(pt) anarkismo.net: Ideologia, Materialismo e Poder by Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares (CAZP)
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Segunda-Feira, 15 de Junho de 2015 - 15:58:45 CEST
O anarquismo, nascido no calor das lutas sociais do século XIX, sempre bem delimitou seus
princípios desde um plano organizativo. As ideias de federalismo e de autogestão, senão
exclusivas do anarquismo, tiveram em nossa corrente socialista um espaço desde as suas
bases e se constituindo em princípio ativo, organizador de sua prática política e ponto de
partida de suas elaborações teóricas. Assim, consideramos que o anarquismo se constitui
enquanto ideologia e prática política. ---- 1. ANARQUISMO, TEORIA E IDEOLOGIA ---- O
anarquismo, nascido no calor das lutas sociais do século XIX, sempre bem delimitou seus
princípios desde um plano organizativo. As ideias de federalismo e de autogestão, senão
exclusivas do anarquismo, tiveram em nossa corrente socialista um espaço desde as suas
bases e se constituindo em princípio ativo, organizador de sua prática política e ponto de
partida de suas elaborações teóricas. Assim, consideramos que o anarquismo se constitui
enquanto ideologia e prática política.
O legado deixado pelos autores clássicos do anarquismo, ainda que naturalmente
insuficientes para a compreensão do hoje, não perderam vitalidade, especialmente tomando
em conta a apreensão de seus fundamentos para estabelecer uma base teórica para a
realidade contemporânea. Clássicos são assim chamados, nem tanto pelo pioneirismo, mas
pela força e resistência que suas elaborações possuem no enfrentamento prático-teórico com
a realidade histórico-social. Nascidos em circunstância de formação e expansão do sistema
capitalista, inauguraram toda uma obra a ser continuada - sem abdicar da crítica tão
necessária quanto salutar. Certamente, é de nosso desejo que muitas das ideias anarquistas
e socialistas percam a importância para entender a realidade que nos cerca, mas estamos
convictos que isso só será possível quando banirmos todo mecanismo de exploração e
dominação da sociedade.
Enquanto isso não é realizado, acreditamos que os clássicos do anarquismo ainda têm muito
a nos ensinar e é com base neles que partimos de construir elementos teóricos que permitam
ter uma concepção de mundo e algumas ferramentas para desvelar a cortina de fumaça por
trás das relações de classe. Ferramentas que não se fecham as contribuições
contemporâneas, nem ao diálogo - sempre que necessário e possível - com toda a
contribuição na busca sem fim por uma leitura mais expressiva possível da realidade
histórico-social. Nesse empreendimento, necessário esclarecer a delimitação, não estanque
e mecânica, mas articulada entre teoria, ideologia e prática política.
A Teoria, vinculada ao conhecimento da realidade, é um legado histórico-social e, assim,
possui suas limitações. Sendo o conhecimento patrimônio histórico-cultural da humanidade,
o parâmetro para a incorporação das contribuições teóricas existentes não é a qualificação
entre o que é anarquismo e o que não é. No entanto, é sob o horizonte de radical
transformação social que partimos de entender a realidade e intervir perante ela.
Portanto, não será qualquer teoria ou quaisquer conceitos que nos servem.
É preciso também compreender as relações de mútua dependência e influência entre teoria e
método e entre prática política e ideologia que aqui decompomos em dois campos apenas para
fim didático-analítico, mas, reforçamos, representam na verdade uma unidade e assim deve
ser pensada. Neste sentido, o que poderíamos chamar de campo da ciência (teoria/método) e
o campo da vontade e subjetividade (ideologia e prática política) se determinam dentro de
seus campos e de um campo para outro, compondo, portanto, uma unidade em que não havendo o
entendimento de sua totalidade teremos distorções.
Em relação à ideologia, esclarecemos que trabalhamos no sentido de que esta é vinculada às
condições histórico-sociais, porém não emana mecanicamente delas. A ideologia, então, é
tomada enquanto um corpo de ideias, valores e modos de percepção. A ideologia, neste
sentido, não é apenas "falsa consciência". Sejam falsas ou verdadeiras, dissimuladas ou
não, as ideias, os valores e os modos de percepção e apreensão da realidade representam
interesses práticos e ao tempo em que influi na produção teórica - em seu processo de
formulação conceitual e de seleção dos elementos e fatos da realidade - representam a
própria síntese de fundamentos teóricos. A ideologia é um componente não científico, mas
presente na própria produção do conhecimento, sendo, desde o ponto de vista de uma
perspectiva de mudança revolucionária na sociedade, um componente indispensável que serve
como estímulo à prática política ao mesmo tempo em que se inter-relaciona com o pensar
sistemático, teórico, em todo o seu processo.
Como estímulo à prática política, queremos dizer que não será o mero combate ideológico
que provocará mudanças sociais, uma vez que é "a ideia que deve animar a vontade, mas que
são necessárias determinadas condições para que a ideia possa nascer e agir" (MALATESTA,
1989, p. 141). Assim, voltamos à necessidade de apreensão da realidade teoricamente para
melhor situar a ação político-social e o necessário combate ideológico. Como nos ensina o
Huerta Grande da FAU: "Entre teoria e ideologia existe uma vinculação estreita, já que as
propostas destas se confundem e se apoiam nas conclusões da análise teórica. Uma ideologia
será tanto mais eficaz como motor da ação política, quanto mais firmemente se apoie nas
aquisições da teoria".
A Teoria estando vinculada à ideologia e sendo desenvolvida a partir da existência de uma
prática política (e nunca há ausência desta, mas sim formas diferenciadas de exercê-la)
não pode servir de justificativa para esta. A Teoria, antes de tudo, orienta e precisa
esta prática política e não o inverso. Isso ocorre porque a realidade não pode ser
concebida para além das aparências sem que passe pelo crivo da análise teoricamente
orientada. Se a realidade, na totalidade de suas determinações, pudesse ser apreendida de
maneira imediata, sem a intervenção do pensar sistemático e articulado, não haveria razão
para a existência de ciência. O senso prático e a experiência imediata seriam suficientes,
porém, sem desmerecê-los, eles podem ser - e por vezes são - enganosos.
Ainda assim, é preciso compreender que a realidade é maior que o conhecimento que podemos
ter dela. Recorrendo mais uma vez ao Huerta Grande (FAU): "A luta dos explorados não
esperou a elaboração do trabalho teórico que desse razão para ela desencadear-se. Seu ser,
sua existência, foi anterior ao seu conhecimento, à análise teórica de sua existência".
Por isso, cabem às teorias e à própria ciência iluminar a vida, não governá-la, tal como
sempre defendeu Bakunin.
O pensamento científico, por sua vez, não pode ser compreendido descolado do seu contexto
histórico-social. Desta feita, o homem está "sempre forçado a contentar-se com a ciência
do seu tempo" (BAKUNIN, 1977b, p. 253). O socialismo e o anarquismo não são ciência, mas
se valem da ciência, produzem também ciência/teoria. O próprio processo de produção do
conhecimento é produto do contexto histórico-social, da luta de classes, das presentes
relações de força e dominação. Evidente, que o que aqui afirmamos representa uma tomada de
posição e concepção a respeito das relações e determinações entre teoria, ideologia e
prática política, onde partimos do seguinte pressuposto: "a ciência compreende o
pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida"
(Id., 2000, p. 61). Às criações da vida cabe à própria vida.
Não só os meios determinam os fins e o objetivo determina o método, mas a prática política
e a ideologia também serão determinantes na definição da maneira que pensamos e lidamos
com a Teoria. Não basta apenas estarmos dotados de um profundo conhecimento da realidade.
Ainda que este seja pré-requisito para ter condições de operar uma transformação social, a
maneira de construí-la, de interceder diante da realidade que se pretende mudar, será
determinante e pode até mesmo fazer da teoria uma mera abstração.
