(pt) Media, Curdistào, Mulheres curdas lutam por democracia confederada e nova economia,By Marco Weissheimer
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Segunda-Feira, 28 de Março de 2016 - 14:30:45 CEST
As mulheres curdas ganharam destaque internacional no último ano em funçào de seu
protagonismo no enfrentamento armado contra o Estado Islâmico, principalmente no Iraque e
na Síria. A guerra tornou visível para o mundo o protagonismo dessas mulheres que nào se
limita à luta armada. As curdas estào na linha de frente da luta de seu povo por
democracia, liberdade para as mulheres e construçào de um modelo de economia alternativa,
comunal e cooperativada. Essa luta tem cerca de 40 anos, quando mulheres curdas foram
viver nas montanhas, pegaram em armas e começaram a questionar frontalmente o modelo
patriarcal e repressivo sob o qual viviam até entào. Enfrentar a mentalidade dos próprios
companheiros foi uma luta mais difícil do que a enfrentada contra o Estado turco, conta
Melike Yasar, militante do Movimento de Mulheres Livres do Curdistào, que veio ao Brasil
participar de debates e atividades com mulheres de movimentos sociais brasileiros.
Em entrevista ao Sul21, Melike Yasar fala sobre a luta e as ideias do Movimento de
Mulheres Livres do Curdistào que elaborou uma crítica radical do modelo de Estado e de
poder político baseado no patriarcado. Os curdos, hoje, explica, nào lutam mais por um
Estado independente, mas pelo direito de viver em um território da maneira que desejam.
Esse território, hoje, está dividido entre regiões da Turquia, da Síria, Irà e Iraque.
Além disso, analisa o atual momento da guerra na Síria e detalha a proposta curda para a
superaçào do conflito: a criaçào de uma Confederaçào Democrática em toda a Síria,
respeitando a autonomia das variadas etnias e culturas que vivem na regiào. E denuncia a
repressào por parte do Estado turco que nào admite a ideia de um Curdistào autônomo.
Sul21: O que é o Curdistào hoje?
Melike Yasar: Sou originária do norte do Curdistào, que corresponde à regiào sudoeste da
Turquia, e representante do movimento de mulheres do Curdistào. O Curdistào é um
território muito antigo que remonta à Mesopotâmia. É o coraçào da antiga Mesopotâmia,
entre os rios Tigre e Eufrates, onde começou a civilizaçào. Os curdos vivem no centro
desse território. É um povo que tem uma cultura muito antiga com raízes na civilizaçào
suméria. Em 1923, um encontro promovido na cidade suíça de Lausanne por iniciativa de
França, Inglaterra, Turquia e outros países, acabou resultando na divisào do Curdistào em
quatro partes, distribuindo-se entre Turquia, Irà, Iraque e Síria.
Sul21: Qual é o principal objetivo dos curdos na atualidade?
Melike Yasar: Quando dividiram o Curdistào, ocorreram 28 levantes de resistência do povo
curdo contra essa medida. Esses levantes duraram um ou dois anos. Países imperialistas,
como a Inglaterra, deram suporte a Turquia para acabar com a resistência. Em 1978, foi
criado o Partido dos Trabalhadores do Curdistào (PKK) com o objetivo de criar um Estado
independente e socialista, com uma perspectiva marxista-leninista. Uma das novidades desta
iniciativa é que o PKK poderia criar uma organizaçào nas quatro partes do Curdistào e nào
somente na Turquia. Até hoje, esse movimento luta em quatro países com uma perspectiva de
liberaçào dos povos. Mas o movimento curdo evoluiu para uma posiçào crítica à criaçào de
um Estado nacional centralizado. Hoje, nào acreditamos que essa perspectiva de um Estado
nacional possa dar conta dos problemas enfrentados pelo povo curdo. Também foi feita uma
crítica à perspectiva marxista-leninista. De um modo mais amplo, essas duas críticas
representam uma crítica mais forte à própria noçào de poder.
