(pt) Brazil, União Popular Anarquista (UNIPA) - VIA COMBATIVA - Uma Teoria do Anti-Estado: A Comuna de Paris e a Organização Política Socialista
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Quarta-Feira, 2 de Setembro de 2015 - 15:59:02 CEST
Para contribuir na formação política militante, estaremos relançando todas às
sextas-feiras no site da Unipa os artigos de Via Combativa - uma revista de teoria
política anarquista. Acompanhe! ---- UNIÃO POPULAR ANARQUISTA. Uma Teoria do Anti-Estado:
A Comuna de Paris e a Organização Política Socialista. Via Combativa, Brasil, Nº 01, p.
12-18, maio de 2009. ---- Uma Teoria do Anti-Estado: A Comuna de Paris e a Organização
Política Socialista ---- Este texto irá discutir uma problemática fundamental: o programa
revolucionário anarquista e a teoria que lhe serve de sustentação. A divisão do movimento
socialista revolucionário entre as vertentes comunista e anarquista legou um debate acerca
da definição dos objetivos, imediatos e históricos, e também acerca da estratégia de
construção da sociedade sem-classes e sem-estado.
Esta diferença de legados marcou profundamente a história do século XX. A teoria
comunista[1], desenvolvida pelo marxismo até suas últimas conseqüências, defendia que a
construção do socialismo exigia o Estado; a teoria anarquista, o bakuninismo, se pautava
na negação do Estado e na defesa de uma nova forma de organização política, que iremos
denominar pelo conceito de anti-Estado. As experiências do movimento operário e das
revoluções do século XX também acrescentaram importantes teorias sobre o desenvolvimento
da revolução e sobre seu programa, como a teoria das revoluções em etapas (revolução
democrático-burguesa), a teoria da "revolução permanente" (Trotski) e a teoria da
revolução de "Nova Democracia" (Mao Tsé-Tung).
Para compreender a diferença de teorias e estratégias práticas é preciso analisar os
debates existentes. Um dos pilares de construção dos modelos políticos, anarquista e
comunista, foi fornecido por um dos principais acontecimentos da experiência
revolucionária: a Comuna de Paris. É pela compreensão das diferentes análises deste evento
- e de toda sua repercussão histórica - que poderemos chegar a uma definição mais clara do
programa revolucionário bakuninista e de sua fundamentação teórica.
Foi pela apropriação do modelo político da "Comuna de Paris" que se iniciou a construção
do socialismo na Rússia em 1917 e foi pelo abandono dos seus postulados fundamentais que
se pode explicar, em parte, a burocratização seguida pela contrarevolução stalinista
(1924-1953) e pela restauração burguesa (1985-1991). A incompreensão dos limites da
experiência da Comuna de Paris também levou a impasses no momento de eclosão das situações
revolucionárias. Este texto visa trazer elementos para tal reflexão.
1 - A Comuna de Paris no Pensamento Revolucionário.
"A Comuna de Paris" - Batalhões Operários em frente ao Quartel General da Comuna
O que foi a "Comuna de Paris"? A Comuna de Paris foi uma experiência de auto-governo,
surgida de uma insurreição popular, ocorrida em março de 1871, durante a Guerra
Franco-Prussiana. É necessária uma rápida contextualização histórica: 1) a França era
então governada por Luis Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, e seu regime político
era uma monarquia imperial; 2) a Alemanha estava em processo de unificação política e
passava a disputar a hegemonia na Europa com Inglaterra e França; 3) os alemães estavam
vencendo a Guerra contra a França, sitiando a cidade de Paris, e o povo francês estava
agora ameaçado pela opressão externa, que substituiria a opressão interna da monarquia 4)
o movimento operário na França estava consolidando sua organização política e sua
consciência de classe, através da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Estava
mobilizado para a luta reivindicativa e começava a tomar parte nas questões da guerra.
Na Guerra entre França e Alemanha, Bismarck, chanceler alemão, prendeu Luís Bonaparte. A
oposição se agita; os opositores burgueses proclamam a república em 4 de setembro de 1870,
assumindo um Governo Provisório. Entretanto, além da oposição burguesa, existia uma forte
oposição operária e popular. O choque entre estas duas oposições no interior da França é
que precipitou a eclosão da Comuna de Paris.