Está no campo da ciência a análise que permite apontar a possibilidade de construção do
socialismo, tal como a identificação de frações das classes oprimidas como
estrategicamente melhor posicionadas para efetivar essa transformação. Sendo que as formas
concretas de postular esta transformação não estão nesse campo, e sim mais estritamente
vinculadas à prática política adotada e à ideologia construída. Em outros termos, se a
teoria faz apontamentos gerais a respeito de entender (para transformar) a realidade
histórica, ela não define seu processo (presença ou não de protagonismo popular, por exemplo).
"A ciência mais racional e mais profunda não pode adivinhar as formas que a vida social
assumirá no futuro. Ela pode apenas definir fatores negativos, que decorrem, de modo
lógico, de uma rigorosa critica da sociedade atual. Assim, a ciência socioeconômica,
procedendo a esta critica, chegou à negação da propriedade individual hereditária, por
conseguinte, ao conceito abstrato e, por assim dizer, negativo, da propriedade coletiva
como condição necessária do futuro sistema social (Bakunin, 2003)."
Apoiados em Bakunin, repetimos: às criações da vida cabe à própria vida. Por isso, nossa
ideologia e a prática política devem apontar para um processo de transformação que
articule o conjunto dos oprimidos, para que estes sejam protagonistas das mudanças de suas
próprias vidas. Um processo que abra um horizonte socialista e libertário não se constrói
com vanguardas (auto)eleitas e pretensamente mais esclarecidas, nem mesmo hierarquizando e
dividindo as classes oprimidas, mas sim articulando e construindo os sujeitos da mudança,
em seu conjunto e desde as suas bases, com as suas contradições, limites e potencialidades.
2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
O desenvolvimento da sociedade, ou seja, a história da humanidade, obviamente não decorre
de um único fator. As determinações a qual a sociedade constrói seus elementos são
diversas e não são estáticas, apresentam transformações no tempo e no espaço. O complexo
de relações de interdependência e a multicausalidade dos fatores ou conjunto de fatores
estão também associados e em relação ao tempo e ao espaço, portanto, apresentando mudanças
nos elementos preponderantes, na profundidade e complexidade.
Quando nos referimos às mudanças de preponderância, profundidade e complexidade, dadas no
tempo e no espaço, entre os fatores e conjuntos de fatores que atuam na sociedade,
queremos enfatizar que as diferentes épocas e modos de vida social apresentam questões e
dilemas próprios, específicos de sua época e modo de vida.
Procurando estabelecer uma leitura a respeito da unidade no universo através de uma base
real e comum, Bakunin compreendia que o mundo estar imerso em complexas e amplas relações
de interdependência. Em Considerações filosóficas..., afirma Bakunin:
"Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as
coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob os aspectos da qualidade
como quantidade, grandes, médias ou infinitamente pequenas, próximas ou imensamente
distantes, exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e
cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação
perpétuas que, combinando-se num único movimento, constituem o que chamamos de
solidariedade, vida e causalidade universais. (BAKUNIN, 1988; p. 57)"
Esta chamada causalidade universal, a que Bakunin se refere para explicar a unidade no
universo, não é uma causa absoluta e primeira. Ela é mais uma "resultante produzida e
reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares" onde
"cada ponto atuando sobre o todo (aqui o universo é produzido), e o todo atuando sobre
cada parte (aqui o universo é produtor ou criador)" (1977, p. 186). Trata-se da unidade
real do universo, que não sendo nem pré-determinada, nem pré-concebida, é a eterna
transformação, sem começo, limite ou fim: é a negação de "Deus", pois com um "legislador"
impondo arbitrariamente suas leis não poderia existir tal unidade. Se existe ordem no
mundo, não significa dizer que existe um "ordenador", em especial.
Portanto, é este movimento, o qual Bakunin denomina de causalidade universal, quem forma
todos os mundos, a própria natureza, desde o mundo mineral até o animal (incluído o
homem). O homem se insere nesta cadeia de relações e transformações mútuas e está
submetida à mesma. Por isso o anarquista russo afirmou: "[...] o homem com sua
inteligência magnífica, suas ideias sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é,
como tudo o que existe neste mundo, que um produto da vil matéria." (BAKUNIN, 2000, p. 13).
É a partir deste ponto, o homem produto da matéria, que queremos iniciar este debate com
intenção de construir algumas indicações filosóficas, enquanto concepção de mundo, e
teórico-metodológicas, para a compreensão da vida humano-social.
Quando Bakunin afirma que somos matéria não parte de uma compreensão materialista da
realidade de forma mecânica, concebendo a vida como natimorto, nem elimina a pluralidade
de fatores que convergem na formação das sociedades. A relação entre matéria e ideia é
fruto ainda hoje de grandes polêmicas, assim como foi no passado. As dualidades e
oposições criadas entre o que se chama de material e o que se refere como mundo das
ideias, do simbólico, mais dificultam do que ajudam a entender.
Em seu tempo, Bakunin afirmava:
"Desgraçadamente, estas palavras matéria, material, tem-se formado em uma época em que o
espiritualismo dominava, não só na teologia e na metafísica, senão na própria ciência, o
que fez com que, sob o nome de matéria, se formasse uma ideia abstrata e completamente
falsa de algo que seria não só estranho, senão absolutamente oposto ao espírito; e é
precisamente esta maneira absurda de entender a matéria o que prevalece ainda hoje, não só
entre os espiritualistas, senão também entre os muitos materialistas. É por isso que
muitos espíritos contemporâneos rechaçam com horror essa verdade, incontestável, sem
dúvida, de que o espírito não é outra coisa que um dos produtos, uma das manifestações do
que chamamos matéria. Para nós, a matéria não é de nenhum modo esse substrato inerte
produzido pela abstração humana: é o conjunto real de tudo o que é, de todas as coisas
realmente existentes, incluindo as sensações, o espírito e a vontade dos animais e dos
homens. (BAKUNIN, 1977, p. 267)"
Dentro deste quadro de análise considera-se, portanto, uma compreensão equivocada colocar
as ideias, as vontades e as sensações como manifestações opostas ou mesmo completamente
autônoma do chamado mundo material. Seguindo os passos de Bakunin (s.d., p. 54-55), "o
homem é matéria, e não pode impunemente desprezar a matéria", assim como é um animal, e
assim "não pode destruir a sua animalidade". Porém, sob esta condição de animalidade, o
homem "pode e deve transformá-la e humanizá-la pela liberdade". Para entender a vida
social e o seu desenvolvimento (seja qual for a direção deste) é preciso compreender como
se produz e se reproduz esta vida social. E para compreender a produção e reprodução desta
vida social é preciso voltar-se para as bases e condições de existência da vida social.
Esse ponto é fundamental.
No texto intitulado por Deus e o Estado, Bakunin inicia afirmando que:
"Três elementos ou três princípios fundamentais constituem, na história, as condições
essenciais de todo o desenvolvimento humano, coletivo ou individual: 1º a animalidade
humana; 2º o pensamento; 3º a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia
social e privada; à segunda a ciência; à terceira a liberdade (BAKUNIN, 2000, p. 13)."
O primeiro ponto estabelecido é a animalidade humana. O tema da humanização do homem é
recorrente em escritos de Bakunin. Para o anarquista russo, isto é um processo, uma
conquista histórica e um ato material, prático. O homem só se torna homem, a partir do
momento em que se diferencia dos demais animais. Este fato é uma conquista material, um
ato prático, que se realiza através do trabalho e do desenvolvimento do pensamento, das
ideias e da palavra. Como qualquer ser, o homem precisa garantir as condições de sua
reprodução. Porém, o homem humanizado, transformado em ser social, possui determinações
específicas, especialmente porque este ser social não apenas reproduz sua vida, mas ele
próprio produz, cria e transforma o meio e a si mesmo como nenhum outro.
