(pt) federacaoan arquista gaucha: A política sequestrada no Rio Grande do Sul e a batalha contra a institucionalização das lutas da esquerda - Contribuição de Zé Martins, militante da FAG
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Sexta-Feira, 9 de Fevereiro de 2018 - 07:17:53 CET
Este texto busca debater o problema da institucionalização das lutas a partir de dois
episódios recentes ocorridos no RS. Sem focar nos desfechos, mas no que se passou em um e
em outro evento em termos de mobilização e presença de rua, buscamos apontar as graves
consequências para o conjunto da esquerda e das classes oprimidas no âmbito das lutas de
médio e longo prazos quando a atuação política gira em torno das instituições do Estado.
---- Em menos de uma semana, o Rio Grande do Sul presenciou pelo menos dois momentos
políticos de grande importância. Dias 23 e 24 de Janeiro de 2018, no episódio do
julgamento de Lula no TRF-4: cerca de 40 mil pessoas, vindas de diferentes partes do
estado, participaram do ato em defesa do ex-presidente petista. Dias 29, 30 e 31 de
Janeiro de 2018, na tentativa do governo Sartori em aprovar seu pacote neoliberal: entre
200 e 300 pessoas contrárias ao ajuste fiscal na Praça da Matriz e algumas outras dezenas
nas galerias da Assembleia Legislativa.
São duas cenas que destoaram não somente pela pauta, mas pelo que se viu de gente nas
ruas. Mas o que mais no diz este contraste?
Os dois episódios
Ainda que o ato do dia 23 em defesa de Lula (a insígnia geral era "Pelo direito de Lula
ser candidato") tenha sido bastante "comportado", dentro dos scripts já consolidados pelas
burocracias sindicais e comícios eleitorais, chamou atenção a capacidade de convocação das
direções de organizações que possuem relação com o PT (como a CUT ou o MST) e o apelo
carismático da figura do ex-presidente. Em certa medida o próprio partido e sua principal
figura pública demonstraram algum vigor. Pode ter sido apenas simbólico e demasiado
calcada na institucionalidade, mas vale ressaltar as milhares de pessoas nas ruas, algo
muito difícil para a esquerda em geral nos últimos tempos.
No dia 24, com a confirmação da condenação em segunda instância, houve um bloqueamento de
via em Porto Alegre e discursos sobre "desobediência civil" por parte de um deputado e
lideranças de movimentos sociais. Pequenas iniciativas que contrastam com o comportamento
dos grupos ligados ao PT diante dos retrocessos nos governos de Lula e Dilma. Não custa
lembrar que as condições que possibilitaram mais uma condenação de Lula foram, em grande
medida, produzidas nesses governos. Vide as nomeações do STF, a Lei de Drogas, o
encarceramento em massa e com prisões sem julgamento, o fortalecimento das polícias e seus
poderes e a Lei Anti-terrorismo
(https://theintercept.com/2018/01/25/lula-dilma-policial-violencia-pt/) - sem falar no
fortalecimento de elites políticas e econômicas que buscam sua riqueza ao explorar a
pobreza e a dizimar indígenas e quilombolas sem qualquer freio. Mas a despeito das
contradições do processo, presenciamos uma forte e eficiente convocação. Ainda que com
muitas "presenças ilustres" e políticos "consagrados", houve presença para além das
direções e figuras públicas.
Já nos atos dos dias 29, 30 e 31, vimos pequenas tendas de direções de sindicatos, poucos
trabalhadores das bases, alguns militantes, algumas bandeiras. Ainda que tenha havido
muita disposição por parte de uma brava parcela da militância de esquerda (a qual podemos
nos orgulhar de nos incluirmos), o que assistimos foi um misto de omissão com jogo de
faz-de-conta por parte da maioria das direções sindicais que representam setores
diretamente atingidos pelo pacote de maldades de Sartori (PMDB) - sem falar na omissão de
outras direções de outros movimentos sociais e organizações e partidos políticos da
esquerda institucionalizada. Não houve convocação, não houve esforço para a luta, não
houve sequer propaganda contrária ao pacote chamado de "recuperação fiscal". A RBS e o
governo ditaram praticamente sozinhos o tom do debate como "ultimo recurso do governo"
para "salvar" o estado
(http://reporterpopular.com.br/regime-de-recuperacao-fiscal-mais-ladaia-menos-direitos/).