A proposta alternativa surgida dessas críticas se chama Confederalismo Democrático, um
sistema sem um Estado centralizado, onde as mulheres desempenham um protagonismo central
para a construçào de uma sociedade livre. Neste sistema, a libertaçào das mulheres é a
primeira condiçào para uma sociedade livre. Na perspectiva marxista-leninista, antes da
libertaçào das mulheres vinha a construçào do Estado e da naçào. Nós avaliamos que isso é
um erro e que uma sociedade só pode ser livre com a libertaçào das mulheres. Nos anos 90,
quando o movimento curdo mudou sua ideologia, mulheres começaram a lutar com armas nas
montanhas. Mais importante do que isso, a partir daí começou o debate sobre a necessidade
de mudar o modelo patriarcal de sociedade. Esse debate de fundo mais ideológico começou a
ser feito nas montanhas.
Hoje, em Rojava, no norte da Síria, regiào oeste do Curdistào, os curdos têm seu próprio
sistema, o Confederalismo Democrático. Esse sistema iniciou em 2011, depois da Primavera
Árabe, quando também começou a crise na Síria. Os curdos decidiram nào viver as mesmas
experiências de outros povos na Primavera Árabe que se levantaram contra ditaduras, que
acabaram derrubadas, mas, depois, foram substituídas por novas ditaduras. Os curdos
decidiram aproveitar o momento de crise na Síria para criar uma nova alternativa, que é o
Confederalismo Democrático, que nào está aliada nem com o regime de Assad nem com a
coalizào contra o regime que quer manter o mesmo modelo presidencial. Esse sistema
alternativo funciona, nào é uma utopia. Em Rojava, nào vivem só curdos, mas também árabes,
sírios, armênios, turcomenos, chechenos.
Sul21: Quantas pessoas vivem neste território, aproximadamente?
Melike Yasar: Cerca de três milhões de pessoas que vivem sob um sistema de
autodeterminaçào, com uma força de autodefesa. Esse modelo é muito perigoso para a Síria e
para os países imperialistas, pois é um sistema sem Estado, onde as mulheres sào
protagonistas. As mulheres estào na linha de frente e lutam armadas, nào só contra o
regime de Assad e contra o Estado Islâmico, mas também contra a mentalidade patriarcal.
Sul21: O Confederalismo Democrático é um sistema anarquista? No que ele se diferencia do
anarquismo, se é que se diferencia, nesta crítica que faz ao Estado?
Melike Yasar: Muitas vezes me fazem essa pergunta. Eu respondo que é um sistema
anarquista, marxista, socialista, feminista. Todas as correntes de pensamento
anti-capitalistas podem conviver neste sistema. Há uma perspectiva socialista, mas, para
nós, o socialismo é uma nova forma de vida contrária à forma da modernidade capitalista. E
há uma perspectiva anarquista também, pois acreditamos que os povos que vivem sob esse
sistema devem viver como quiserem, mas com uma organizaçào. Essa é uma diferença
importante em relaçào ao anarquismo que existe hoje. Há um anarquismo na Europa que
rejeita a ideia de organizaçào. Nós acreditamos que um povo e uma vida sem organizaçào nào
é um povo e uma vida com liberdade.
No Confederalismo Democrático seguimos um critério ligado à ideia de uma sociedade ética e
política. Política, aqui, significa “organizada”, e Ética é a “ética de vida” da sociedade
antes do patriarcado, com uma mentalidade democrática e uma característica socialista.
Hoje, na América Latina, há vários grupos anarquistas, feministas e partidos socialistas
que apoiam esse sistema.
Sul21: Neste modelo de auto-organizaçào e autogestào implantado no território curdo na
Síria, como funciona a gestào dos serviços públicos? Esse sistema prevê a existência de
empresas públicas para administrar, por exemplo, o serviço de abastecimento de energia ou
de água?
