas políticas, indo ao encontro das desilusões com a ruptura da aliança de classes do
governo deposto. A coisa está feia mesma, mas não tão feia como supostamente "espelhada"
nas redes sociais do Brasil.
Nas horas que se seguiram à difusão do crime contra Marielle e Anderson vimos de tudo,
desde teorias absurdas, passando por desembargadora do estado do Rio caluniando-a como
"representante de facção", assim como uma responsabilização da vítima. A última manobra,
por sinal, é típica do opressor, pois naturaliza a condição de domínio ao ponto de não
conceber outra forma de vida que não a reprodução subordinada.
Nas 48 horas seguintes, cheguei ao seguinte constructo: "a direita vomita ao digitar".
Isto ocorre quando a estupidez serve de combustível para o ódio insano ser manipulado pelo
proselitismo político da extrema direita. Eu mesmo tive em meu perfil no Facebook gente
não convidada, que entrou xingando-a de "amiga de maconheiros e defensora do CV". Excluí
na hora, mas depois reparei que este tipo de comunicação está endêmico nas redes sociais.
O assassinato de reputações não parou por aí. Outro perfil - também supostamente feminino
- entrou me ofendendo dizendo que Acari é do TCP e por isso a Marielle - suposta amiga de
facção rival - foi assassinada. Pronto, já inventaram o "suspeito" ideal. Que horror.
As manobras da mídia são mais sofisticadas, mas igualmente absurdas
Na sexta à tarde (13 de março de 2018) O porta-voz oficioso do governo ilegítimo, o âncora
e blogueiro Reinaldo Azevedo, condenou o PSOL e as esquerdas por estarem - estarmos -
tentando "politizar" os assassinatos de Marielle e Anderson, reforçando a crença de que
não deveria estar ocorrendo a intervenção federal no Rio (VER). Azevedo, assim como o
comentarista de política da Globonews, Valdo Cruz, disseram nesta tarde que "apenas a
intervenção federal pode conter a 'violência' no Rio". Azevedo foi além, em seu editorial
radiofônico, dizendo que o PROJACSTÂO, capitaneado por Caetano Veloso, está à frente da
"politização" do óbito. Ou seja, estão acusando militantes políticos - não me refiro aos
artistas, globais ou não - de politizarem um assassinato que é resultado de atuação e de
escolhas POLÍTICAS. Não há desculpa para isso a não ser a tentativa de "acalmar os
ânimos", despolitizando algo que é estruturalmente político. O editorial do jornal O Globo
de 17 de março de 2018 passa a fronteira do ridículo, afirmando "Sectarizar morte de
Marielle é um desserviço" (VER). Pelo visto o Jardim Botânico e o Cosme Velho seguem na
mesma toada de tentar fazer a panela subir a pressão e aliviar a rua, quando julgarem ser
conveniente. Algo me diz que dessa vez não vai dar certo. O assassinato de uma militante é
um crime político!
Tanto é político o ato de fiscalizar e denunciar a segurança pública voltada ao extermínio
e banalização da violência, como é hipocrisia política alegar querer mexer na segurança
fluminense sem alterar sua estrutura. Falácia perigosa, sinal da tensão que alerta o
Jaburu e as mídias ao seu redor.
Sobre segurança pública e direitos humanos
Outra baboseira mil vezes repetida é a afirmação de que a esquerda é apenas a "inimiga das
polícias". Trata-se de uma falsa polêmica, de um absurdo completo quando a imbecilidade à
direita taxa os "defensores de direitos humanos" como protetores de "bandidos". É justo o
oposto. Mesmo dentre aqueles e àquelas que defendem os Direitos Humanos, há uma defesa
intransigente do direito à vida. Também há uma defesa intransigente dos direitos do preso,
porque do contrário, quem está no sistema prisional vira refém das facções e não terá
chance alguma de reabilitação. Na esquerda da esquerda, quando há uma justa e profunda
desconfiança para com o aparelho repressivo, também há uma noção realista de que o pouco
patrimônio dos debaixo, assim como a vida de trabalhadoras e trabalhadores, deve ser
defendido.
Não há conivência com "bandidos" e sim denúncia de quando as forças policiais se comportam
como tais. Quem já enterrou amigo, vizinho, parente ou aluno (menor de idade!) em função
da insegurança urbana e de atos absurdos das forças do Estado sabe o que estou afirmando.
Se fosse para debater modelos de eficiência policial, se este fosse o caso da intervenção
federal Rio, estaríamos - estão eles - anos luz distantes do que melhor se produziu até
hoje dentre os pesquisadores brasileiros - fardados, policiais, juristas e acadêmicos - a
este respeito. Se há dúvida, vejam os depoimentos e reflexões nos últimos vinte anos
pronunciados por sumidades no tema como o delegado Hélio Luz e Luiz Eduardo Soares. Ambos
"acreditam" no aprimoramento do sistema e têm caracterizações muito duras a este respeito.
O modelo policial é arcaico, corrupto e carcomido - o que não implica que todo policial
assim se comporta - e especificamente no caso do Rio de Janeiro, já está tudo dito e nada
foi feito. NADA. Eis o resultado. Falsa polêmica, grupos de extermínio, prevalência das
facções no varejo do tráfico e no sistema prisional, além da existência de milícias. Se
não acabar com o Arrego e o Esculacho no Rio, enquanto as comunidades não receberem todos
os serviços urbanos e políticas públicas, nada muda. Nada. O resto é só hipocrisia e
proselitismo fascistoide de eleitores de Bolsonaro ou defensores do indefensável governo
golpista.
Apontando conclusões: o assassinato de uma militante negra e o fim das ilusões
O assassinato de Marielle Franco, vereadora e militante negra do PSOL do RJ é a ponta do
novelo do show de horrores que é o Brasil, em geral, e o Rio de Janeiro em particular.
Toda a pirotecnia da intervenção federal não acarreta mais "segurança" para a população,
mas sim a incidência de uma força externa - o Comando Militar do Leste, CML - ampliando
prerrogativas para um governo ilegítimo e sua tentação autoritária. Diante dos poderes de
fato, dependendo de cada estado e capital brasileira, nada "protege" a militância, menos
ainda os e as militantes afrodescendentes. Não é hora de disputar proposição e fazer
mesquinharia política, mas é preciso repetir algo que companheiras e companheiros das
esquerdas eleitorais insistem em não ouvir. Todas as ilusões do republicanismo não puderam
evitar um golpe de Estado em 2016. Todas as ilusões reformistas e "dentro da legalidade"
não vão garantir a vida de ninguém. Não dá mais para seguir reclamando que "as
instituições não funcionam como deveriam". Mentira. As instituições pós-coloniais estão
funcionando perfeitamente bem. Defendem a Casa Grande e usam de todos os recursos para
deixar a maioria "no seu lugar". Até quando va
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