(pt) anarkismo.net: Vida e Obra de Bakunin by Felipe Corrêa
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Segunda-Feira, 23 de Janeiro de 2017 - 10:35:07 CET
Introdução ao livro "Revolução e Liberdade: cartas de 1845 a 1875", de M. Bakunin (Hedra,
2010) ---- Introdução ao livro "Revolução e Liberdade: cartas de 1845 a 1875", de Mikhail
Bakunin, publicado pela editora Hedra em 2010. ---- "Contar a vida de Bakunin é contar a
vida do socialismo e da revolução na Europa durante mais de 30 anos (1840-1876), pois ele
contribuiu ou participou de todos os progressos da idéia e dos fatos revolucionários."
Filippo Turrati ---- Esta compilação de cartas do revolucionário russo Mikhail Bakunin é
uma reedição ampliada do livro Bakunin por Bakunin: cartas, publicado em 1987 pela editora
Novos Tempos, com seleção e tradução de Plínio Augusto Coêlho. As 16 cartas que constam na
primeira edição foram mantidas e outras 14 foram adicionadas, compondo um todo que
enriquece a publicação da editora Hedra e confere a ela certo ineditismo.
Ainda que a maior parte das cartas de Bakunin tenha sido perdida, resta ainda muita coisa.
Neste volume, o leitor terá a possibilidade de conhecer boa parte desse material, que
retrata um período de 30 anos de sua vida (1845 a 1875), estendendo-se da fase em que
Bakunin atinge certo desenvolvimento e reconhecimento intelectual, até praticamente o
final de sua vida. Conforme afirmou o historiador Max Nettlau, nessas cartas
"havia sempre vida, movimento, algo novo e tudo isso dá à correspondência de Bakunin uma
característica especial: nela encontra-se a elaboração das idéias e sua apresentação em
várias formas combinadas, a discussão das possibilidades e dos meios de ação e, portanto,
sua concepção das questões políticas e sociais de seu tempo; nela observa-se também sua
arte de estudar o caráter de cada um e de, por isso mesmo, fazer da sua ação a mais
efetiva possível. Por isso, para conhecer Bakunin verdadeiramente, é necessário ainda
levar em conta o que ele escreveu em sua imensa correspondência, às vezes pelas
explicações detalhadas, verdadeiros tratados, outras por algumas palavras como epigramas."[1]
Essa publicação ampliada das cartas de Bakunin é relevante, portanto, para que sua
história, e, conseqüentemente, a história dos diversos acontecimentos que a ele estiveram
ligados, possa ser conhecida, compreendida e analisada, com base em fontes primárias
elaboradas pelo próprio autor.
Infelizmente, muito do que se escreveu, e que ainda se escreve, sobre Bakunin, baseia-se
nas posições de seus detratores, em material antigo, ou mesmo em interpretações errôneas
sem qualquer base empírica. Foi assim que se afirmou que Bakunin seria um agente russo a
serviço do czar, que ele seria impotente e que seu espírito revolucionário não seria mais
do que uma frustração em relação a isso, que ele teria um complexo de Édipo que o teria
levado a uma paixão pela irmã, ou que ele teria escrito o Catecismo Revolucionário de 1869.
Além disso, pela atribulada vida de Bakunin, diversos escritos sobre ele tendem a
enfatizar suas aventuras pessoais, os episódios particulares de sua vida, retratando-o
como um espontaneísta, muitas vezes inconseqüente, um idealista, utópico, conferindo menos
importância à sua ação revolucionária, à sua capacidade organizativa, discursiva,
persuasiva, ao seu materialismo, à sua influência nos mais amplos setores progressistas
europeus e, fundamentalmente, à sua capacidade teórica. Mesmos os escritos mais simpáticos
tenderam, na maior parte dos casos, a evidenciar um Bakunin que seria fundamentalmente um
"homem de ação", mas não um teórico de substância e fôlego.
Esta compilação insere-se no esforço que vem sendo realizado há anos de retomar e
reescrever a história de Bakunin, não a partir daquilo que disseram seus desafetos,
daqueles que consideraram somente parte de sua obra, ou das interpretações psicológicas
teleológicas sem qualquer base. A publicação de suas obras completas no CD-ROM Bakounine:
Ouvres Completes, pelo Instituto de História Social de Amsterdã, em 2000, resultado de
praticamente um século de esforços para recuperar os escritos originais de Bakunin,
fornece às novas gerações elementos fundamentais para chegarmos a posições mais
definitivas e menos distorcidas sobre sua história, já que apresenta a totalidade de seus
escritos e cartas. Esse é o caso da recente biografia Bakunin: The Creative
Passion[Bakunin: a paixão criativa], escrita por Mark Leier e publicada em 2006 nos EUA
pela St. Martin's Press, considerada por muitos a melhor biografia de Bakunin,
fundamentalmente por considerar todos seus originais, incluindo as descobertas mais
recentes, suas principais biografias, e apresentar tanto os aspectos de sua vida pessoal
como sua teoria e prática desenvolvidas no seio do movimento popular europeu do século XIX.
No Brasil, as traduções de Plínio Augusto Coêlho e as publicações da editora Imaginário /
Novos Tempos, realizadas permanentemente desde os anos 1980, já colocam o Brasil entre os
principais países na tradução e publicação da obra de Bakunin, ainda que muito esteja por
ser feito.
Esta introdução buscará, breve e modestamente, oferecer ao leitor um pano de fundo da
teoria e da prática de Bakunin, este que foi, segundo as palavras do historiados G.D.H.