Nenhuma direção sindical mobilizou e chamou paralisações para o dia. E os trabalhadores e
trabalhadoras que podem até perder seu emprego tiveram que trabalhar e se resignar a
torcer à distância. Uma política de torcida, uma política de gazebos com direito à TV e
rádio para cobrir o espetáculo das manobras parlamentares. Nada mais. Foi devastador olhar
para ruas quase vazias quando se sabe que o patrimônio público do estado está prestes a
ser colocado à venda, precarizando serviços, criando desemprego. Mas talvez seja mais
revelador dessa tragédia o fato de que boa parte das ações se reduziu à torcida pelas
manobras procedimentais da oposição e pela crise da base aliada. Nada mais triste que uma
esquerda que não coloca força nas ruas e se resume a terceirizar a luta para deputados e
para o jogo do poder legislativo. Ao fim, com o resultado contrário ao governo,
burocracias sindicais cantaram vitória com fotos para as redes sociais (afinal precisam se
legitimar permanentemente para ganhar eleições). Como se já não fosse suficientemente
triste toda desmobilização, ainda houve cânticos com "Outubro já vem raiando, Meu bem...".
E os deputados ali, com as fotos e os sorrisos da próxima campanha prontos.
Contra o sequestro da política: a importância da luta desde a base com democracia e ação
diretas
Propomos que o foco da reflexão não seja a contagem de onde havia mais gente, mas sim a
disposição e o trabalho militante que convoca e organiza majoritariamente (quando não,
exclusivamente) em uma linha de atuação, colocando todas as forças da ação coletiva
(energia militante, recursos financeiros, capacidade organizativa) junto à
institucionalidade. Em ambos os casos a tônica é a canalização do conflito social para
vias super-institucionalizadas. Essas vias têm se mostrado incapazes de responder aos
anseios do povo. Sempre afirmamos que a maquinaria estatal é instrumento de dominação das
elites sob o capitalismo, o racismo e o patriarcado. Mas se os argumentos não convencem,
devemos lembrar que o golpe parlamentar de 2016 contra Dilma comprova que esta via está
fadada ao fracasso: basta a elite querer mais lucros e poder de decisão que as figuras
petistas se tornaram descartáveis - mesmo sendo os governo petistas ferramentas de
conciliação de classes e apaziguamento do conflito social latente. Ainda que seja
necessário reivindicar que avanços são fruto de lutas históricas e não concessões, alguém
poderia argumentar que os governos petistas beneficiaram os mais pobres. Mas façamos um
esforço de contrastar isso com o tamanho do abismo social do país onde cinco bilionários
brasileiros concentraram o equivalente à metade da renda que fica com a população mais
pobre
(http://reporterpopular.com.br/concentracao-de-riqueza-e-desigualdade-no-brasil-e-no-mundo/).
A tese de que a esquerda poderia acumular forças com o PT no governo cai por terra. O fim
do ciclo político e econômico do chamado "ganha-ganha" (como se fosse possível que os de
cima e os de baixo ganhem de foma igual), estamos vendo que sem mobilização social, não se
garantem sequer os direitos conquistados. Que dirá avançarmos rumo a outra sociedade!
No entanto, o que gostaríamos de ressaltar sobre essa institucionalização das lutas e
sobre as disputas em torno dos espaços das instituições estatais são os efeitos que se
produzem no conjunto da esquerda organizada e das classes oprimidas. A institucionalidade
do Estado e a briga por cargos em eleições não produz muito além de ajustes dentro de um
quadro predeterminado de dominação de classe. A institucionalidade liberal-burguesa não
está em disputa se nosso horizonte é superar essa sociedade brutalmente injusta que
monopoliza os meios de fazer política e os meios de produção e troca, para criarmos uma
sociedade radicalmente democrática, justa, igualitária, baseada na autogestão e na
descentralização do poder político. Essa institucionalidade burguesa, ao reforçar o modelo
representativo e indireto de democracia, não é capaz de produzir mudanças para além dos
esquemas de dominação, opressão e centralização das decisões. Quando parte da esquerda
reforça esses modelos, vão sendo abandonadas táticas que poderiam fomentar uma cultura
combativa e permanentemente educativa. Por isso, é preciso fomentar práticas políticas com
o menor número de intermediários para decidir (democracia direta), com o menor número de
intermediários para agir (ação direta) e com o maior número de articulação de lutas e
instâncias organizativas desde a base (federalismo). Do contrário, estamos usando os
mesmos meios que nossos inimigos de classe. Se jogamos dentro de suas regras, como esperar
chegar a outros fins? Não nos enganemos: muitas vezes uma vitória no âmbito parlamentar -
como no caso dos dias 29, 30 e 31 - é o sintoma do retrocesso do movimento social e da
luta de médio e longo prazo.