Todavia, ele não rompe completamente com sua animalidade, uma vez que está também
submetido, agora sobre graus diferentes, as determinações químicas, físicas e biológicas.
É preciso destacar que o homem, em sua evolução natural, desenvolveu características
biológicas fundamentais para criar as condições necessárias para o seu desenvolvimento
enquanto ser social. Estas características vão desde a posição de sua coluna vertebral que
o possibilita andar de forma ereta, passando pelo formato de suas mãos que o permite
manusear objetos com maior precisão e sua estrutura vocal que permite a emissão de sons
articulados, chegando ao elevado grau de complexidade e especialização neurocerebral que
desenvolveu. Por isso, autores como Murray Bookchin (2010, p. 122) chega a considerar que
"as grandes realizações do pensamento humano, a arte, a ciência e a tecnologia, não servem
apenas para monumentalizar a cultura, servem também para monumentalizar a própria evolução
natural".
Sob estas condições de evolução natural, de evolução dos seres orgânicos, o gênero humano
pode transformar-se em um ser social e nesta qualidade o diferencia dos demais seres por
passar a apresentar novas determinações em seu devir histórico. A existência de
coletividades e de organização, que se nos for permitido a licença do termo, de
"sociedades", é constatada em outros seres, não somente humanos. Insetos como abelhas e
formigas formam grandes coletividades com divisões de funções.
Porém, ao contrário do ser humano - enquanto ser social - estes animais são determinados
substancialmente em função de sua carga genética e herança biológica. São estes elementos
que definem seus padrões de comportamento, padrões estes que são consideravelmente
resistentes ao tempo e ao espaço. Assim, o que uma abelha ou uma formiga fazem hoje é
basicamente o mesmo que fazem a milhares de anos. A situação repete se pegarmos animais de
uma mesma espécie e situados em locais diferentes, sem contato um com o outro: seus
padrões de comportamento serão similares. Assim, a relação dos animais não humanos com o
meio, com a natureza (exterior), não é de transformação, ao menos não na profundidade da
ação humana, sendo muito mais de adaptação.
Por sua vez, o homem, transformado em ser social, experimentou diversas formas de
organização social, tal como diferentes padrões de comportamento. Se há também a
permanência, por outro lado, destaca-se e distinguem-se as mudanças e transformações
ocorridas, no tempo e no espaço, na sociedade humana. Nesse sentido, as determinações de
sua sociabilidade adquirem o fator primordial para definir os padrões de comportamento do
homem, onde estas não são naturais, mas eminentemente históricas e sociais, tendo o
aprendizado por meio de práticas e assimilação de códigos, símbolos e linguagens um
fundamental papel. É preciso compreender a especificidade deste mundo histórico-social.
Portanto, se entendemos a vida social, inserida no complexo de relações de
interdependência e multicausalidade, o fazemos a partir das condições de existência,
condições estas que não estão dissociadas de suas dimensões históricas e culturais, do
tempo e do espaço.
Para Bakunin são as condições materiais de existência (que não podem ser confundidas ou
reduzidas apenas como relações de produção e troca de mercadorias) a base concreta de toda
a sociedade. Isso significa dizer que o que define os limites e as possibilidades do
desenvolvimento humano em toda a sua amplitude (econômica, intelectual, moral, cultural,
política, etc) é, em última instância, a forma como (e com que meios) os homens produzem e
reproduzem sua vida social.
Desta forma, entendemos que a realidade histórico-social pode ser compreendida em variados
aspectos ou esferas, desde um ponto de vista mais puramente econômico, cultural,
ideológico, etc.. Porém, é preciso afirmar que estas são dimensões de uma única realidade
dialeticamente estruturada. Justamente por se apresentar como uma realidade dialeticamente
estruturada que a leitura e compreensão da sociedade, desde o ponto de vista de uma
totalidade social, é não somente desejável, como possível.
Retomando os eixos de análise propostos por Bakunin (animalidade/economia;
pensamento/ciência; revolta/liberdade) e dando a eles o seu necessário desenvolvimento, a
história humana "aparece então como a negação revolucionária do passado, algumas vezes
apática e indolente, e outra apaixonada e poderosa" (Id., 1990, p. 209). Ainda que a
relação seja dialética, não é à toa que o primeiro elemento ou princípio de
desenvolvimento humano pontuado por Bakunin seja posto na relação "animalidade
humana/economia".
Em Considerações filosóficas... Bakunin expõe a determinação que esta possui diante das
possibilidades humanas, que não são ilimitadas. Podemos viver sem música, sem livros,
teatros, cinema, futebol entre uma infinidade de coisas. Porém, não podemos viver uma
semana sequer sem garantir a organização da produção, distribuição e consumo de bens
materiais, em qualquer sociedade que seja. Mesmo porque, sem a garantia de produção
destes, não há violão, não há papel, tijolos, cimento, borracha etc.. Todos estes
elementos não são apenas matéria, mas conhecimento e ideias.
Por isso, a luta pela vida é o ponto de partida da vida animal e a garantia de seu
desenvolvimento (Id., 1977b, p. 197). Sem a garantia de satisfação destas condições não há
vida animal ou o homem não poderá se desenvolver quanto às possibilidades de construção de
uma vida menos dependente das sujeições dos fenômenos da natureza externa, rompendo sua
bestialidade, sua animalidade. Entende Bakunin que o mundo ideal representa a "última e
mais alta expressão de sua vida animal" (Id., 1977b, p. 199). Como já dissemos mais acima,
a humanização do homem é um ato prático, uma conquista material, realizada pelo trabalho e
iluminada pelo pensamento.
A "potência de abstração" na vida humana é o que vai permitir aos homens "conceber a ideia
de totalidade dos seres, do universo e do infinito absoluto" (Ibid., p. 202). Se não
existisse tal possibilidade não poderia existir o mundo histórico e social, mas o homem
não é aquilo que ele pensa ser, pois "toda coisa não é mais do que o que faz" sendo "sua
ação e seu ser um só" (Ibid., p. 291). É na sua ação que o homem se constrói e, portanto,
esta potência de abstração é formal. Assim, o fator determinante (ou fundante) para a
construção do mundo histórico e social é a ação humana frente a matéria que tem como
mediação o trabalho de transformação da natureza exterior. Esta é a objetividade da
relação entre o homem e a matéria, entre sujeito e objeto.
No entanto, a objetividade da realidade não subtrai a subjetividade construída
historicamente num dado meio social, ainda que esta seja determinante na construção da
própria subjetividade, do imaginário e valores ideológicos de um povo. Pois, se por um
lado "a vida natural e social, precede o pensamento" (Id., 2003, p. 167), por outro, a
concretude das relações sociais não exclui a variável da subjetividade a incidir nestas
formas concretas de relações econômicas, políticas e culturais existentes na sociedade.
Esta variável enquadra-se no que Bakunin (2001, p. 85) chamou de "temperamento histórico"
e "hábitos sociais" de um povo em questão, que produz ideologias e práticas sociais, e que
também determina seu grau de consciência, ou, nos dizeres de Bakunin, "a intensidade do
instinto de revolta" (Id., 2001, p. 40). Ou seja, corresponde aos pontos 2 e 3
(pensamento/ciência e revolta/liberdade) da citação inicial de Bakunin que abre este
tópico, porém, sob as bases e em relação dialética ao ponto 1 (animalidade/economia).
A atuação destes elementos no desenvolvimento histórico de um povo ou da humanidade exerce
uma "influência considerável sobre seus destinos, e até mesmo sobre o desenvolvimento de
sua força econômica" (Ibid., p. 40).