A insurreição começa em 1871, quando o Governo Provisório dá uma ordem de desarmar o povo
da cidade de Paris. A Guarda Nacional, instituição legada pela Revolução de 1789 e que
materializava a idéia do "povo em armas", se rebelou. Os Guardas prendem os generais
Lecomte e Thomas e os fuzilam. Começa a Insurreição da Comuna de Paris: um ato de
rebelião, em favor da resistência popular frente a uma eminente ocupação estrangeira. O
que acontece, na seqüência, é que a Cidade de Paris, capital da República, cai na mão da
Guarda Nacional e das tendências radicais do movimento operário e popular. O Governo
Provisório se vê obrigado a transferir sua sede para Versalhes. Cria-se uma dualidade de
poder: um poder republicano e burguês, de um lado; de outro, um poder "comunardo",
operário-popular[2].
Karl Marx e Mikhail Bakunin atribuíram uma importância decisiva à Comuna de Paris.
Produziram livros e análises sobre ela. Marx, no livro "A Guerra civil em França", lança
sua avaliação da experiência da Comuna. Bakunin lançou sua interpretação, especialmente,
no artigo "A Comuna de Paris e a noção de Estado". Mas a Comunatornaria-se central para a
história do século XX pelo resgate político teórico que Lênin realiza nos anos 1910-1917.
Alguns artigos de Lênin são fundamentais, tais como "Em Memória da Comuna (1911)" e,
principalmente, "Teses de Abril" e "O Estado e a Revolução" (1917). Desta maneira, a
Comuna de Paris ocupa um lugar central no pensamento e imaginário revolucionário, sendo o
modelo político estruturante da Revolução Russa de Outubro de 1917. Iremos agora analisar
as diferentes análises.
2 - Marx, Engels, Lênin e a tradição comunista/social-democrata.
Primeiramente, devemos perceber que a derrota da Comuna em 1871 não significou seu
esquecimento. Na Rússia, a Comuna de Paris teria uma presença constante no imaginário do
partido social-democrata. E aqui é importante indicar um fato importante; dentro da
tradição social-democrata, existem três linhas de leitura/interpretação da Comuna de
Paris: 1) a de Marx; 2) a de Engels; 3) a de Lênin. Existem "três" definições, não
excludentes, mas distintas, do que foi a Comuna de Paris, e aqui está um ponto fundamental
da interpretação correta da Comuna.
Última batalha da Comuna no Cemitério Pere Achaiese
Marx ao analisar a "Comuna de Paris", classifica-a como um "Auto-Governo dos Produtores".
Diversos autores consideram o Marx de "A Guerra Civil em França", não sem razão, como um
Marx "antiestatista":
Mas a classe operária não se pode contentar com tomar o aparelho de Estado tal como ele é
e de o pôr a funcionar por sua própria conta. (...) O poder centralizado do Estado, com os
seus órgãos presentes por toda a parte: exército permanente, polícia, burocracia, clero e
magistratura, órgãos moldados segundo um plano de divisão sistemática e hierárquica do
trabalho, data da época da monarquia absoluta, em que servia à sociedade burguesa nascente
de arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo. (...) Quanto à força repressiva do
governo outrora centralizado, o exército, a polícia política, a burocracia, criada por
Napoleão em 1798, retomada depois com prontidão por cada novo governo e utilizada por ele
contra os seus adversários, era justamente esta força que devia ser destruída por toda a
parte, como o fora já em Paris. (Karl Marx, A Guerra Civil em França).
Na sua análise da Comuna, Marx dá uma guinada nas suas formulações, colocando uma ênfase
muito grande na afirmação da necessidade de "destruição do Estado"; mas ele não chega a
estabelecer uma caracterização definitiva do que é o Estado. E esta controversa guinada
"antiestatista" de Marx pode ser interpretada por diversos ângulos [3].
Será Engels que, após a morte de Marx, ao fazer uma introdução a uma reedição do livro "A
Guerra Civil em França", irá dar uma re-interpretação que se sobreporá à leitura realizada
por Marx, e que será tomada por Lenin. Engels afirma:
"En realidad, el Estado no es más que una máquina para la opresión de una clase por otra,
lo mismo en la República democrática que bajo la monarquía; y en el mejor de los casos, un
mal que el proletariado hereda luego que triunfa en su lucha por la dominación de clase.
El proletariado victorioso, tal como hizo la Comuna, no podrá por menos de amputar
inmediatamente los peores lados de este mal, hasta que una generación futura, educada en
condiciones sociales nuevas y libres, pueda des hacerse de todo ese trasto viejo del
Estado. Ultimamente las palabras 'dictadura del proletariado' han vuelto a sumir en santo
terror al filisteo socialdemócrata. Pues bien, caballeros, queréis saber qué faz presenta
esta dictadura? Mirad a la Comuna de París: he ahí la dictadura del proletariado!" (F.