Cole, "senão o fundador do anarquismo moderno, pelo menos sua liderança mais sobressalente
quando, pela primeira vez, chegou a constituir-se como um movimento internacional
organizado".[2]A introdução foi dividida em três períodos: um primeiro, que vai do
nascimento de Bakunin em 1814 até sua prisão em 1849, um segundo, que trata dos anos de
prisão (1849-1861), terminando em sua fuga, e um terceiro, que vai da retomada das
atividades revolucionárias na Europa, nos fins de 1861, até a sua morte em 1876. Dessa
maneira, as cartas deste livro poderão ser entendidas dentro do contexto específico em que
foram escritas, possibilitando relacioná-las com os acontecimentos e a conjuntura que
envolveram a atuação de Bakunin.
A VOLÚPIA DE DESTRUIR É AO MESMO TEMPO UMA VOLÚPIA CRIADORA
Mikhail Bakunin nasceu em 18 de maio de 1814, na propriedade de seu pai em Premukhino -
uma localidade russa na província do Tver, entre Moscou e São Petersburgo. Seu pai,
Alexandre Bakunin, era um membro da nobreza russa e havia herdado essa propriedade de seu
pai, juntamente com 500 servos; ainda que tivesse características conservadoras, Alexandre
era um homem de coração bom, com inclinações humanitárias e liberais. Casou-se aos 40 anos
com Varvara Muriaeva, 24 anos mais nova, também da nobreza. Terceiro filho de Alexandre e
Varvara, Bakunin passou a infância em Premukhino, foi educado em casa junto com as irmãs,
e ingressou aos 14 anos na escola de artilharia de São Petersburgo.
Na escola militar, a disciplina, o autoritarismo, a postura dos outros cadetes e uma
punição recebida fizeram com que perdesse o interesse pela carreira no exército e
descobrisse seus desejos pela liberdade e a necessidade da vida coletiva. Estudava muito
naquele período, e, nem mesmo uma promoção a oficial aos 18 anos o motivou; decidiu
abandonar a escola nos fins de 1835.
Foi à Moscou onde, trabalhando como professor de matemática, preparou seu magistrado em
filosofia e participou do círculo de Stankevitch, no qual polemizou com Belinsky. O
período de estadia em Moscou, que se estendeu até 1840, foi de um trabalho intelectual
intenso com muita leitura, debates filosóficos e alguns escritos; apaixonou-se pelo
romantismo e pelo idealismo alemão, influenciando-se especialmente por Fichte e Hegel. Sob
a influência de Hegel, propôs uma reconciliação com a realidade, rompendo com as idéias
puramente abstratas e sustentando que a ação prática e a resistência deveriam existir em
relação direta com a teoria. Já em 1838 era um dos principais hegelianos russos e,
buscando a continuidade de seu desenvolvimento intelectual, decidiu ir à Alemanha, o que
fez em meados de 1840.
Na Alemanha, Bakunin residiu em Berlim de 1840 a 1842, onde fez parte da extrema esquerda
hegeliana, revolucionária e atéia, que contava com Feuerbach e Bruno Bauer. A evolução
intelectual de Bakunin nesse período se deu, principalmente, pela influência de Ruge,
Werder e Schelling. Em outubro de 1842 publicou "A Reação na Alemanha", que apresenta duas
contribuições fundamentais: a primeira, de uma interpretação de Hegel que constituiria as
bases de uma transformação revolucionária; a segunda, de uma dialética que, ainda que
fundamentada em Hegel, diferencia-se de sua dialética triádica clássica, propondo uma
dialética baseada somente em dois elementos, um positivo e outro negativo, cujo resultado
seria a criação de um novo positivo, sem relação com o antigo. Uma frase finaliza esse
texto, sintetizando suas idéias acerca da dialética e da revolução: "a volúpia de destruir
é, ao mesmo tempo, uma volúpia criadora".
Por razão da repressão, Bakunin foi à Zurique no início de 1843. Nesse período, teve
contato pela primeira vez com o comunismo, pelo contato com Weitling, e foi influenciado
por Feuerbach. Weitling foi preso e Bakunin denunciado ao governo russo que, em fevereiro
de 1844, intimou-o a apresentar-se para retornar à Rússia. Fugindo da justiça russa, foi a
Bruxelas, onde fez contato com emigrados poloneses, que lhe falaram da opressão sofrida
pelo povo eslavo e protagonizada pela Rússia, Prússia, Áustria e Turquia, o que o
interessou e fez com que iniciasse um engajamento na luta antiimperialista do povo eslavo
contra seus opressores. Depois dessa breve passagem pela Bélgica, foi a Paris, onde
recebeu a notícia de que fugir do governo russo havia lhe custado uma condenação, que
previa a perda seus direitos de nobreza, o confisco de bens e a deportação para a Sibéria.
Permaneceu em Paris de 1844 a 1847, vinculando-se a Proudhon, o francês proletário e
socialista que havia publicado O que é a Propriedade? em 1840, um livro que fundamentava a
crítica socialista do sistema capitalista baseado na propriedade privada. Proudhon, com a
publicação dessa e de diversas outras obras, influenciou determinantemente Bakunin com seu
socialismo que previa um federalismo autogestionário que, aplicado na economia e na
política, colocaria os trabalhadores à frente da gestão de seus próprios assuntos,
conciliando a liberdade individual e coletiva, e prevendo uma co-existência da propriedade
coletiva com a propriedade individual dos camponeses que, sob a noção de posse, garantiria
o fim da exploração do trabalho na cidade e no campo. Ainda em 1844, na busca pela
organização e pelo trabalho prático, Bakunin engajou-se definitivamente na luta pela
independência dos eslavos, motivado pelo caso dos poloneses, aos quais se aliou, apoiando
agitações locais, propondo uma aliança entre o povo russo e polonês contra o imperialismo
e em favor da autodeterminação dos povos. Bakunin considerava a libertação nacional como o
primeiro passo na luta por uma revolução de bases democráticas, que deveria conduzir a uma
república federativa dos países eslavos. Em novembro de 1847, Bakunin discursou na
comemoração da insurreição polonesa de 1831, enfatizando essa sua proposta de aliança dos
eslavos na luta contra a opressão do governo russo. Aclamado pelos 1500 presentes, o
discurso custou-lhe a expulsão da França.