Como socialistas libertários, como anarquistas que somos, defendemos a pluralidade na
esquerda e não taxamos de inimigos aqueles que apostam suas fichas nas eleições. Mas não
deixamos de apontar os retrocessos que essa tática traz à esquerda como um todo:
movimentos sociais atrelados a governos e eleições, lutas que deixam de ser feitas pelos
seus protagonistas para serem terceirizadas a políticos profissionais, consolidação de
burocracias que agem em nome de quem não decidiu, negociatas e conciliação com patrões. A
herança para toda a esquerda tem sido, consequentemente, o enfraquecimento da capacidade
convocatória e organizativa, a destituição de sentido dos espaços de debate políticos, a
substituição da classe por parlamentares e negociadores e a fragmentação e o sectarismo
advindos da definição das lutas, não pelas bases, mas por partidos e calendários eleitorais.
Alguns dirão que o dia 23 "foi em defesa da democracia" para justificar por que se vai
para a rua com Lula, mas não se vai para a rua com o povo gaúcho. Outros dirão que a
figura de Lula, pela popularidade, coloca gente na rua por si só. Mesmo as tomarmos isso
como verdades, sabemos que apenas a dependência de uma figura e o personalismo são
consequências das táticas hegemônicas de certa esquerda nos últimos 30 anos. Por isso, por
qualquer perspectiva que assumimos, o fenômeno é resultado de trabalho (até de anos de
trabalho). A ideia de "espontaneidade" não explica. Assim como uma suposta e
descontextualizada "falta de politização" ou "falta de vontade da população" não explicam
o baixo engajamento na luta contra o ajuste fiscal de Sartori.
No entanto, não cabe uma comparação entre esses eventos políticos em si já que eles têm
naturezas bem diferentes. O que vale, para a reflexão que propomos, é a comparação em
termos de disposição (ou predisposição) para a luta. Vale especialmente uma comparação
para avaliarmos quais os gatilhos que colocam em movimento grande parte das direções de
movimentos sociais para a organização das lutas. O mais importante é refletir sobre que
tipo de cultura política estamos produzindo quando algumas lutas e algumas táticas são
abandonadas em detrimento da institucionalidade estatal. Que tipo de cultura de luta se
consolida e se reproduz quando salvar um pré-candidato tem mais importância que um dos
piores ataques que o povo do Rio Grande do Sul já viu? A mesma pergunta valeria, em nível
nacional, para avaliarmos o que significa o fracasso das lutas contra a Reforma
Trabalhista com a abominável traição à tática histórica da Greve Geral. A fé nas próximas
eleições e a burocratização e acomodação de direções sindicais explica muito deste fracasso.
Por uma política do povo
As imagens que ressaltamos no início deste texto servem para ilustrar como a política tem
sido sequestrada pela institucionalidade do Estado: pela as eleições e pelo judiciário (no
caso dos dias 23 e 24) ou pelo Poder Legislativo (no caso dos dias 29, 30 e 31). E nisso,
são em parte cúmplices e em parte parceiros, muitas organizações e partidos de esquerda
(ou que se reivindicam de esquerda). Neste sequestro estamos perdendo não apenas nossos
direitos, mas também as forças para fazer uma política desde baixo: não uma política que
precise torcer por deputados, mas uma política das ruas que faça tremer qualquer deputado.
A política é a luta de forças que se opõem a partir daquilo que é inegociável. Para nós,
direitos conquistados são inegociáveis, serviços públicos de qualidade são inegociáveis,
liberdade e justiça social são inegociáveis. A política não é a arte de negociar. Por isso
não deve ser entregue nas mãos de quem tem um cargo ou se auto-intitula um "bom debatedor
e bom negociador". A política é a dinâmica que define o poder de decisão, o poder de fazer
algo acontecer. Por isso os anarquistas sempre defenderam que a política deve ser do povo
e não pode ser monopolizada pelos governantes e pelas regras do Estado, muito menos pelos
ricos e pelas regras do capitalismo.
Seguiremos defendendo o socialismo e a liberdade, trabalhando humildemente em cada frente
de atuação, em cada sindicato, bairro ou escola e em cada manifestação. Para que a
política não seja sequestrada, mas permaneça nas mãos de trabalhadoras e trabalhadores
contra os desmandos das elites políticas e empresariais.
Façamos nós por nossas mãos, tudo o que a nós diz respeito!
https://federacaoanarquistagaucha.wordpress.com/2018/02/03/a-politica-sequestrada-no-rio-grande-do-sul-e-a-batalha-contra-a-institucionalizacao-das-lutas-da-esquerda/
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