Engels 18 de marzo de 1891).
Neste sentido, temos um deslocamento teórico importantíssimo. Ao denominar a Comuna de
"Ditadura do Proletariado", Engels está inserindo pela primeira vez a "Comuna" numa
caracterização teórico-política com a qual a Comuna nunca foi compatível [4]. Ao definir a
Comuna como "Ditadura do Proletariado", Engels está associando a Comuna ao esquema teórico
comunista, significando, ao mesmo tempo, que a Comuna é um tipo de Estado e uma forma
"transitória" de poder, forma esta que deve desaparecer junto com as classes sociais. Aqui
se abre todo um campo complexo de luta entre classificações contraditórias, pois a
interpretação de Marx jamais definiu a Comuna de tal maneira. Daí surgirem duas linhas de
interpretação dentro do marxismo, uma que se tornará majoritária, desenvolvida por Lênin,
a partir da re-interpretação dos escritos de Marx feita por Engels, e outra minoritária,
reivindicada pelos comunistas de conselhos [5].
Lênin irá adotar a interpretação e a definição de Estado de Engels e também associará a
Comuna de Paris à "Ditadura do Proletariado". Lênin reivindica a Comuna em dois escritos
fundamentais: "As Teses de Abril" (1917) e em o "Estado e a Revolução (1917)". O primeiro
escrito apresenta e defende uma "inovação programática" dentro do partido social-democrata
da Rússia, já que vai colocar de maneira clara a necessidade de uma revolução
"socialista", como uma etapa imediatamente posterior à revolução "democrático-burguesa"
[6]. O segundo escrito é uma defesa da "Fase de Transição" do Socialismo para o Comunismo
e uma defesa "do Estado" e da idéia de Estado. Lênin combate em duas frentes: o
oportunismo marxista de Kautsky, e o "anarquismo", ou melhor, o anarco-comunismo russo
[7]. Neste sentido, ele desenvolve uma teoria com duas afirmações distintas: defendendo a
destruição do Estado e defendendo o Estado:
"A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem revolução
violenta. A abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e qualquer Estado,
só é possível pelo 'definhamento' ". (Lênin, O Estado e a Revolução, cap. I.-4).
"A distinção entre os marxistas e os anarquistas consiste nisto: 1.º) os marxistas, embora
propondo-se a destruição completa do Estado, não a julgam realizável senão depois da
destruição das classes pela revolução socialista, como resultado do advento do socialismo,
terminando na extinção do Estado; os anarquistas querem a supressão completa do Estado, de
um dia para o outro, sem compreender as condições que a tornam possível (...)" (Lênin, O
Estado e a Revolução, cap. VI.-3).
É interessante notar que as acusações que Lênin faz ao "anarquismo" são do mesmo gênero
das que o "oportunismo" social-democrata faz à Lênin (Lênin é acusado de querer a
"destruição do Estado" de um dia para o outro e de querer passar da "revolução
democrático-burguesa à socialista imediatamente"). Se é possível a destruição do Estado
burguês, que nada mais é que uma manifestação histórica, particular, do Estado em geral,
porque dizer que não é possível a destruição do Estado em geral, se o Estado em geral não
é senão a combinação dos traços estruturais das suas manifestações particulares? Aqui se
coloca a questão da caracterização do Estado.
O que é o Estado? É possível um "Estado Proletário"? Da primeira resposta deriva a
segunda. O marxismo não responde de maneira satisfatória à primeira pergunta, e daí as
contradições e oscilações nas respostas para a segunda. São estas contradições que serão
aproveitadas pela "burocracia" para matar a revolução socialista na Rússia e abortar o
processo da revolução proletária em escala mundial.
3 - Bakunin e a Comuna de Paris: a experiência da Negação do Estado.
1871, Barricadas em Paris
A interpretação que Bakunin faz da Comuna de Paris, desde o princípio, considera a Comuna
de Paris como a "Negação do Estado". Desta maneira, a análise de Bakunin se aproxima em
diversos pontos da análise de Marx. Este um é um fato historicamente negligenciado. Nunca
os dois estiveram tão próximos em termos de posicionamentos teóricos. Mas, por outro lado,
é neste período que a ruptura política entre os dois militantes se daria [8]. Mas enquanto
Marx teve que fazer uma "emenda substitutiva" ao Manifesto Comunista em razão da Comuna de
Paris, a Comuna e o Federalismo Revolucionário que ela realizou já se encontravam
plenamente expressos no Catecismo Revolucionário, documento programático da organização
secreta fundada por Bakunin em 1864 [9].