Retornando a Bruxelas, Bakunin reencontrou Marx, quem havia conhecido em 1844.
Profundamente diferentes, ainda que fossem egressos do hegelianismo de esquerda, Marx e
Bakunin já se desentendiam por questões pessoais e políticas. Além do rompimento entre
Marx e Proudhon que certamente contribuía com esse desentendimento, destacam-se, já nesse
momento, três pontos de divergência entre Bakunin e Marx: as relações entre teoria e
prática, as concepções de dialética e do desenvolvimento histórico. Marx buscava
desenvolver uma teoria que dotasse o proletariado de capacidade filosófica, defendia a
dialética hegeliana clássica - no esquema tese, antítese e síntese - e, baseando-se em sua
concepção materialista, entendia o capitalismo como uma etapa necessária para o alcance do
socialismo, o que se poderia chamar de "etapismo". Bakunin, diferentemente, acreditava que
teoria e prática deveriam nutrir-se mutuamente, considerava impossível a conciliação entre
tese e antítese - para ele, essa conciliação poderia apontar para o reformismo - e
sustentava que a revolução deveria ser buscada imediatamente, nos países mais e menos
desenvolvidos.
Em fevereiro de 1848 estourou a revolução em Paris, que se inseriu dentro dos episódios
que ficaram conhecidos como a Primavera dos Povos, e Bakunin, sedento por ação, juntou-se
ao levante francês, atuando com a extrema esquerda nas barricadas e integrando a milícia
de Caussidière. Combatendo por vários dias, Bakunin achava incrível o povo em armas;
pregava o comunismo, a igualdade, a libertação dos eslavos, o fim do imperialismo e a
revolução permanente. Participou, em junho de 1848, em Praga, do Congresso Geral dos
Eslavos, tentando radicalizá-lo e pregando o antiimperialismo. Ainda naquele mês,
estourava a chamada Insurreição de Praga, que colocou em lados opostos o povo insurreto e
o exército imperial. Bakunin apoderou-se de um fuzil e lançou-se novamente no combate:
lutou corajosamente até o último momento, mas, com a derrota dos insurretos, teve que
fugir. Encontrou refúgio no principado de Koethen, na Prússia, desenvolvendo suas idéias
em um artigo chamado de "Apelo aos Eslavos", no qual sustenta a possibilidade de uma união
dos eslavos contra o imperialismo, direcionando as forças do nacionalismo para a revolução.
Esse período de 1848 a 1849 foi marcado, também, pelos conflitos em torno do "etapismo",
com Marx, mas, especialmente, com Engels, que, atacou o "Apelo" sustentando que a ocupação
do México pelos Estados Unidos e a opressão dos eslavos eram necessidades
históricas.[3]Esse desacordo, que continuaria ainda por décadas,
"era muito mais do que um estrito debate sobre a natureza da sociedade eslava. Ele
refletia diferenças em relação a questões sobre filosofia, natureza da história,
estratégia política e experiência pessoal. Bakunin sustentava que a história poderia
movimentar-se rapidamente em tempos revolucionários e que a humanidade não tinha que
passar pelos estágios econômicos específicos numa ordem exata.[...]Ao passo que Marx e
Engels viam a expansão da produção econômica como um ingrediente essencial para a
liberdade humana, e assim apoiando as investidas dos EUA sobre o México e da Alemanha
sobre os eslavos, Bakunin sustentava que era possível criar sociedades mais livres,
independente do nível da economia. Era possível para sociedades menos desenvolvidas
aceitar a revolução social e remover esses obstáculos, os sistemas sociais e as estruturas
do império, do Estado, da Igreja, dos senhores e do capitalismo, que impediam o povo de
controlar suas próprias vidas."[4]
Bakunin, ainda nos fins de 1848 foi a Praga, voltou a Koethen e foi para Leipzig, na
Saxônia, onde chegou no início de 1849, preparando a insurreição da Boêmia e
estabelecendo-se em Dresden. Lá estava, quando, nos fins de abril, estourou a insurreição.
Durante os episódios em Dresden, nos quais aprofundou suas relações com o músico Richard
Wagner, assim que viu que o povo estava disposto a lutar, entregou-se à luta de corpo e
alma. "A energia de suas resoluções, sua bravura inquebrantável, sua estatura hercúlea
rapidamente despertaram a lenda."[5]Bakunin foi um dos mais ativos comandantes militares
do levante, tornando-se "o verdadeiro chefe militar da insurreição".[6]Mesmo com a
distribuição de armas e munições ao povo, a insurreição perdeu forças em alguns dias.
Quando, exausto, descansava em um pequeno hotel em Chemnitz, na Saxônia, Bakunin foi preso
em 10 de maio pela burguesia local e levado à prisão de Dresden. Começaria aí a pior fase
de sua vida.
A LIBERDADE OU A MORTE
O governo russo foi comunicado da prisão de Bakunin, que aguardou dois meses até sua
transferência para a fortaleza de Königstein, o que ocorreu em julho de 1849, prisão na
qual passou seis meses. Em janeiro de 1850 foi condenado à pena de morte pelo tribunal da
Saxônia, pena que, em junho, foi comutada para prisão perpétua. Foi extraditado para Praga
e depois transferido, em março de 1851, para a fortaleza de Olmütz. Nessa fortaleza,
passou momento de sofrimentos inigualáveis: foi acorrentado às paredes e assim permaneceu
por seis meses seguidos. Em maio foi novamente condenado à morte, dessa vez pelo governo
austríaco, pena que também foi comutada para prisão perpétua. Entregue às autoridades
russas, Bakunin foi encarcerado na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, onde
permaneceu de 1851 a março de 1854, no pior lugar da prisão - a fortificação de Aleksei.