A análise materialista abarca a chamada animalidade dos homens (as formas e os meios de
sua produção e reprodução social), a produção da ciência e das ideias e a própria luta de
classes. Todos estes elementos abrangem um aspecto político-ideológico e devem ser
compreendidos enquanto eixos de uma mesma análise.
Por isso, afirmamos que estão nas condições materiais de existência a base de compreensão
dos aspectos econômicos, políticos, culturais e ideológicos da realidade social. Estas
condições materiais de existência devem ser a expressão de uma interação/determinação
entre as condições mais elementares da vida social, como os meios de produção e
instrumentos de trabalho, o consumo e a troca, com as ideias e práticas socialmente
produzidas em contato com esta realidade "primária".
O essencial é compreender que está na ação humana, fundamentalmente em sua produção e
reprodução da vida social, a fonte da produção das ideias e práticas sociais -
transformadoras ou conservadoras.
O debate aqui levantado muitas vezes torna-se polêmico, com justificadas oposições e
resistências, uma vez que foi sob o manto de uma "análise dialética e materialista" que o
socialismo, especialmente por vertentes marxistas, foi levado, entre outros fatos, para
negociar direitos dos trabalhadores no parlamento burguês com os reformistas e a
social-democracia clássica, abraçou - sob os desígnios de Lênin - as ideias de Taylor como
"organização científica do trabalho" na Rússia do governo bolchevique, "justificou" as
mais torpes práticas imperialistas e tomou partido de um lado em guerras entre Estados
capitalistas (incluso Marx, como foi o caso da colonização inglesa na Índia e da guerra
franco-prussiana).
Como sabemos, a relação entre teoria, ideologia e estratégia não são mecânicas, mas
necessariamente são próximas e influentes entre si. O que reforça a ideia da compreensão
do anarquismo fundamentalmente enquanto uma ideologia política.
A ciência/teoria nos permite, ou deve nos permitir, compreender as conexões e os nexos
causais entre os diversos fatores e o conjunto de relações sociais com perspectiva de uma
visão de totalidade social. É preciso esclarecer que ter uma visão de totalidade não
significa ter uma visão de todos os fatos da sociedade. Conhecer a totalidade social não é
conhecer tudo o que existe, mas sim, captar sua essência, os pontos nos quais são
preponderantes e capazes de produzir efeito maior em seu conjunto. Há concordância com
Karel Kosik, autor de Dialética do concreto, quando este afirma que:
"[...] totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um
todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fato,
conjuntos de fato) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não
significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não
constituem, ainda, a totalidade." (1986, p. 43-44)"
A generalidade científica não provém das abstrações em todos os detalhes da vida, mas sim
da "coordenação dos detalhes". (Bakunin, 1977, p253). Assim, as condições materiais de
existência oferecem o ponto de partida, a perspectiva de totalidade e de uma análise mais
profunda, mas que não pretende exaurir e dissecar a realidade em todos os seus detalhes e
pormenores.
As ideias enquanto representações da vida social estão intimamente ligadas às condições de
existência e exprimem suas contradições, assim como as disputas e interesses de agentes,
grupos e classes. A ciência social, sendo um conhecimento sistematizado e aprofundado da
realidade social, também responde e corresponde aos interesses e as necessidades postas em
cada contexto histórico-social.
O homem sempre buscou explicação para o mundo que o cerca. A curiosidade e a sede de
explicar os fenômenos da natureza e da sociedade é um fator e elemento decisivo para que a
humanidade pudesse conhecer um desenvolvimento intelectual e tecnológico. Assim, o
conhecimento é uma produção histórica onde a ciência é um de seus ramos. De explicações
místicas e fantasmagóricas - o despertar da razão sob a forma de demência (diria Bakunin)
- às explicações de base científica, o homem procurou explicar o como e o porquê, as
relações entre si e entre as coisas.
É pertinente expor que o desenvolvimento do pensamento racional não poderia ter ocorrido
se não houvesse como acompanhamento um progressivo domínio humano sobre a natureza
exterior. O pensamento de base religiosa gera um "sentimento de absoluta dependência do
indivíduo passageiro em relação à eterna e onipotente natureza" (BAKUNIN, 1988, p.63). À
medida que o homem passa a ser menos determinado pela natureza exterior, modifica a
relação estabelecida com esta, rompendo com um mundo de fatalidades, é o momento em que o
pensamento religioso, senão cede o lugar, ao menos, passa a dividir espaço nas
interpretações, explicações e orientação da vida prática com o pensamento racional e
científico.
Esta mudança de percepção é fundamental também para a tomada de consciência humana de que
somos sujeitos de nossa própria história. Afirma Kosik (2010, p. 22) que "a realidade pode
ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a
realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós". Mas esta
realidade, construída por nós (ainda que não necessariamente percebida desta forma), é
sempre produzida em certas condições.
***
Com as questões levantadas acima, é pertinente refletir e enfatizar, o caráter histórico e
social do conhecimento e das teorias. Boa parte das teorias contemporâneas no universo das
ciências sociais passou a girar em torno da relação/oposição entre micro x macro, ação x
estrutura etc.. O pensamento clássico do século XIX, especialmente, teria girado, segundo
muitas das teorias contemporâneas, apenas sob o aspecto macro e pela estrutura da
realidade, negligenciando o aspecto micro, as particularidades e a ação dos indivíduos.
Evidente que muitas críticas neste sentido são válidas, necessárias, e agregam em um
conhecimento mais aprofundado da realidade histórico-social, seja aprimorando teorias e
conceitos, seja refutando outras, alargando horizontes de análises ou apontando e tentando
preencher lacunas. Todavia, como diz o ditado, temos que ter o cuidado para não jogar a
água fora junto com o bebê.
Sabemos que o pensamento positivista da realidade social em muito influenciou as teorias
socialistas, seja por parte dos anarquistas, seja por parte dos marxistas, produzindo
teorias sociais mecanicistas e deterministas. No entanto, boa parte das teorias
contemporâneas ao criticar o que seria o "objetivismo" do pensamento clássico saiu de um
extremo para outro, terminando em um "subjetivismo". Em grande parte, o anarquismo fazendo
firme oposição ao autoritarismo e as burocracias, e historicamente em geral, sempre
apresentando-se aberto e avesso ao dogmatismo, terminou, em parte e por razões que
extrapolam os limites desse texto e exigiriam outra análise, por ser absorvido, seja mais
à direita, seja mais à esquerda, por este subjetivismo e esta, digamos, indeterminação à
respeito da conformação da realidade histórico-social. Numa crítica aos elementos mais à
direita desta influência no anarquismo, é de particular importância registrar a crítica de
Murray Bookchin (2011) ao chamado "anarquismo estilo de vida", "primitivismo", entre
outros absurdos irracionais que são uma afronta a séculos de criação humana.
Por vezes, estas ideias estão associadas ao comumente chamado de pós-modernismo. David
Harvey em Condição pós-moderna, parte da tese de que o pensamento e as práticas
pós-modernas estão associados às mudanças da própria estrutura econômica-política que o
capitalismo sofreu, especialmente a partir dos anos de 1970.
Seguindo os passos do estudo de Harvey (1992), o qual é acompanhando de análise das
mudanças na arquitetura e nas artes, podemos definir o pós-modernismo como uma exaltação
do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e indeterminado, do caótico (HARVEY, 1992, p.
51). Assim, a tentativa de dar uma racionalidade, uma unidade ao universo, seria em vão,
senão arbitrária. A dimensão histórica da ação humana acaba também neste sentido sendo
marginalizada na teoria social, considerada apenas em seus fragmentos ou, mesmo, apenas
considerada como uma espécie de "universos particulares".