No "Prefácio à Segunda Edição do Império Knuto-Germânico" (1870-1871), Bakunin apresenta
os pontos de distinção entre comunismo e anarquismo da seguinte maneira:
"Os comunistas acreditam dever organizar as forças operárias para apoderar-se da força
política dos Estados. Os socialistas revolucionários se organizam tendo em conta a
destruição, ou se quiser uma palavra mais cortês, tendo em conta a liquidação dos Estados.
(...) O socialismo revolucionário acaba de tentar uma primeira manifestação brilhante e
prática na Comuna de Paris. Sou um partidário da Comuna de Paris, que por ter sido
massacrada, sufocada em sangue pelos carrascos da reação monárquica e clerical, nem por
isso deixou de fazer-se mais vivaz, mais poderosa na imaginação e no coração do
proletariado da Europa; sou um partidário dela sobretudo porque foi uma negação audaz, bem
pronunciada, do Estado." (Bakunin, 1978, p. 188).
Desta maneira, para Bakunin, a Comuna se apresenta incontestavelmente como a "negação do
Estado". Bakunin sabia que a Comuna tinha sido composta majoritariamente por jacobinos e
que a ala socialista (os chamados "internacionalistas") era minoritária. Mas mesmo assim
ele viu nas suas instituições, na sua mecânica popular e revolucionária, a confirmação das
suas teses e de seu programa. Mas esta identificação não se dá por meios artificiais.
Vejamos o documento "Catecismo Nacional", elaborado como programa para a organização
secreta de Bakunin, em 1865-1866:
"Que é absolutamente necessário para qualquer país desejar reunir as federações livres dos
povos para substituir suas organizações centralizadas, burocráticas e militares por uma
organização federalista baseada apenas na absoluta liberdade e autonomia das regiões,
províncias, comunas, associações e indivíduos. Esta federação operará com funcionários
eleitos responsáveis diretamente junto ao povo; Ela não será uma nação organizada de cima
para baixo, ou do centro para a circunferência. Rejeitando os princípios da unidade
imposta e arregimentada, ela será dirigida de baixo para cima, da circunferência para o
centro, de acordo com os princípios da livre federação. Seus indivíduos livres formarão
associações voluntárias, suas associações formarão comunas autônomas, suas comunas
formarão províncias autônomas, suas províncias formarão as regiões, e as regiões irão
federar-se livremente em países que, por sua vez, criarão mais cedo ou mais tarde a
universal federação mundial." (Bakunin, Catecismo Nacional).
É interessante notar a presença do conceito de "Comuna", enquanto unidade política base
neste programa, e também a ênfase no processo federativo, concebendo a organização
política de baixo para cima. Curiosamente, a descrição que Marx realizará anos depois da
Comuna de Paris parece ser uma paráfrase de Bakunin, não porque ele tivesse "copiado"
Bakunin, mas pelo fato de que a realidade que ele veio a descrever foi, efetivamente, a
própria manifestação deste fato [10].
Infelizmente, Bakunin não nos legou, pelo menos não nos seus escritos por nós conhecidos,
uma análise "interna" da Comuna de Paris. Ele apenas marcou seu posicionamento político e
fez um enquadramento teórico geral: a Comuna era a primeira experiência do socialismo
revolucionário, a primeira negação histórica do Estado. Bakunin estaria correto em
classificar a Comuna de Paris como uma "negação do Estado"?
4 - A Luta de Classificações: Estado ou Anti-Estado?
Quem tem razão na classificação da Comuna de Paris? Bakunin, Marx, Engels, Lênin? Devemos,
em primeiro lugar, lembrar que a análise de Marx, consagrada no texto "A Guerra Civil em
França", corrobora a afirmação e a tese de Bakunin, independentemente de suas motivações e
posteriores considerações acerca do Estado. Especificamente, na análise de Marx, todas as
afirmações caminham na sinalização de que a Comuna tinha representado a destruição do
Estado. Desta maneira se abre uma "brecha" dentro do pensamento marxista acerca da questão
do Estado e da história da Comuna de Paris [11].