Dois meses após sua chegada, o conde Orlov, responsável pela fortaleza, visitou Bakunin
oferecendo-o uma chance para que se redimisse de seus crimes, escrevendo ao czar Nicolau I
um pedido de perdão. Bakunin logo concordou e escreveu, ainda em 1851, sua "Confissão".
Ainda que com referências formais ao czar, esse texto reflete as convicções políticas de
Bakunin e possui uma severa crítica do regime czarista e a proposição de uma série de
medidas que julgava necessárias para a Rússia daquele tempo. Ao final da "Confissão",
Bakunin pediu que sua prisão perpétua fosse comutada para trabalhos forçados, colocando
todos os suplícios que vinha sofrendo:
"Sou um grande criminoso e não mereço perdão! Isso eu sei, e se me houvesse sido dada a
pena capital, eu a haveria aceitado como um castigo merecido e quase com alegria, pois ela
teria me libertado de uma existência insuportável, intolerável.[...]Não me deixeis
consumir na prisão perpétua![...]Se os trabalhos mais duros pudessem ser meu destino, os
aceitaria com reconhecimento e como uma graça.[...]Mas na reclusão[...]vive-se apesar de
tudo e, sem morrer, morre-se dia após dia na inatividade e na angústia.[...]"[7]
Ainda que Bakunin tenha dito estar arrependido de suas idéias e de seus atos
revolucionários, sua vida futura demonstrou que isso havia sido dito para que conseguisse
a liberdade. O conde e o czar concordaram, em agosto de 1851, que Bakunin era ainda um
homem muito perigoso e que não deveria ser libertado. Em março de 1854 Bakunin foi
transferido para a prisão de Schlüsselburg, onde ficou até 1857. Em meados de 1854,
Bakunin estava devastado, sua condição havia piorado muito e diversas doenças o acometiam:
tinha hemorróidas, febres, dores de cabeça, zumbidos no ouvido dificuldades de respirar.
Além disso, a dieta da prisão havia lhe causado escorbuto, que lhe provocou chagas no
corpo e foi responsável pela perda de todos os seus dentes.
Em 1855, com a morte do czar Nicolau I, Alexandre II assumiu o trono e promoveu uma
anistia geral entre os presos políticos. No entanto, a anistia não libertou Bakunin que,
em fevereiro de 1857, escreveu uma nova carta ao czar. "Considero-me como um velho, e
sinto que já não tenho muito tempo de vida", escreveu Bakunin, que pedia somente uma
coisa: "a liberdade ou a morte".[8]Nesse mesmo mês, sua prisão foi comutada para uma
deportação para a Sibéria, onde passou os próximos quatro anos de sua vida. Essa
liberdade, ainda que cerceada, permitiu que Bakunin logo se recuperasse; trabalhou em uma
chancelaria e deu aulas de francês, o que lhe permitiu conhecer Antonia K. Kwiatkowska,
uma jovem de 17 anos, filha mais velha de um trabalhador polonês da indústria do ouro.
Mesmo com a grande diferença de idade, os dois apaixonaram-se e casaram-se em outubro de
1858. Na Sibéria, Bakunin trabalhou também na Companhia Fluvial do Amur, na empresa do
negociante de ouro Bernardaki e, nesse contexto, traçou um plano da fuga, que se iniciou
em meados de 1861.
Venceu mais de 3000 quilômetros de descida do rio Amur em um barco, de Irkutsk até
Nikolaevsk. Embarcou em julho no barco russo Strelok e passou a um clíper americano, indo
ao porto da cidade de Olga, de onde navegou rumo à cidade de Hakodate no Japão, lá
chegando em meados de agosto. Passou por Yokohama, por San Francisco, nos EUA, e pelo
Panamá em outubro, chegando a Nova York em novembro. Permaneceu um mês na região e partiu
para Londres, chegando no dia 27 de dezembro de 1861. Em seis meses de fuga, percorreu
mais de 30 mil quilômetros. Mas, enfim, estava livre.
A LIBERDADE SEM O SOCIALISMO É O PRIVILÉGIO, A INJUSTIÇA; O SOCIALISMO SEM LIBERDADE É A
ESCRAVIDÃO E A BRUTALIDADE
Chegando em Londres ao final de 1861, Bakunin juntou-se a Herzen e Ogarev, participando do
periódico Kolokol; no início de 1862, Bakunin publicou "Aos Russos, Poloneses e Todos os
Amigos Eslavos" e no meio do ano, "A Causa do Povo: Romanov, Pugatchev ou Pestel?". No
início de 1863 tentou juntar-se à insurreição polonesa, mas não conseguiu. Permaneceu na
Suécia até outubro, encontrou-se com Antonia, passou por Londres, Bruxelas, Paris,
Genebra, Berna, estabelecendo-se, no início de 1864, na Itália. Nesse período em que
esteve na Itália, Bakunin desenvolveu um imenso trabalho de propaganda e organização
fundando, ainda em 1864, a Fraternidade Internacional, uma organização política secreta
com membros de diversos países que propunha um programa socialista, internacionalista e
libertário. Objetivava estimular a revolução, que deveria "ser feita não para o povo, mas
pelo povo e nunca obterá êxito se ela não envolver apaixonadamente todas as massas do
campo bem como as das cidades".[9]Dois textos de 1866 constituem as bases programáticas da
Fraternidade: "Catecismo Revolucionário" e "Organização".