***
3) HOMEM E NATUREZA; IDEIA E MATÉRIA - O MUNDO HUMANO É UM MUNDO HISTÓRICO-SOCIAL
"Nas sociedades de animais todos os indivíduos fazem exatamente as mesmas coisas: um mesmo
génio os dirige, uma mesma vontade os anima. Uma sociedade de animais é um conjunto de
átomos redondos, curvos, cúbicos ou triangulares, mas sempre perfeitamente idênticos; a
sua personalidade é unânime, dir-se-ia que um só eu os governa a todos. Os trabalhos que
os animais o executam, quer individualmente, quer em sociedade, reproduzem o seu carácter
traço por traço: assim como o enxame de abelhas se compõe de unidades da mesma natureza e
igual valor, assim o favo de mel é formado pela unidade alvéolo, constante e
invariavelmente repetido.
Mas a inteligência do homem, destinada ao mesmo tempo para o destino social e para as
necessidades da pessoa é de uma factura completamente diferente e é o que torna, por uma
consequência fácil de conceber, a vontade humana prodigiosamente divergente. Na abelha a
vontade é constante e uniforme, porque o instinto que a guia é inflexível e é esse o único
instinto que faz a vida, a felicidade e todo o ser do animal; no homem, o talento varia, a
razão é indecisa, portanto, a vontade múltipla e vaga: procura a sociedade, mas foge das
dificuldades da monotonia: é imitador, mas amoroso das suas ideias e doido pelas suas
obras." (PROUDHON, 1997; p. 218-19)
De saída, é preciso destacar que o homem, em sua evolução natural, desenvolveu
características biológicas fundamentais para criar as condições necessárias para o seu
desenvolvimento enquanto ser social. Estas características vão desde a posição de sua
coluna vertebral que o possibilita andar de forma ereta, passando pelo formato de suas
mãos que o permite manusear objetos com maior precisão e sua estrutura vocal que permite a
emissão de sons articulados, chegando ao elevado grau de complexidade e especialização
neurocerebral que desenvolveu.
Sob estas condições de evolução natural o gênero humano pôde transformar-se em um ser
social e nesta qualidade o diferencia dos demais seres por passar a apresentar novas
determinações em seu devir histórico. A existência de coletividades e de organização, que
se nos for permitido a licença do termo, de "sociedades", é constatada em outros seres,
não somente humanos. Insetos como abelhas e formigas formam grandes coletividades com
divisões de funções.
Porém, ao contrário do ser humano enquanto ser social, estes animais são determinados
substancialmente em função de sua carga genética e herança biológica. São estes elementos
que definem seus padrões de comportamento, padrões estes que são resistentes ao tempo e ao
espaço. Assim, o que uma abelha ou uma formiga fazem hoje é basicamente o mesmo que fazem
a milhares de anos. A situação repete se pegarmos animais de uma mesma espécie e situados
em locais diferentes, sem contato um com o outro: seus padrões de comportamento serão
similares. Assim, a relação dos animais não humanos com o meio, com a natureza (exterior),
não é de transformação, é no máximo de adaptação.
Por sua vez, o homem, transformado em ser social, experimentou diversas formas de
organização social, tal como diferentes padrões de comportamento. Se há também a
permanência, por outro lado, destaca-se e distinguem-se, as mudanças e transformações
ocorridas no tempo e no espaço na sociedade humana. Nesse sentido, o aprendizado e as
determinações de sua sociabilidade adquirem o fator primordial para definir os padrões de
comportamento do homem.
Nesse sentido, colocamos a discussão das determinações do SER SOCIAL e do TRABALHO como
elementos básicos para compor uma base teórica que põe homens e mulheres enquanto
criadores e criaturas de seu próprio mundo, um mundo histórico-social. Não há destino,
seja de paraíso terreno, seja de escravidão eterna. A sociedade é desnaturalizada e sua
transformação revolucionária não abriga mais apenas o campo da vontade, mas também
enquanto possibilidade real teoricamente visualizada. Para tal, retomamos algumas
contribuições presentes tanto em Proudhon quanto em Bakunin, discussões que muitas vezes
não tem o merecido destaque no corpo de ideias destes autores e do próprio anarquismo,
ainda que apareçam com destaque em seus escritos.
Para Proudhon, trabalho é a "força plástica da sociedade". O define como a "ação
inteligente do homem com um fim de satisfação pessoal" (s.d., p. 256-7). Para ele esta é
uma característica marcante, na qual está a grande diferença e "superioridade" perante os
demais animais no sentido de garantir a produção e reprodução de sua vida social. A
inteligência que pode ser atribuída aos animais, não os permitem "modificar as operações
dos instintos", assim como saber melhor lidar com os "acidentes imprevistos" (Proudhon,
1997, p. 222). O homem, vivendo em sociedade e criando os materiais e os meios de sua
existência, transforma continuamente sua ação instintiva em refletixa.
O homem, então, é o animal que trabalha. Mas, para Proudhon, trabalho não é qualquer
atividade humana. Forma parte do trabalho a matéria, o instrumento e a
inteligência/subjetividade humana. O primeiro instrumento do homem é o seu próprio corpo,
como suas mãos. A partir delas e da matéria em que atua, tem-se a criação de "instrumentos
fictícios" (s.d., p. 258).
Os animais, por sua vez, não empregam outros instrumentos que suas unhas, dentes, patas e
estômago, obedecendo essencialmente a instintos. É de conhecimento que algumas espécies de
animais, sobretudo aquelas mais próximas geneticamente dos humanos, chegam a construir
algum tipo de objeto para facilitar o seu "trabalho". Porém, há um aspecto que se
distingue essencialmente nos homens e faz do trabalho humano um trabalho criador. Dizia o
francês que a ação que o homem exerce sobre a matéria, converte esta, ao mesmo tempo, em
instrumento e obra. E não somente, pois a associação estabelecida entre os homens é
qualitativamente diferente da dos animais, uma vez que o homem só realiza suas
potencialidades em sociedade (s.d.; 1997).
Na mesma linha de raciocínio seguia Bakunin. Há algumas diferenças, mais de ordem
"terminológica" do que propriamente epistemológica. Na verdade, Bakunin refere-se a
trabalho alargando o seu conceito. De todo modo, o trabalho é posto por Bakunin como uma
atividade vinculada a condição de existência, o "fundamento de qualquer vida orgânica"
(1988, p. 70). Quando escreve as Considerações filosóficas... ou Federalismo, Socialismo e
Antiteologismo considera o trabalho condição de toda a vida animal. No entanto, compreende
que a humanidade não realiza qualquer trabalho. Nela o trabalho vira um "trabalho
inteligente e livre".
Toda vida animal tem como condição primária de sua existência a luta pela vida. Essa luta
é tanto entre espécies, como contra a própria natureza. Assim, necessita-se não somente de
garantia para suprir com as necessidades básicas e fisiologicamente vitais, mas também
proteger-se da ameaça externa vinda seja de outras espécies quanto da própria natureza
exterior (chuva, frio etc.). Coloca-se em relevo outra questão: qual a relação que a
Natureza (exterior) possui com o homem e os demais animais?
Para Bakunin, o trabalho (a luta pela vida) só passa a ser uma atividade propriamente
humana a partir do momento em que este "serve à satisfação não somente das necessidades
fixas e fatalmente circunscritas da vida exclusivamente animal, mas ainda daquelas do ser
pensante, que conquista sua humanidade ao afirmar e realizar a sua liberdade no mundo"
(1988, p. 71). É quando o ser humano passa a sair de uma condição de bestialidade e entra
no "mundo propriamente humano", um mundo histórico. Sublinhamos que essa passagem é um ato
prático, uma conquista material, não é apenas uma tomada de consciência no vazio.
É necessário abordar dois elementos fundamentais, característicos do ser humano, e que nos
permitem retomar a um diálogo mais preciso com a longa passagem de Proudhon, citada na
abertura deste tópico. A vida humana aparece como a continuidade da vida animal, acrescida
das faculdades de pensar e de falar. São especialmente elas que permitem ao homem
estabelecer uma relação distinta na natureza. A partir destas faculdades é possível
construir noções entre as coisas, as quais são base para a formulação de ideias. Os
animais também expressam reações e noções, mas estas são de ordem material, não ideal.