Depois, Engels introduziria uma abordagem nova e até certo ponto contrária à análise de
Marx, ao classificar a Comuna como "a Ditadura do Proletariado". Lênin, por sua vez,
retomaria esta leitura. Assim, podemos dizer que existem três chaves de interpretação da
Comuna de Paris: 1º) a que parte de Bakunin e considera a Comuna como um exemplo histórico
de Destruição do Estado; 2º) a que parte de Marx e chega a uma conclusão similar
(especialmente a partir do texto "A Guerra Civil em França"), ou seja, de que a Comuna
seria um exemplo histórico de Destruição do Estado e que a "Ditadura do Proletariado"
seria sinônimo disso [12]; 3º) a que parte da interpretação de Engels, e, depois, da que
Lênin fez de Marx e Engels, que considera a Comuna de Paris como um "Tipo de Estado". Esta
última chave interpretativa é a que tem predominado e a ela estão associadas algumas das
causas da burocratização das revoluções e de sua degeneração.
Por isso é tão importante discutirmos se a Comuna de Paris era um Estado ou não. Porque é
da correta caracterização teórica desta experiência histórica que deriva o correto
programa e estratégia da Revolução Social. Para isso, portanto, precisamos ver as
definições de Estado empregadas por marxistas e bakuninistas. Lênin, em "O Estado e a
Revolução", por exemplo, afirma:
"Eis, expressa com toda a clareza, a idéia fundamental do marxismo no que concerne ao
papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do
antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os
antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a
existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliável. O Estado
aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser
conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classe
são inconciliáveis." (Lênin, O Estado e a Revolução, cap I.-1).
Na caracterização marxista do Estado, utilizada por Lênin, vemos o seguinte: 1º) o Estado
é um produto da contradição entre as classes sociais; 2º) o Estado é um instrumento de
dominação de uma classe sobre outra; 3º) o Estado é a repressão e violência (ver Lênin, "O
Estado e a Revolução", cap I-3). Na verdade, esta caracterização não está em contradição
com a definição do Estado criada por Bakunin, como veremos abaixo. Mas ela contém dois
movimentos "reducionistas", que, do ponto de vista teórico, irão secundarizar o papel do
Estado, ao mesmo tempo em que irão levar a uma supervalorização do Estado na prática
política dos social-democratas e comunistas.
O primeiro é o reducionismo do Estado a um "efeito" da economia: quer dizer, o "Estado é
um produto da contradição de classes" e desaparece somente "por efeito" do desaparecimento
destas. Segundo, é a redução do Estado à violência política, e da "violência política" ao
Estado. O argumento é relativamente tautológico: sendo o Estado a violência, existindo
contradição de classes (interesses irreconciliáveis), o Estado se faz necessário. O
leninismo, que é uma das transcrições históricas mais importantes da teoria de Marx,
apresenta essas principais características.
Entretanto, devemos indicar que na teoria marxista existem diversas definições acerca do
Estado. Mas esta definição, historicamente central (já que foi sobre ela que se edificou a
experiência da Revolução Russa), contrasta com as definições, esparsas, porém mais
detalhadas e específicas, que Bakunin dá acerca do Estado. É com base na definição
bakuninista que iremos contrapor a definição acima indicada.
"No fundo, a conquista não somente é a origem, é também o fim supremo de todos os Estados
Grandes ou Pequenos, poderosos ou débeis, despóticos ou liberais, monárquicos ou
aristocráticos, democráticos e socialistas também, supondo que o ideal dos socialistas
alemães, o de um grande Estado comunista, se realize alguma vez. Que ela foi o ponto de
partida de todos os Estados, antigos e modernos, não poderá ser posto em dúvida por
ninguém, posto que cada página da história universal o prova suficientemente. Ninguém
negará tão pouco que os grandes Estados atuais têm por objeto, mais ou menos confesso, a
conquista. (...) é uma tendência fatalmente inerente a todo Estado, qualquer que seja sua
extensão, sua debilidade ou sua força, porque é uma necessidade de sua natureza. O que é o
Estado senão a organização do poder? Mas está na natureza de todo poder a impossibilidade
de suportar um superior ou um igual, pois o poder não tem outro objeto que a dominação, e
a dominação não é real más que quando lhe está submetido tudo o que a obstaculiza; nenhum
poder tolera outro mais que quando está obrigado a isso, quer dizer, quando se sente
impotente para destruí-lo ou derrubá-lo. Somente o fato de um poder igual é uma negação de
seu princípio e uma ameaça perpétua contra sua existência; porque é uma manifestação e uma
prova de sua impotência. Por conseguinte, entre todos os Estados que existem um próximos
aos outros, a guerra é permanente e sua paz não é más que uma trégua." (Bakunin,
Fragmento, O princípio do Estado).