Bakunin passou, nos fins de 1864, por Londres, Bruxelas, Paris, Genebra, Berna, Florença e
estabeleceu-se em Nápoles, onde viveu de 1865 até setembro de 1867, e depois em Genebra,
onde viveu até 1869. Ainda em 1864, nascia, em Londres, fundamentalmente por obra do
proletariado francês e inglês, a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que
tinha por objetivo organizar o operariado internacionalmente, criando um amplo movimento
de massas. Além disso, as crescentes tensões entre a Prússia e a França fizeram com que se
articulasse, na Suíça, um Congresso pela Paz, que se realizou em Genebra, em 1867, e criou
a Liga da Paz e da Liberdade. Bakunin vinculou-se a este segundo movimento - muito amplo
naquele momento, contanto, no Congresso de 1867, com seis mil participantes - expondo pela
primeira vez, num discurso, as idéias da Fraternidade, e tentando impulsionar o movimento
para o socialismo revolucionário e unifica-lo com a AIT. O discurso de Bakunin foi
enriquecido após o Congresso transformando-se no documento "Federalismo, Socialismo e
Antiteologismo", uma proposta de programa para Liga que afirmava: "a liberdade sem o
socialismo é o privilégio, a injustiça; e que o socialismo sem liberdade é a escravidão e
a brutalidade".[10]
Em julho de 1868 Bakunin aderiu individualmente à seção da AIT de Genebra. A Internacional
havia realizado em 1866, em Genebra, seu primeiro congresso, definindo seus estatutos, e
em 1867, seu segundo congresso, em Lausanne, discutindo nove questões que envolviam o
proletariado internacional. Em setembro de 1868, realizou o terceiro congresso em
Bruxelas, discutindo outras seis questões. Dentre as questões discutidas estava a da
propriedade coletiva, que marcou a radicalização da AIT, que acompanhava o crescimento de
suas bases e de sua autoridade moral. Logo depois desse congresso, ocorreu o segundo
congresso da Liga da Paz e da Liberdade, em Berna. Atraindo uma quantidade muito menor de
participantes, o congresso terminou com uma cisão; para Bakunin e outros socialistas, a
paz e a liberdade somente viriam com a justiça social e o socialismo, para a maioria, não.
Com a rejeição do programa socialista pela maioria, a minoria composta por Bakunin e
outros companheiros separou-se da Liga, decidindo juntar-se à AIT. Ainda que conservando
os laços da Fraternidade de 1864, os revolucionários entenderam por bem constituir uma
outra organização política, pública no entanto, que acabou sendo chamada de Aliança da
Democracia Socialista (ADS) e sendo fundada em outubro de 1868, logo após o rompimento com
a Liga. Ela iria funcionar como organização pública até 1869 e, depois, como organização
secreta.[11]A ADS, tanto a pública quanto a secreta, constituía uma organização política,
um tipo de partido, que agrupava membros em torno de um programa político e ideológico,
dando corpo ao anarquismo em funcionamento pleno, organizado internacionalmente, com
objetivo de impulsionar os movimentos populares. Com a fundação da ADS pública, nos fins
de 1868, Bakunin entrou de corpo e alma no movimento operário internacional, decidindo
dedicar-se completamente à AIT.
No entanto, o pedido de entrada da ADS na AIT foi negado pelo Conselho Geral, que, com o
apoio de Marx, justificou que, tendo as duas organizações os mesmos objetivos, a entrada
da ADS poderia desorganizar a Internacional. No entanto, obviamente, isso envolvia as
diferenças entre aqueles que ficariam conhecidos como libertários e autoritários. Visando
conseguir o ingresso na AIT, a ADS propôs ao Conselho Geral dissolver-se como organização
internacional, acabar com seu bureau central e que suas seções na Suíça, na Espanha, na
Itália e na França fossem aceitas como seções da AIT, o que foi aprovado pelo Conselho
Geral em meados de 1869. Nesse mesmo ano, Bakunin auxiliou na formação de uma nova seção
da AIT em Genebra, a Federação Românica, e envolveu-se com duas novas publicações: Progrès
e L'Égalité, na qual publicou uma série brilhante de artigos que inclui: "Os Enganadores",
"A Instrução Integral" e "A Política da Internacional".
O quarto Congresso da AIT, realizado em 1869 na Basiléia, deu ao Conselho Geral o direito
de determinar a filiação das seções, declarou-se favorável à abolição da propriedade
individual e ao estabelecimento da propriedade coletiva e teve um amplo debate sobre a
questão da herança. Se, para os setores marxistas a herança era uma conseqüência da
propriedade privada, para os bakuninistas essa conseqüência, posteriormente, poderia
transformar-se em causa, posição que terminou vencendo a discussão. Após o congresso,
Bakunin prontificou-se a traduzir O Capital de Marx, começando o trabalho em Locarno.
No início de 1870, Serguei Netchaiev voltou a encontrar-se com Bakunin; eles haviam se
conhecido em março de 1869. Impressionado pelas mentiras de Netchaiev - que inventou uma
história que lhe colocava na posição de um herói revolucionário -, mas também por seu
espírito revolucionário e sua energia, Bakunin estimulou-o e ajudou-o, fundamentalmente
entre abril e agosto de 1869, a redigir material de propaganda para difusão na Rússia.
Dentre esse material destacam-se "Os Princípios da Revolução" e o "Catecismo
Revolucionário" - sabe-se hoje que ambos artigos foram escritos por Netchaiev - que
sustentam o revolucionário como "um ser completamente imoral, obrigado a cometer qualquer
crime, qualquer traição, qualquer baixeza ou engano para realizar a destruição da ordem
existente".[12]O autoritarismo jacobino e maquiavélico de Netchaiev, desprovido de
qualquer ética, foi demonstrado em uma série de posições e atitudes: sua concepção
vanguardista de organização, sua posição de que os fins justificam quaisquer meios de
ação, o assassinato de um membro dissidente de seu próprio grupo, as mentiras e chantagens
aplicadas a outros revolucionários, a ameaça de morte ao editor de O Capital - sem o
conhecimento de Bakunin - e a utilização do dinheiro do fundo Bahkmetov. Tudo isso fez com
que, já em junho de 1870, Bakunin rompesse com Netchaiev.
