(pt) colectivo libertario: Voltando a David Graeber - divida sempre foi uma questao de poder
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Sábado, 8 de Outubro de 2016 - 09:14:47 CEST
Guilherme Freitas entrevista David Graeber no Globo ---- Em setembro de 2011, o
antropólogo americano David Graeber estava no grupo que planejou um acampamento coletivo
no Parque Zuccotti, em Nova York, para protestar contra a desigualdade econômica. Foi o
início do movimento Occupy Wall Street, que nos meses seguintes mobilizou milhares de
pessoas e colocou em circulação slogans como "Nós somos os 99%". Até então um acadêmico
pouco conhecido, autor de uma pesquisa de campo no arquipélago africano de Madagascar,
Graeber havia publicado meses antes o livro "Dívida: os primeiros 5.000 anos" (Três
Estrelas), que se tornou um inesperado best-seller ao retratar a história da economia do
ponto de vista da relação entre credores e devedores. Graeber falou ao GLOBO por e-mail
sobre o livro, que chega ao Brasil ao mesmo tempo que "Um projeto de democracia" , seu
ensaio sobre a história e o legado do Occupy Wall Street. (Outras Palavras, 8 de Abril de
2016)
Em "Dívida", você diz que "a dívida dos consumidores é a força vital da economia e a
dívida externa é o tema central da política internacional". Como a dívida se tornou o
centro das relações econômicas e quais são as consequências disso?
Estamos acostumados a pensar que o sistema de crédito é relativamente recente. A história
padrão é que primeiro veio o escambo, depois o dinheiro físico e, só então, o crédito. Na
verdade, parece ter acontecido o oposto. O crédito veio antes. A moeda foi inventada bem
mais tarde, talvez dois mil anos depois das primeiras transações de crédito conhecidas. E
o escambo (nota Portal Anarquista: troca de serviços ou bens, permuta) - do tipo "eu te
dou 20 galinhas em troca dessa vaca" - só ocorre mesmo de forma ampla em lugares onde as
pessoas estão acostumadas a usar dinheiro, mas de uma hora para outra perdem o acesso à
moeda. Então, desse ponto de vista, crédito e dívida sempre estiveram no centro da
economia. E o que o registro histórico revela é que hoje estamos fazendo tudo errado.
Normalmente, em períodos dominados pelo crédito, são criadas instituições para proteger os
devedores: os reis divinos da Mesopotâmia que anistiavam dívidas ou leis medievais
antiusura, por exemplo. Do contrário, aqueles que têm o poder de criar crédito acabam
dominando todo mundo. E agora, o que fazem? O exato oposto. Instituições como o FMI
protegem credores contra devedores. O resultado é previsível: uma série sem fim de crises
da dívida.
Você viveu em Madagascar e costuma citar o país como exemplo das contradições da dívida
externa. Como sua experiência lá influenciou suas reflexões sobre a dívida?
Madagascar foi conquistado pela França, em teoria, porque não conseguia pagar suas
dívidas. Um jovem príncipe inocente assinou um tratado prometendo concessões de livre
comércio e, quando se tornou rei e tentou implementá-lo, foi derrubado. Então o governo
francês exigiu indenização e, como Madagascar não pôde pagar, decidiu invadir o país. Mas
mesmo depois de a França ter explorado o país por 65 anos e da conquista da independência,
Madagascar ainda devia dinheiro à França! Como aconteceu isso, e não o contrário? Como o
resto do mundo aceitou isso?
No livro você fala sobre a "dimensão moral" da dívida. Como ela funciona?
Dívida sempre foi uma questão de poder. Os verdadeiramente poderosos só precisam pagar
suas dívidas se quiserem. Donald Trump faliu várias vezes - quem liga? Olhando para a
História, o mais perturbador é o grande poder moral que a dívida tem para fazer relações
de dominação violenta parecerem moralmente justificáveis e, mais que isso, para fazer
parecer que a culpa é da vítima. E as pessoas aceitam isso. Mesmo quando eu falava do
colapso do sistema de saúde em Madagascar causado pelos ajustes econômicos, e das mortes
que isso provocou, se eu sugerisse que a dívida do país deveria ser abolida, mesmo os mais
liberais diziam: "Mas eles pegaram dinheiro emprestado! Eles têm que pagar". E eu estava
falando da morte de milhares de crianças. Esse é o poder da dívida.
Você já disse que muitos participantes do Occupy Wall Street eram "refugiados da dívida".
Como a dívida fomentou os protestos?
Não fazíamos ideia de quem iria aparecer quando planejamos as ações no Parque Zuccotti.
Vieram milhares de jovens que não conhecíamos, então alguns dos organizadores começaram a
fazer entrevistas. A surpresa foi como a história deles era parecida. "Estudei duro,
entrei numa boa universidade, fiz um empréstimo porque era necessário. Mas de repente os
agentes financeiros quebraram a economia com seus negócios escusos e não havia mais
empregos. Eles foram socorridos pelo governo, mas eu não fui socorrido. O governo vai
assegurar que eles me tirem cada centavo, ainda que não haja emprego algum porque eles
quebraram a economia e, como resultado, vou ter que passar o resto da vida escutando que
sou caloteiro e imoral porque devo dinheiro a eles. Isso não é justo".
Quais foram as contribuições do Occupy para o debate público?
Fizemos os americanos discutirem classes sociais outra vez. Desde quando isso não
acontecia, os anos 1930? E não só isso, mas também poder de classe - esse é o significado
do 1% e dos 99%. O 1% é a fração que não apenas detém o lucro do crescimento econômico,
mas também faz a maior parte das contribuições de campanha, portanto consegue transformar
sua riqueza em poder político e usar esse poder para aumentar sua riqueza. Por isso nos
recusamos a participar do processo político, da forma como está ele é apenas suborno
institucionalizado. Se não fosse o Occupy, acredito que em 2012 teríamos tido um
presidente Romney (lembre-se que no início da campanha a experiência dele em Wall Street
era considerada uma vantagem). E veja o que acontece em 2016. Nos dois partidos (Democrata
e Republicano) há grandes rebeliões que, de formas muito diferentes, se insurgem contra a
corrupção do sistema político.
Depois dos protestos antiglobalização dos anos 1990 e do movimento Occupy, no início deste
década, quais são as frentes atuais da luta contra a desigualdade?
Acredito que, desde 2011, houve um realinhamento da compreensão sobre o que significa um
movimento democrático. Não é mais possível pensar em democracia como apenas partidos
políticos assumindo governos. Tem que significar algo mais, algo que opere também fora do
Estado. Isso é verdade na Bósnia, em Hong Kong, no Praça Taksim (Istambul), ou mesmo em
lugares como Rojava, na Síria, que estão fazendo experiências com democracia direta. Está
claro que o sistema existente atingiu um ponto de ruptura. Para mim, a grande questão é o
renascimento da imaginação econômica, política e social, porque a única sustentação do
capitalismo nas últimas décadas, quando perdeu fôlego como força de progresso econômico,
foi barrar a imaginação, dizer às pessoas que nada além disso é possível. Acho que
precisamos usar muito nossa imaginação, e rápido, ou estaremos em apuros.
originalmente aqui:
http://oglobo.globo.com/cultura/livros/david-graeber-divida-sempre-foi-uma-questao-de-poder-1-18909540
https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2016/10/03/voltando-a-david-graeber-divida-sempre-foi-uma-questao-de-poder/#more-16571
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