O que acrescentamos é a constatação da existência de uma subjetividade humana. Daí
Proudhon é feliz ao assinalar a variedade de talentos, vontades e compreensões (razão)
presentes na sociedade. Esta subjetividade só ganha formas e multiplicidades na medida em
que lhe é permitido "comparar, criticar e ordenar suas próprias necessidades" (1988, p.
69) numa ação reflexiva. Atentamos para a caracterização que Bakunin dava ao pensamento e
a fala. Não se trata de pressupostos inatos ao ser humano. Afirmava estes serem "potências
em absoluto formais". O próprio fato precede a ideia. As ideias são sempre dadas pela
"experiência reflexiva das coisas reais". Por isso, esta subjetividade continua a ser
construída, especialmente, mas não unicamente, a partir das complexificações das
determinações do trabalho, das condições materiais de existência.
4. QUESTÕES SOBRE PODER E DOMÍNIO
A luta de classes que atravessa a história da humanidade, desde que se constituiu assim, é
impulsionada por polos antagônicos que, movidos por seus referenciais ideológicos,
procuram disputar a forma como a sociedade se organiza. Sabendo que não há neutralidade,
entendemos que todo posicionamento e ação dentro da estrutura social tende para manutenção
da ordem vigente (a manutenção da desigualdade social) ou tende para sua ruptura (a busca
da justiça social), direta ou indiretamente.
As relações de poder existentes entre os diversos grupos sociais estarão presentes no
âmbito da economia, da política e da cultura. Por um lado, para que os privilégios da
classe dominante sejam mantidos (baseados, fundamentalmente, na desigualdade econômica),
há a apropriação por essa mesma classe de mecanismos que possibilitam o exercício do poder
a partir dos três elementos supracitados. Por outro lado, nesse mesmo processo histórico
de construção das relações de poder, há resistência do polo oprimido que busca, por meio
de seu projeto de poder, romper com essa opressão. Não obstante, é importante considerar
que tais relações de poder, implicados nestes elementos (econômicos, políticos e
culturais) se autodeterminam e sofrem adaptações em diferentes momentos históricos, porém,
sempre mantendo as desigualdades sociais.
Diante disso, pode-se dizer que o poder se manifesta no próprio espaço relacional (entre
indivíduos, grupos, classes, etc.). Isto é, há uma disputa pelo poder entre sujeitos
historicamente determinados perpassando todas as relações sociais existentes. Essas
relações são próprias da humanidade e existirão independentemente da conformação social em
que ela se encontra, manifestando-se com as particularidades inerentes a cada momento
histórico. A defesa de uma opinião, as estratégias usadas para que ela seja aceita pelo
conjunto social e se tornar uma verdade estão no âmbito relacional, portanto na disputa de
poder. Pode-se assim conceituá-lo de diversas formas.
Conceituar o poder como capacidade implica concebê-lo como "ter poder de fazer algo" ou
"ter poder para algo"; o poder, neste sentido, define-se a partir de uma capacidade de
realização ou uma força potencial que poderia ser aplicada em uma relação social
determinada. O segundo caso, do poder como assimetria nas relações de força, implica um
conceito que, ainda que esteja ancorado na noção de capacidade explicitada na primeira
acepção, não pode resumir-se a ele. Neste caso, o cerne da definição está nas assimetrias
das diferentes forças sociais que se encontram em uma determinada relação social; quando
essas forças, com capacidades distintas de causar efeitos sobre outras, põem-se em
interação, forjam os efeitos sobre um ou mais polos da relação. Conceber o poder como
estruturas e mecanismos de regulação e controle implica conceituá-lo a partir do conjunto
de regras de uma determinada sociedade, que envolve tanto as tomadas de decisão para seu
estabelecimento e para definir seu controle, quanto a própria aplicação desse controle;
uma estruturação social que exige instâncias deliberativas e executivas (CORRÊA, 2013).
Desde que a sociedade passa a ser dividida em classes sociais, as relações de poder ganham
uma nova significação nessa forma de se organizar. As que são típicas das sociedades
dividida em classes podem ser denominadas como domínio. Na esfera relacional, isso
aconteceria quando determinado grupo utilizaria a força social do outro grupo a seu favor
e contra os interesses do polo dominado na relação de poder.
A distribuição desigual do que foi produzido marca a sociedade dividida em classes, e a
capacidade de utilizar os conhecimentos humanos e o maior ou menor poder de decisão define
a sua posição mais próxima ou mais afastada do polo dominante dessa sociedade. A categoria
de dominação englobaria o econômico, mas precisaria de outros elementos para explicar as
relações sociais (ERRANDONEA, 1989 apud CORRÊA, 2013).
Para que a relação de dominação se estabelecesse em favor de uma pequena minoria na
humanidade foi necessário que fosse legitimada perante o próprio polo dominado, e que a
maioria da população passasse a desejar esse mecanismo social ou que não concebesse outra
forma de organização da sociedade. Para isso foi necessária a estruturação de outras
relações de poder no âmbito cultural - a construção de uma cultura de submissão, o sistema
escolar tradicional, a força das religiões, entre diversas outras questões. Politicamente,
o Estado detentor do aparato coercitivo e dos aparelhos burocráticos que organiza a vida
em sociedade cumpriu o mesmo papel.
Para construir essa dominação é preciso complexos mecanismos que possam naturalizar uma
vontade de obediência por parte dos dominados, que partirá de algo legítimo consolidado
para além das normas jurídicas. Uma mescla de convencimento com coerção física. Cria-se um
consenso na humanidade que permite a minoria se perpetuar no controle e faz com que a
maioria assimile a dominação como algo normal e que faz parte da vida. A partir dessas
condições e do consenso criam-se as condições necessárias para a institucionalização da
dominação e ela se manifesta, por exemplo, não só pela exploração econômica, mas pela
própria coerção física e pelas instituições político-burocráticas (ROCHA, 2009).
A conformação do jogo de interesses dentro dessa sociedade socialmente injusta é movida
pelas relações ideológicas, que se dão no campo relacional, sendo, portanto, relações de
poder. Por conseguinte, essas relações de poder que buscam a manutenção de um sistema de
desigualdades sociais podem ser denominadas como relações de domínio. Essas ideologias são
formadas em relação com o mundo material. Só foi possível uma relação de poder se
conformar em domínio e termos toda uma ideologia trabalhando para a manutenção dessa
relação porque a evolução da humanidade permitiu que certos grupos minoritários vivessem à
custa da exploração da maioria.
A ideologia de resistência a essa relação de domínio é fruto da maneira como os dominados
foram se conformando e de tudo a que foram submetidos para que se criasse uma vontade de
superar o estado de coisas imposto. Não obstante, a ideologia anarquista é uma das
ideologias que nasceram no bojo desse desejo de mudanças, apontando para outra forma de
organização da sociedade. Por isso, as ideologias são carregadas de materialidade, tem
relação com o mundo material, com o momento histórico em que foram desenvolvidas.
De fato, não se poder compreender todas as relações de poder tomando por base somente as
classes sociais como categoria de análise, muito menos que o único elemento originário
dessas relações é o elemento econômico. As relações humanas são muito variadas e
complexas, coexistindo uma série de particularidades, as quais não é possível explica-las
puramente pela via econômica.