Bakunin publicou, em março de 1870, "Os Ursos de Berna e o Urso de São Petersburgo" e, em
julho, com o começo da Guerra Franco-Prussiana, iniciou a redação de suas "Cartas a um
Francês sobre a Crise Atual", em que afirmou que a solução da guerra estaria na formação
de um exército popular que, juntamente com a luta contra a invasão alemã, deveria
empreender uma guerra civil, visando chegar à revolução social. Sua idéia era "transformar
uma guerra entre Estados em uma guerra civil, para culminar na revolução social". Bakunin
"acreditava que somente uma ampla guerrilha empreendida por todo o povo poderia enfrentar
simultaneamente os exércitos tirânicos inimigos e defender a revolução social contra seus
inimigos internos".[13]No entanto, para Bakunin, o processo revolucionário não poderia ser
organizado em Paris, que naquele momento defendia-se dos ataques dos inimigos; seriam
cidades como Lyon, Marselha e Rouen que deveriam iniciar esse processo. Em setembro de
1870 Bakunin decidiu juntar-se aos revolucionários de Lyon, que haviam proclamado a
república; era o momento para a insurreição armada e para a guerra revolucionária.
"Bakunin incita à insurreição", redige uma proclamação defendendo "a abolição do Estado e
a federação revolucionária das comunas e conclui-se em favor do apelo ‘Às armas'".[14]Em
Lyon, Bakunin também auxiliou na formação do Comitê da Salvação da França, organizou
manifestações públicas e fez parte da tomada do Hotel de Ville, proclamando ali o novo
governo provisório. No entanto, com a intervenção da Guarda Nacional, o espaço foi
retomado e Bakunin preso. Era o fim da Comuna de Lyon. Bakunin foi rapidamente libertado e
voltou à Locarno, na Suíça, passando antes por Marselha.
A onda revolucionária continuava na França e, em março de 1871, estourou a Comuna de Paris
contando, desde o início, com o apoio de Bakunin, que via nela uma demonstração prática da
capacidade popular, que organizava a luta de baixo para cima, levando a cabo um socialismo
que deveria criar um autogoverno do povo, de maneira federalista e acabando com o Estado.
Com a derrota da Comuna, uma imensa repressão atingiu todos os setores progressistas
europeus, o que impediu a realização de um congresso da AIT naquele ano. O Conselho Geral
acabou marcando, por esse contexto, uma conferência privada para setembro de 1871, a
realizar-se em Londres. Com participação absolutamente restrita e sem representação, a
conferência decidiu que o proletariado deveria utilizar a ação política e não poderia
triunfar senão constituindo-se em um partido político; questão que estava em disputa desde
a criação da AIT. Independente das intenções do Conselho Geral, essa deliberação
certamente racharia a Internacional, visto que essa era a posição de um setor minoritário,
com influência nas seções da Inglaterra e da Alemanha; a posição dos setores majoritários,
influenciados pelas posições bakuninistas, na Suíça e na Bélgica, mas fundamentalmente na
Itália e na Espanha, eram contrárias a tal posição e primavam pela ação direta das massas.
Alguns meses antes da conferência de Londres foi publicada a primeira versão de O Império
Cnuto-Germânico e a Revolução Social em que Bakunin afirma suas posições filosóficas, suas
críticas ao capitalismo e ao Estado e também sua estratégia de transformação. Esse período
de 1871 é um dos mais ricos em relação a suas contribuições teóricas, contando ainda com
os escritos como "O Princípio do Estado", "Três Conferências Feitas aos Operários do Vale
de Saint Imier", "Protestação da Aliança" e "A Teologia Política de Mazzini e a
Internacional".
Um último congresso da AIT realizou-se em Haia, em setembro de 1872. Nele, único em que
Marx esteve presente, a tática foi clara: expulsar os adversários anarquistas, e para
isso, eram necessárias provas de que eles vinham desrespeitando as resoluções da AIT.
Acusado pela existência da ADS e pelos fatos que envolveram Netchaiev, Bakunin foi expulso
da Internacional, juntamente com Guillaume. Os delegados restantes aprovaram a
transferência do Conselho Geral para Nova York, o que selaria a morte da AIT. Uma semana
após o Congresso de Haia, os anarquistas reuniram-se em Saint Imier, na Suíça, e criaram
uma outra Internacional, que ficou conhecida como a Internacional Antiautoritária,
contando com a participação de Bakunin e Guillaume e declarando-se contra a imposição de
um programa político-ideológico às massas e contra o objetivo de conquista do poder
político pela classe trabalhadora. Bakunin escreveu neste ano dois textos: "Escrito Contra
Marx" e "Carta ao Jornal La Liberté de Bruxelas", que explicam grande parte das diferenças
entre bakuninistas e marxistas no seio da Internacional.
Entender as diferenças que surgiram no seio da AIT, e que dividiram o operariado
internacional, como uma mera divergência entre Marx e Bakunin é certamente um equívoco. Se
uma comparação entre os dois é sempre útil, é justamente porque ambos incorporaram em si
duas diferentes tendências do proletariado internacional, que se forjaram dentro do
movimento operário e do socialismo que se desenvolvia naquele momento, afirmando distintos
métodos de análise e estratégias. Assim, ambas correntes devem ser reconhecidas como
tendências do movimento operário internacional, tendo surgido das mesmas bases e
influenciando-se mutuamente - e isso permite afirmar que o anarquismo não nasceu da
oposição ao marxismo, mas, proveniente das mesmas raízes, diferenciou-se ao longo do
caminho, propondo outra forma de socialismo.