Desta maneira, Bakunin especifica uma característica fundamental do Estado que não está
presente na definição marxista: 1º) o Estado é, historicamente, o produto da conquista, e
seu objetivo é manter, reproduzir e ampliar esta mesma conquista. A conquista é o
princípio (no sentido lógico e histórico) e o fim (o objetivo) do Estado. Este elemento é
fundamental, porque a característica inerente ao Estado não é "a violência abstrata", mas
a violência associada a um tipo de relação social concreta: a conquista e a dominação.
Bakunin adiciona:
"En efecto, ¿qué vemos en la Historia? Que el Estado ha sido siempre el patrimonio de una
clase privilegiada, como la clase sacerdotal, la clase nobiliaria, la clase burguesa;
clase burocrática, al fin, porque cuando todas las clases se han aniquilado, el Estado cae
o se eleva como una máquina; pero para el bien del Estado es preciso que haya una clase
privilegiada cualquiera que se interese por suexistencia... (Bakunin, Artigos, "O
Patriotismo", 1869)
Estado quer dizer dominação, e toda dominação supõe a subjugação das massas e
conseqüentemente sua exploração em proveito de uma minoria governamental qualquer."
(Bakunin, Carta ao Jornal Le Liberté, 1872).
Combinado com este elemento da conquista estão ainda outros dois: 2º) o Estado é não
somente patrimônio e instrumento de uma classe, mas, quando estas classes se encontram
debilitadas, o Estado tende a acondicionar uma classe que zele por sua existência; 3º) o
Estado é sempre um instrumento de uma classe minoritária, e sua dominação se exerce sempre
sobre as "maiorias".
A caracterização do Estado utilizada por Lênin negligencia estes fatores que são
fundamentais. Vejamos então a Comuna de Paris, analisemos suas características internas e
em que definição ela melhor se enquadra. 1º) o Estado tem sua origem na conquista, a
Comuna de Paris teve sua origem numa Conquista? Não. A Comuna tem sua origem numa Revolta
de uma classe dominada, contra a conquista movida por Estado estrangeiro, e contra o
próprio Estado francês. 2º) O Estado, monárquico ou republicano, gera a desigualdade de
poder, sua concentração ou centralização. As primeiras e mais importantes medidas da
Comuna visaram a desconcentração do poder entre os bairros e distritos (entre os
organismos locais e centrais), sua democratização em meio a classe trabalhadora (as
decisões eram tomadas de baixo para cima, ou seja, as "maiorias" proletárias controlavam
as decisões das "minorias" dirigentes, criou-se uma igualdade temporária, mas radical,
entre a situação econômica do proletariado e a situação política [13]. 3º) A Comuna
esboçou também a igualdade econômica, ao estabelecer que as funções políticas seriam
remuneradas com base no salário de um operário médio. Assim, a Comuna expressa em seus
elementos internos a negação completa do princípio do Estado.
A Comuna de Paris não representa assim um "Estado ou Ditadura Proletária", mas sim um
anti-Estado, visto que sua organização, objetivos e relações, não somente não são
estatais, mas sim a negação consciente e deliberada do Estado [14]. Suas instituições são
equivalentes, proporcionais, porém contrárias às instituições estatais. Historicamente é
fácil comprovar que a Comuna de Paris, em sua organização interna, não pode ser
caracterizada como um Estado. O fato de ela expressar a violência organizada de uma classe
contra outra não é suficiente para caracterizar a formação de um "Estado", já que o Estado
se funda em outros princípios.
A experiência da construção do Socialismo e do Comunismo na URSS revela a importância da
correta caracterização do Estado. Os principais indicadores do início da burocratização se
dão já no período de 1919-1921, quando se institui as decisões econômicas e políticas nos
centros dirigentes, controlados pelo Partido Comunista, e se institui o retorno da
"desigualdade de rendas", já que os dirigentes passaram a ser mais bem remunerados que os
operários (são medidas exatamente contrárias àquelas tomadas pela Comuna e defendidas por
Lênin em suas "Teses de Abril"). A burocracia, ou mais precisamente, a "nomenklatura" se
tornou não apenas uma camada dirigente do ponto de vista político, uma "aristocracia
operária" com o poder de Estado, mas também uma camada privilegiada do ponto de vista
social e econômico. Isto foi um efeito direto da não destruição do Estado, do abandono
e/ou da interpretação deturpada das lições da Comuna de Paris. Aquilo que Trotski
denominou de "contra-revolução burocrática", que levaria (como efetivamente levou) à
restauração burguesa, tem suas origens na teoria do papel do "Estado na Revolução",
desenvolvido por Lênin [15].