Voltando-nos para o campo das micro relações humanas, Focault desenvolveu teorias e
observou aspectos que fogem à tradicional explicação das correntes socialistas. Tal
conhecimento é significativo para se entender o mundo, entretanto insuficiente para se
buscar a superação do modelo de sociedade vigente, na perspectiva de uma sociedade justa,
equânime e livre. A evolução da sociedade está marcada pelo desenvolvimento de inúmeras
maneiras de como organiza-la a partir das relações econômicas. Isto nos leva à conclusão
de que, ao prendermo-nos somente no entendimento das micro relações sociais seremos
incapazes de compreender o todo. As macrorrelações não são um mero somatório de tudo o que
ocorre no espaço microrrelacional. Para aqueles que abraçam uma ideologia que pretende
emancipar a humanidade da dominação, é preciso observar os fatores centrais que marcam
essas relações de domínio. Somente a partir daí o entendimento das relações nos
microespaços ganham sentido para quem pretende construir um projeto que supere essa forma
de organizar a sociedade em que vivemos.
Os elementos econômicos, políticos e culturais coexistem e podem ser determinados
mutuamente a favor do projeto de sociedade hegemônico. Não obstante, concebemos que os
elementos econômicos são os primordiais para o entendimento de como as relações opressor/
oprimido, explorador/ explorado, dominador/ dominado configuram-se no seio dessa sociedade
- e das anteriores a esta. Apesar de não poderem explicar todos os fatos sociais ele é
central, uma vez que esses elementos podem se conformar de maneiras diferentes, de acordo
com mudanças ocorridas nos elementos culturais e políticos. Isso ganha força quando
pensamos o porquê disso tudo. Quando vemos como a sociedade de classes foi sendo
construída, observamos o peso que o econômico tem em relação aos demais. Qual a
necessidade do Estado, do poder coercitivo se não o de garantir que uma minoria fique com
a maior parte da riqueza humana? Qual a finalidade de um sistema cultural opressor se não
for manter essas relações de classe?
Não negamos que diversos outros elementos são importantes para entender o mundo e que,
realmente, o plano econômico não é suficiente para o entendimento de todas as relações de
classe. Mas qual outro elemento poderia ser usado com importância parecida ao econômico?
Qual elemento seria transversal a todas as categorias de análise da sociedade? As
elucidações perderiam seu poder de análise e não encontrariam a saída desse sistema de
dominação. Quais exemplos poderíamos dar de alguma relação macrossocial que o econômico
não seja o elemento central e basilar da explicação, uma vez que as micro relações são
insuficientes para quem pretende encarar um projeto de mudança ampla? Perder-nos-íamos num
labirinto de ideias sem nunca achar saída. E essas ideias são fundamentais, mas só ganham
potência quando se agregam numa estrutura maior de entendimento.
Acreditamos na possibilidade de uma sociedade onde as relações de poder não possam ser
definidas como uma relação de dominação e que o homem é produto do meio em que vive. É
esse meio que queremos mudar, para que seja produzido um novo homem. Mas, ao mesmo tempo,
ele só é mudado com os esforços desse mesmo homem.
Para construirmos as mudanças sociais que queremos temos que superar as relações de
domínio. A ideologia anarquista preconiza uma forma de organização social em que o
conjunto da sociedade participe do planejamento e da construção dessa sociedade e que os
esforços de ninguém sejam usados contra seus próprios interesses. Certamente, isso não
anula as disputas, nem vitórias ou derrotas de interesses, mas tudo seria mediado por uma
perspectiva individual e coletiva em constante relação, superando o individualismo
marcante do capitalismo.
O próprio sistema capitalista criou as condições para que fosse possível o desenvolvimento
da ideologia anarquista, não mecanicamente. Sua superação também não é dada. Esse objetivo
só será possível se a ideologia que aponte para essa ruptura seja propagada de maneira
ampla dentro das classes oprimidas e essas passem a desejar e trabalhar por essas
mudanças. A constatação das desigualdades econômicas e a busca por sua superação são os
fatores que mais contagiam. Para isso é preciso que durante a própria luta mudemos certos
mecanismos culturais e lutemos contra o Estado. Uma coisa não ocorre de maneira
cartesiana, uma depois da outra, mas a compreensão de como se organiza a sociedade é
fundamental no projeto de transformação da realidade.
5. CAPITALISMO: ELEMENTOS BÁSICOS E SUA LÓGICA DE DOMINAÇÃO
5.1 Os inimigos de sempre e os mecanismos de hoje
Os nossos inimigos nem sempre se apresentaram da mesma forma, nem mesmo se utilizaram dos
mesmos mecanismos, ou então, poderíamos dizer que se utilizaram de um mesmo mecanismo
primário de exploração do trabalho e de dominação sob variadas maneiras. São nossos
inimigos - e assim os identificamos ao longo dos tempos, mesmo que sob nomes e formas
diferentes - porque promoveram a exploração, a opressão e delas, tiraram proveito.
Os nossos inimigos já se chamaram de aristocratas, de nobres, de senhores, entre outros.
Seu sistema de dominação já foi denominado como feudalismo, regime escravista, entre
outras variantes exploradoras. Os inimigos de hoje atendem pelo nome de burguesia
(industrial, financeira, latifundiários, etc.) e o sistema por ela organizado: o
capitalismo. Seus mecanismos, em constante operação e cada vez mais articulados com uma
rede de meios e instrumentos de dominação, são identificados no Capital e no Estado. É a
exploração econômica e a dominação sociopolítica que se fundem e se configuram para
benefício de uma minoria.
5.2 O Estado e o Capital: o poder que vem dos ricos e para os ricos
"O que são a propriedade e o capital em sua forma contemporânea? Para o capitalista e o
proprietário, significa o poder e o direito, garantidos pelo Estado, de viver sem
trabalhar. E posto que nem a propriedade, nem o capital nada produzem sem estarem
fertilizados pelo trabalho, isto significa poder e direito para viver explorando o
trabalho de outro. Direito a explorar o trabalho de quem não tem nem propriedade nem
capital e, portanto, se encontram forçados a vender sua força produtiva aos afortunados
proprietários" (Bakunin).
O sistema capitalista é fundado sob a base de um regime de propriedade privada dos meios
de produção (terra, instrumentos de trabalho etc.). Segundo a ideologia que o sustenta, os
trabalhadores são livres. No entanto, pensamos como Bakunin, que "o direito à liberdade,
sem os meios para realizá-la, é apenas uma quimera". Os trabalhadores, roubados dos meios
concretos para que possam garantir sua sobrevivência, se veem obrigados a vender sua força
de trabalho para a classe dominante. Esta é a condição e o fermento para a manutenção de
um sistema que garante a apropriação de lucros à burguesia e que divide seus prejuízos com
os trabalhadores, que pagam ainda a conta mais alta. Para esta operação os capitalistas
sempre encontraram no Estado o apoio político-militar e também financeiro, necessário para
prosseguir com seus projetos.
As formas de acumulação de riqueza e exploração do trabalho de outrora e as do capitalismo
do século XXI, mudaram bastante, atravessando vários períodos e fases: já foi
mercantilista, colonialista, passando a monopolista e atualmente imperialista e
ultra-monopolista. Mas a sua orientação - também na gênese do capitalismo - permaneceu
sempre a mesma. A centralização econômica e política caracteriza o seu modelo e estrutura
a sociedade. No decorrer desse processo que concentra riqueza e distribui miséria, um
complexo sistema de dominação evoluiu, tanto em seus meios materiais e repressivos, quanto
científicos e ideológicos.
Ocorre que a ligação existente entre as esferas econômicas e políticas são estreitas e
difíceis de delimitar território. Por isso, quem controla os meios de produção exerce
controle também sob os indivíduos. O Estado vai atuar não somente como elemento de
contenção entre Capital e Trabalho - ou, entre a burguesia e os trabalhadores - mas também
como um agente econômico ativo importante, que organiza e administra sob o leme da classe
a qual representa: a burguesia e suas variadas frações. A centralização é a tendência
inevitável a se realizar pelo Capital e pelo Estado. É por isso, que no desenvolvimento da
dominação burguesa, a concentração de empresas ou grupos empresariais, banqueiros etc.,
vem junto com o próprio estreitamento dos mecanismos decisórios.