Essas duas tendências tinham similaridades e diferenças e para compreendê-las é possível
comparar as posições de Marx e Bakunin que demonstram convergências e divergências: tanto
Marx quanto Bakunin eram ateus, pregavam o fim do capitalismo e defendiam a revolução de
bases classistas rumo ao socialismo; no entanto, divergiam no método de análise - o que
apontava para concepções diferenciadas em relação ao momento, o processo e os sujeitos da
revolução - e também na estratégia - fundamentalmente em relação à utilização do Estado
como campo de disputa na sociedade capitalista e como meio de garantir e defender a
revolução socialista.
As posições sobre o método de análise e a estratégia de Bakunin, no período que vai de
meados dos anos 1860 para frente, foi formulada em seus escritos e cartas e pode ser
brevemente definida da seguinte forma. O materialismo de Bakunin, ainda que tenha sido
influenciado pelo de Marx, recusa o "economicismo": para ele, haveria uma influência
múltipla entre as esferas econômica, política e ideológica/cultural; a econômica, por mais
que fosse realmente determinante em muitos casos, em diversos outros casos, seria
determinada pelas esferas política e cultural/ideológica, em um movimento dialético que
não estabeleceria causas e conseqüências fixas, determinadas a priori. Bakunin
identificava a exploração e a dominação existentes na sociedade e sua divisão em classes
e, nessa luta de classes, a revolução poderia ser realizada em países mais ou menos
desenvolvidos e deveria ser levada a cabo tanto pelo proletariado urbano e industrial,
como pelo campesinato e toda a massa de excluídos (o "lumpemproletariado"), em um processo
que destruísse o capitalismo e ao mesmo tempo o Estado, divergindo, portanto, das posições
"etapistas" e da eleição de um ou outro campo do setor de oprimidos.
Bakunin defendia uma estratégia de mobilização internacional e econômica das massas,
organizada em torno das necessidades populares, abarcando dentro de si as mais diversas
concepções políticas e religiosas, sem participação parlamentar. Negava o socialismo
burguês e afirmava que a educação e a propaganda, sozinhas, possuíam seus limites. Sua
idéia era que, durante as lutas populares, no seio das quais deveriam se dar a propaganda
e a educação, surgiria no povo a consciência de classe e o próprio desejo pelo socialismo,
lutas essas que poderiam até contar com conquistas menores, que melhorariam as condições
populares, mas cujo objetivo final seria necessariamente a revolução social, atingida por
meio de um processo de violência revolucionária, colocando um fim imediato ao capitalismo
e ao Estado, e portanto, sem considerar o socialismo de Estado como período intermediário.
A sociedade futura, que deveria tomar corpo no socialismo coletivista, contaria com a
expropriação dos meios de produção, com sua gestão coletiva fundamentada no trabalho, com
a instrução integral e com o fim da diferenciação entre trabalho intelectual e manual.
Proporcionaria a cada pessoa, os frutos completos de seu trabalho realizado, garantindo
igualdade e liberdade plenas.
Aos fins de 1872 Bakunin chegou a Locarno, passando antes por Zurique. Nesse momento
sofria muito; estava exausto, e sua saúde piorava a cada dia: estava extremamente obeso,
tinha crises de asma, um problema na próstata, além de um problema cardíaco, condição que
piorou com os ataques de Marx, Engels e Lafargue, que continuavam a onda de acusações e
mentiras, conforme comentou Nettlau:
"Marx e Engels, em toda sua maquinação[...]agiam com essa estupeficante falta de
honestidade que é característica de todas as suas polêmicas, embasadas em uma documentação
insuficiente que, segundo seu hábito, completava por afirmações arbitrárias que seus
discípulos consideravam verídicas, quando, de fato, eram apenas deploráveis deformações,
erros ou disfarces destituídos de escrúpulos."[15]
Por esses e outros motivos, Bakunin afirmava, naquele momento, estar cansado e desgostoso
com a vida pública e, ainda que publicando Estatismo e Anarquia em 1873, considerava ser
hora de uma nova geração tomar o seu lugar nas atividades revolucionárias. Retirou-se da
Federação Jurassiana e da Internacional Antiautoritária. Dois episódios complicados,
envolvendo a questão de sua moradia - tanto na Baronata como na Villa Bresso -
prejudicariam mais ainda sua situação. Entre um episódio e outro, Bakunin foi a Bolonha em
julho de 1874 para participar de uma insurreição e, sem dúvidas, para morrer na luta pela
revolução, mas, com o rápido fim da insurreição, isso não aconteceu. Em 1876 voltou a
Berna para encontrar-se com o médico e amigo Adolf Vogt, mas chegando lá, em 14 de junho,
teve de ser internado e morreu em 1 de julho de 1876. A morte de Bakunin causou uma
comoção geral nos meios revolucionários e operários. Seu funeral, simples e sem muitas
pessoas, aconteceu em 3 julho; três companheiros da Federação Jurassiana pronunciaram
palavras de adeus: Schwitzguébel, Guillaume e Reclus; Joukovsky falou em nome dos eslavos,
Paul Brousse em nome dos franceses, Salvioni dos italianos, e Betsien dos alemães.
A VIDA E A OBRA
Tratar da vida e da obra de Bakunin não é tarefa das mais simples e diversos esforços vêm
sendo empreendidos para reconstruir sua história prática de luta e suas concepções
teóricas; esforços que, certamente, ainda serão muito necessários.
Bakunin foi um personagem intrigante; era imenso, medindo quase dois metros de altura, e
foi ficando cada vez mais gordo - comia, bebia e fumava impressionantemente. Era
inteligente, afetuoso, generoso, ético, franco, e gozava de intuição, energia e vontade
sem precedentes. Destacam-se também suas qualidades como organizador, orador e,
certamente, como homem de ação; era imensa sua capacidade de liderança, de persuasão, de
aglutinação e de mobilização. Sua participação ativa em grande parte dos acontecimentos
que envolveram as lutas sociais e as mobilizações populares na Europa do século XIX
exerceu significativa influência.