Melike Yasar: É preciso ter em mente que, agora, neste território, há uma guerra. E esse
território, oficialmente, também nào é dos curdos. O Confederalismo Democrático se
organiza por meio de um sistema de comitês, assembleias e, mais acima, um conselho dos
povos com representantes eleitos. E há três cantões que articulam esse sistema de
assembleias. Há alguns princípios básicos como a paridade de gênero. Em qualquer instância
há uma paridade entre homens e mulheres. E há uma paridade também do ponto de vista dos
diferentes povos que habitam esse território. Cerca de 70% sào curdos, mas aí também vivem
árabes, sírios, turcomenos e outras etnias que também tem representaçào nas estruturas
políticas.
Os comitês sào criados de acordo com as necessidades de cada comunidade. Há comitês para a
saúde, para as mulheres, para a economia (há uma economia alternativa baseada em
cooperativas), para a educaçào e assim por diante. A energia elétrica vem da própria
Síria, mas tem se desenvolvido formas alternativas de produçào de energia.
Os três cantões que existem nào sào reconhecidos oficialmente. As fronteiras sào fechadas
para o comércio, para ajuda humanitária e para as necessidades do povo. As fronteiras com
a Turquia e com o Iraque só estào abertas para o Estado Islâmico. Mas temos muito projetos
para o futuro baseados em uma teoria econômica feminista. É uma economia alternativa com
um pensamento criado fundamentalmente por mulheres.
Sul21: Essa experiência do Confederalismo Democrático está ocorrendo só no território
curdo na Síria?
Melike Yasar: Sim. Agora estamos trabalhando para levar esse sistema para outras partes
também. Já temos territórios curdos, na Turquia, onde comunidades estào adotando esse
sistema em administrações autônomas, começando uma guerra. Desde dezembro do ano passado,
há uma guerra do exército turco contra o povo curdo nào militante. Nos últimos quatro
meses, o Estado turco já matou cerca de 500 civis, utilizando inclusive armas químicas. Em
várias regiões, foi declarado toque de recolher, mas o povo curdo está resistindo e há
unidades armadas para defender as cidades.
Sul21: Você mencionou que as fronteiras com a Turquia e com o Iraque estào abertas para o
Estado Islâmico. Existe, de fato, uma cumplicidade entre o governo da Turquia e o Estado
Islâmico?
Melike Yasar: Sim. O governo turco diz que é contra o Estado Islâmico, mas ajuda a
financiar esse grupo e abre as portas para ele na fronteira. A Turquia tem medo, pois esse
sistema do Confederalismo Democrático instalado no norte da Síria há apenas três anos pode
ser reconhecido pelos Estados Unidos e pelas Nações Unidas. Se a ONU e outras forças
internacionais influentes reconhecerem esse sistema que construímos em Rojava terào que
aceitar também a sua existência na Turquia. E isso o Estado nào quer. Na fronteira da
Turquia com a Síria, há uma cidade chamada Kobani, onde houve uma resistência muito
importante em 2014, quando os curdos derrotaram o Estado Islâmico. Depois disso, Estados
Unidos e Rússia disseram que as forças curdas nào eram terroristas, mas sim lutadoras
importantes contra o Estado Islâmico. Essa regiào é muito importante para o transporte de
petróleo em todo o Oriente Médio, pois ela tem uma passagem para o mar, por onde os russos
também podem comercializar seu gás para todo mundo. A Turquia nào quer que os curdos
tenham o controle desta zona.
Se o mundo reconhecer os curdos oficialmente, outras comunidades que vivem na Turquia
podem querer fazer o mesmo, como em Esmirna, que tem ligaçào com a Grécia, e Capadócia,
com a Romênia. O sistema ideal para a Turquia e, talvez, para todo o Oriente Médio é o da
confederaçào. Na Turquia vivem hoje
Fonte:
http://www.sul21.com.br/jornal/mulheres-curdas-lutam-por-democracia-confederada-e-nova-economia/
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