Ao assumir a correta caracterização da Comuna Paris, vemos que ela foi a primeira
experiência, o primeiro esboço, do anti-Estado. Esta caracterização pode ser estabelecida
tanto a partir de Bakunin quanto a partir de Marx. E, daí, vários pressupostos assumidos
pelos partidos social-democratas e comunistas ficam comprometidos: a necessidade
inevitável de um estágio "democrático-burguês", que antecede um estágio socialista, que,
por sua vez, antecede necessariamente o estágio "comunista" (já que o "comunismo" deveria
ser produto da mudança histórica gradual, do desaparecimento do Estado), torna-se, ao
contrário, o ponto de partida. Este é o problema que a Comuna coloca de maneira impetuosa.
O "etapismo" e a própria estratégia política social-democrata "da conquista do poder
político" (do Estado) pela classe operária e da "agitação legal" ficam comprometidos. É
desferido um profundo golpe no oportunismo reformista de todos os matizes. Mas estas são
discussões que faremos em outra ocasião, já que este texto apenas indica alguns apontamentos.
_____
Notas:
1 - É certo que, atualmente, o termo comunismo se confunde com o de marxismo, mas não
devemos negligenciar que isto é fruto de um processo histórico. O comunismo surge como uma
doutrina na França no século XIX, e Louis Blanc, político francês, seria seu principal
teórico e expoente. Até 1850, permanecia assim. A difusão das idéias comunistas para
outros paises, levou à internacionalização da ideologia comunista desenvolvida na França.
Somente depois da derrota da Comuna de Paris que o marxismo, com o declínio do movimento
operário francês, se apropriaria por completo da designação comunismo.
2 - É importante observar que a Comuna de Paris de 1871, faz parte de um processo muito
específico específico da história francesa. A Comuna de 1871 se apresentava, no discurso e
percepção dos revolucionários, como uma espécie de reedição da Comuna de Paris de 1792.
Além disso, a própria revolução era a continuidade da Revolução de 1789, que tinha ficado
incompleta, por não ter realizado seus objetivos: liberdade, igualdade e fraternidade. As
forças políticas e principais instituições, como a Guarda Nacional, tinham se originado no
processo de radicaistransformações desencadeadas pela revolução de 1789.
3 - A interpretação de Bakunin: oportunismo. A interpretação dos conselhistas, como, por
exemplo, de A. Pannekoek, da oposição de esquerda da social-democracia alemã, enfatizavam
a leitura de Marx pela destruição do Estado de ruptura com o Manifesto Comunista. É
interessante notar que Marx e Engels jamais aceitaram reconhecer o papel jogado pelos
blanquistas e internacionalistas na construção da Comuna de Paris, no sentido político e
econômico. Sempre se viram obrigados a rechaçar a importância destes, de maneira que sua
leitura da Comuna sempre careceu de fidelidade histórica.
4 - As análises de Marx e de Engels, em outros momentos, apontam a Comuna como uma
experiência de destruição do Estado, como constata Lênin: "Engels convida Bebel a deixar
de tagarelar a respeito do Estado e a banir completamente do programa a palavra "Estado",
para substituí-la pela de "Comuna"; Engels chega a dizer que a Comuna já não é um Estado
no sentido próprio da palavra. Ao contrário, Marx fala do "Estado na sociedade comunista
futura" parecendo admitir assim a necessidade do Estado, mesmo no regime comunista."
(Lênin, O Estado e a Revolução Cap. V- 1).
5 - A tendência majoritária interpretaria a Comuna como um "tipo de Estado". A tendência
minoritária enfatizaria a destruição do Estado. Todas as duas leituras encontram
fundamentos nos escritos de Marx e Engels.
6 - Neste momento a maior parte do partido social-democrata, mencheviques e bolcheviques,
inclusive as futuras "principais" lideranças da URSS (Stalin, Bukharin, Zinoniev, Kamenev)
defendiam o aprofundamento da revolução democrático-burguesa, e não uma revolução
socialista. As "teses de abril" representam assim uma ruptura no programa socialdemocrata,
ou pelo menos no tempo em que se supunha a realização do programa, o que gerou uma série
de debates dentro do partido bolchevique. O livro "O Estado e a Revolução" se apresenta
como a sistematização da concepção de Lênin, onde é introduzido um outro elemento na sua
interpretação da Comuna de Paris e da teoria de transição.