No entanto, não são só suas qualidades práticas que se destacam; como colocou Rudolf
Rocker, "Bakunin era um autor brilhante, ainda que seus escritos necessitem de
sistematização e organização".[16]O socialismo de Bakunin data dos anos 1840, e evoluiu
aos poucos, de um idealismo que tinha por objetivo um mundo novo, passando por um
socialismo democrático e nacionalista que, depois das prisões, desenvolveu-se em um
socialismo libertário, um anarquismo de base classista e revolucionária, que só chegaria
depois da metade dos anos 1860, quando Bakunin tinha mais de 50 anos.
São os escritos de meados da década de 1860 até o fim de sua vida que fundamentam as bases
teóricas do anarquismo e defendem uma série de concepções que merecem destaque, tanto pela
originalidade, quanto pela capacidade de prognosticar o futuro e pela influência que
exerceram tanto durante sua vida quanto depois.
Algumas dessas concepções merecem destaque: o materialismo que reconhece a influência
mútua das esferas, a recusa do etapismo, a possibilidade de revolução nos países mais ou
menos desenvolvidos economicamente, a afirmação de todos os oprimidos como potenciais
sujeitos revolucionários, a luta internacional de massas (concepção determinante para o
desenvolvimento futuro do sindicalismo revolucionário e do anarco-sindicalismo), a
impossibilidade de utilizar o Estado como um meio de luta, a necessidade da destruição
imediata do Estado - juntamente com o capitalismo - na revolução social, e o coletivismo
como proposta de sociedade futura. Destacam-se também suas concepções sobre a luta contra
o imperialismo e o colonialismo, que sustentavam a participação dos anarquistas nas lutas
de libertação nacional, buscando transformá-las em lutas revolucionárias; e também sua
concepção de um modelo de organização política que propôs, pela primeira vez, uma relação
diferenciada entre partido e movimento de massas, considerando que essa organização, com
caráter de minoria ativa, não teria relação de hierarquia e domínio com o movimento
popular, mas deveria possuir função de fermento e motor, estimulando seu crescimento e
desenvolvimento e dando às massas o protagonismo nas lutas e na revolução.
De fato, há muito potencial a ser explorado na vida e na obra desse "homem que foi grande
no intelecto, na vontade, na energia perseverante".[17]Um potencial que tomou corpo em sua
prática de luta e em sua teoria desenvolvida nos livros, artigos e cartas.
Como colocaram seus companheiros Carlo Cafiero e Elisée Reclus, Bakunin
"passava noites inteiras redigindo longas epístolas aos seus amigos do mundo
revolucionário e, algumas dessas cartas, destinadas a fortalecer os tímidos, a despertar
os adormecidos, a traçar planos de propaganda ou de revolta, tomaram as proporções de
verdadeiros volumes. São essas cartas que explicam, sobretudo, a prodigiosa ação de
Bakunin no movimento revolucionário."[18]
Por essa afirmação, é possível ter idéia da relevância das cartas de Bakunin, que agora
são publicadas. Elas certamente auxiliarão na difusão e na compreensão da vida e da obra
de Bakunin, que são tão inspiradoras para aqueles que, ainda nos dias de hoje, desejam à
transformação social.
2010
NOTAS
1. Max Nettlau. "Prologo". In: Mikhail Bakunin. Obras Completas. Vol. I, p. 7.
2. G.D.H. Cole. Historia del Pensamiento Socialista. Vol. II, p. 203.
3. Friedrich Engels. "Democratic Pan Slavism", 1849.
4. Mark Leier. Bakunin: the creative passion, p. 142.
5. Amédée Dunois. "Michel Bakounine". In: Michel Bakounine, p. 9.
6. Fritz Brupbacher. Bakunin, o Satã da Revolta, p. 71.
7. Mikhail Bakunin. "Confissão", 1851.
8. Idem. Carta a Alexandre II de 14 de fevereiro de 1857.
9. Idem. "Organização", 1866.
10. Idem. "Federalismo, Socialismo e Antiteologismo", 1867.
11. A distinção entre os nomes "Fraternidade" e "Aliança" foi feita por Max Nettlau, para
facilitar a compreensão histórica, visto que Bakunin utilizava diferentes nomes para
referir-se a essas organizações.
12. Paul Avrich. Bakunin & Netchaev, p. 11.
13. Sam Dolgoff. "Palabras Previas". In: Mikhail Bakunin. Obras Completas Vol. I., p. 1.
14. Eduardo Colombo. "Introdução". In: Mikhail Bakunin. O Princípio do Estado e outros
ensaios, p. 17.
15. Max Nettlau. História da Anarquia Vol. I., pp. 174-175.
16. Rudolf Rocker. "Introduction". In: G. P. Maximoff. (org). The Political Philosophy of
Bakunin, p. 21.
17. Carlo Cafiero e Elisée Reclus. "Apresentação". In: Mikhail Bakunin. Deus e o Estado, p. 7.
18. Ibidem., p. 8.
BIBLIOGRAFIA
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português em Catecismo Revolucionário / Programa da Sociedade da Revolução Internacional.
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______________. O Império Cnuto-Germânico e a Revolução Social, 1870-1871. (STP) Há
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Princípio do Estado e Outros Ensaios. São Paulo: Hedra, 2008.
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______________. "Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint Imier", 1871.
Disponível em português em O Princípio do Estado e Outros Ensaios. Op. Cit..
______________. "Protestação da Aliança", 1871. (STP)
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Brupbacher, Fritz. Bakunin, o satã da revolta (com comentários de Jean Barrué). São Paulo:
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