Na mesma medida em que nos deparamos com uma realidade mundial de concentração de riqueza
em poucos países, no Brasil também presenciamos uma exorbitante concentração desta na
região Sudeste/Sul do país, em especial São Paulo. Os recursos a serem destinados e a
organizar e financiar essas disparidades tem na centralização dos poderes a sua realização
e reprodução. Por isso, identificamos no Estado e no Capital o poder que vem dos ricos e
para os ricos.
5.3 A política e a ideologia burguesa: dominar e fragmentar
Clássicos do anarquismo, como Bakunin e Malatesta, afirmavam que a situação econômica era
a situação real. Por isso, as formalidades jurídicas viram ficção, pois o trabalhador não
está em iguais condições que o seu patrão. Isso se reflete no limitado acesso à educação,
cultura e saúde. Assim como, uma dominação ideológica, potencializada por diversos
instrumentos utilizados, desde a educação formal, a cultura propagada ou apropriada pela
elite, passando pela grande mídia. Essas leis sendo ficções, o cumprimento delas tende a
ser executado somente no benefício das elites, que as elaboram e sancionam.
As conquistas que são transcritas na forma de lei, foram resultados de mobilizações e
lutas para tal, assim, o respeito a elas não é a lei sozinha que a faz, e sim, a
permanência da luta e a construção ideológica que coíbe práticas contrárias. Um dos
mecanismos que mais põe às claras a política e a ideologia burguesa está nas eleições para
os cargos do poder executivo e legislativo do Estado. O chamado sufrágio universal (as
eleições parlamentares) ainda que seja contemporâneo à ascensão da burguesia à classe
dominante, a partir de meados do século XVI, nem sempre foi o escolhido por ela. A
presença de ditaduras e golpes sempre marcou a dominação burguesa, percorrendo desde a
França de Bonaparte às ditaduras latino-americanas por volta da década de 70 do século
passado. Daí, associar liberalismo com Estado democrático pode virar um grande engodo.
O chamado regime democrático, em tese, garante a liberdade de organização e imprensa,
possibilita uma elevação à vida pública, o que permite maior tranquilidade na organização
e mobilização dos trabalhadores. Assim, ele é certamente preferível a um regime
ditatorial. No entanto, não faz parte de nossa teoria semear enquanto política dos
trabalhadores a política que é na verdade burguesa, ancorada naquilo que os anarquistas
tradicionalmente classificaram como a "ilusão do sufrágio universal", sempre se opondo a
cair no jogo parlamentar.
Cabe o exemplo de Proudhon, que chegou a assumir cadeira legislativa na França (1848), mas
constatou que nesta condição, estava cada vez mais distante do povo e do que acontecia nas
ruas. Desde então, lutas foram travadas e como orientação ideológica determinou-se a
centralização dos esforços e energias na mobilização direta dos trabalhadores, a partir
dos seus próprios espaços (trabalho, moradia, etc.). O que está no centro da discussão é a
construção de uma política própria dos trabalhadores, que está diretamente vinculada à
percepção e confiança em sua força, na construção de sujeitos históricos ativos,
conscientes e convictos do seu papel. Confiança esta, que só pode ser ganha a partir do
momento em que estes trabalhadores não só lutam, mas também decidem, exercem protagonismo.
E o Estado só pode, e assim sempre o fez, mesmo quando dirigido por ex-trabalhadores - que
ao mudarem de posição, mudam de perspectiva - continuar a representar os interesses da
burguesia, no sentido de confundir, dispersar e fragmentar a força dos trabalhadores.
Desse modo, a política e a ideologia burguesa, seja sob qual manto busque refúgio
(ditadura ou democracia), tem como objetivo dispersar a força do povo, que a tem
justamente por ser povo, por não viver de parasitismo. A burguesia usa também da dominação
para fragmentar, seja quando é feito a base do cassetete e pau de arara, seja quando
articula sob um verniz de legalidade. E quando foi preciso, ela nunca pestanejou em romper
com esta legalidade. Portanto, não há fim da exploração econômica, sem o fim da dominação
político-ideológica.
Queremos construir outra sociedade, onde não existam mais classes sociais, pois todos
contribuiriam na construção da riqueza da sociedade e desfrutariam dela em igual medida.
Entendemos que esta mudança não é mecânica, nem poderia ser, pois se trata de pessoas que
vibram, sentem, choram, pensam e agem numa civilização construída não somente na base da
exploração, mas também produzindo uma dominação branca, machista e repressora da
orientação sexual. Ou seja, pessoas de diversos lugares, com suas singularidades e formas
de externá-las.
Portanto, entendemos que contribuir para desencadear um processo revolucionário é dar a
força do povo, ao próprio povo. Possibilitar aos trabalhadores e trabalhadoras que
eles/as, em cada canto, possam ter voz e efetivamente construam seu destino, com sotaque e
maneiras diferentes de construir seu poder: o Poder Popular, que nasce do povo e é
exercido por ele.
5.4 Centro e periferia
Uma maneira de se entender o funcionamento desse sistema seria utilizando dos conceitos de
centro e periferia trabalhados por Rudolf de Jong (2008). Existe um centro que domina e
uma periferia que é dominada. No centro encontraríamos o polo irradiador dos consensos que
mantém a perpetuação dessa dominação; e na periferia, teríamos a resistência em potencial
a essa dominação. Entender o mundo por essa lógica e assumir a postura ideológica de estar
do lado dos oprimidos é buscar conhecer a realidade em uma perspectiva emancipadora. A
divisão de centro e periferia não é apenas algo relativo à política internacional (entre
países) ou regionalmente (dentro de uma cidade e suas diferentes áreas), mas, sobretudo,
entre classes sociais, ou seja, relações de centro e periferia também ocorrem dentro de
países centrais.
Observamos que os centros tendem a ser mais uniformes e as periferias tendem a ter suas
particularidades. O projeto do centro é a dominação da periferia e fazer com que ela
funcione de acordo com as suas regras e mantenha os pilares do capitalismo que permitem
uma minoria se manter na posição privilegiada dessa sociedade. As regras criadas para
manutenção do sistema de opressão (no caso o capitalismo) precisam se reproduzidas em
todos os aspectos da vida em sociedade. Como o capitalismo é o projeto dos centros, as
periferias precisam seguir suas regras para poderem perpetuar a lógica do domínio, por
isso tendem a assumir um projeto de uniformização.
Percebemos isso desde a forma como se organiza a produção e distribuição de riqueza no
mundo, que seguem regras internacionais parecidas, até as manifestações culturais de uma
cultura pop internacional que tende a padronizar os gostos das populações. De fato, há uma
tentativa de uniformização das periferias no capitalismo. Entender suas particularidades é
fundamental para se superar o estado de coisas. Apostar num projeto federalista libertário
em escala regional, nacional e internacional, com autonomia e protagonismo das bases, é
uma saída para a superação deste modelo.
6. REFERÊNCIAS
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BAKUNIN, Mikhail. O princípio do Estado / Três conferências... Brasília: Novos Tempos, 1989.
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BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.
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http://www.anarkismo.net/article/26402 Acesso em 13 de agosto de 2014.
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PROUDHON, P-Joseph. O que é a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1997.
PROUDHON, P-Joseph. La creación del orden en la humanidad. Valencia: F Sempere y Compania,
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ROCHA, B. L. Abordando o conceito de dominação - 1. Estratégia e Análise, jun. 2009.
Disponível em:
http://estrategiaeanalise.com.br/ler02.php?idsecao=e8f5052b88f4fae04d7907bf58ac7778&&idtitulo=081870665a963fd7f2c85655fd75c472
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