7 - Lênin segue os exemplos de Marx e Engels ao falar das idéias anarquistas, tomando
idéias que nunca foram enunciadas historicamente por Proudhon e Bakunin. E mais: quando
obrigado a reconhecer a presença de proudhonistas e bakuninistas na Comuna, indica que
estes estavam lá "contrariando" suas próprias idéias, quando, na verdade - e o próprio
Lênin reconhece em outros momentos -, foi Marx quem fez alterações no Manifesto Comunista
em conseqüência da Comuna de Paris (?!). Inversamente, quando analisamos o "Catecismo
Revolucionário" de Bakunin, programa da sua organização secreta (1866), verificamos a
existência da menção às Comunas e a sua "livre-federação". Quer dizer, a história do
movimento operário e de suas tendências é completamente desfigurada na narrativa de Lênin,
onde fatos e acontecimentos reais deixam de ter importância.
8 - É no período entre 1869-1872 que se dará a "cisão" na AIT, que culminará com a
"expulsão" de Bakunin, que, na verdade, significa o fim da denominada "Primeira
Internacional".
9 - Ver o artigo "O Bakuninismo e a Teoria da Organização Política" (UNIPA).
10 - Vejamos as palavras de Engels sobre as ações da Comuna, que reproduzem em parte as
idéias de Marx: "En todas las proclamas dirigidas a los franceses de lasprovincias, la
Comuna losinvitó a formar una federación libre de todas las comunas de Francia conParís,
una organización nacional que, por vez primera, iba a ser creada realmente por
lanaciónmisma. Precisamente el poder opresordelantiguogobierno centralizado -- elejército,
lapolicía política y la burocracia --, creado por Napoleónen 1798 y que desde
entonceshabía sido heredado por todos losnuevosgobiernos como un instrumento grato y
utilizado por ellos contra sus enemigos, era precisamente este poder el que debía ser
derrumbadoen toda Francia, como había sido derrumbadoyaenParís." (Engels, Introdução, "A
Guerra Civil em França).
11 - Esta brecha a respeito da Ditadura do Proletariado e do papel do Estado seria
transformada em um verdadeiro abismo em determinados momentos de disputa interna, por
exemplo, entre Lênin e Pannekoek.
12 - Ver A. Pannekoek, "As Tarefas dos Conselhos Operários".
13 - "A escolha por eleição ou competição dos magistrados e funcionários comunais de todas
as ordens, como também o direito permanente de controle e revogação. A absoluta garantia
da liberdade individual e da liberdade de consciência. A permanente intervenção dos
cidadãos nos assuntos da Comuna pela livre manifestação de suas idéias, a livre defesa dos
seus interesses, com garantias dadas para daquelas manifestações pela Comuna que somente é
efetivado com a supervisão e proteção do livre e eqüitativo exercício do direito de
reunião e propaganda. Paris não quer nada além, como garantia local, uma condição,
naturalmente, de encontrar na grande administração central - a delegação das comunas
federadas - a realização e a prática dos mesmos princípios." (Manifesto da Comuna de
Paris, 19/04/1871).
14 - Isto porque o "não-estado", termo empregado por setores antiestatistas do marxismo, é
vago. Podemos dizer que todas as formas organizativas (uma empresa, uma família), são
"não-estados". A Comuna de Paris era uma forma organizativa que se colocava como
concorrente, alternativa e contrária ao Estado. Por isso, podemos denominá-la, com melhor
definição, de Anti-Estado.
15 - Quando Lênin fala de um "Estado Proletário", existe uma contradição que Lênin nunca
considerou seriamente, e que se manifestou historicamente na formação das burocracias nos
países socialistas: este Estado necessariamente exercerá a dominação sobre a maioria e
será controlado sempre por uma minoria, já que esta é uma característica essencial do
Estado. Sendo o proletariado na sociedade capitalista a classe majoritária, a dominação
necessariamente se exercerá sobre esta classe; daqui decorre outra contradição na teoria
comunista. Se os meios de produção serão centralizados no Estado, e este nunca é um ator
neutro, capaz de representar, ou conciliar, os interesses das classes, decorre
necessariamente que a centralização dos meios de produção nas mãos do Estado implica sua
centralização nas mãos de uma "minoria"; mesmo não sendo uma minoria burguesa, a
existência do Estado engendrará, como indicou Bakunin, uma nova camada social interessada
na manutenção deste Estado. O que significa, como disse o próprio Lênin, que o
proletariado não terá nem liberdade, nem igualdade.
https://uniaoanarquista.wordpress.com/2015/08/28/via-combativa-uma-teoria-do-anti-estado-a-comuna-de-paris-e-a-organizacao-politica-socialista/
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