(pt) Anarkismo.net: A Estratégia do Especifismo by Felipe Corrêa III. (3/4)
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Segunda-Feira, 15 de Setembro de 2014 - 15:39:22 CEST
FC - Poderíamos dizer, nesse sentido, que o chamado modelo neoliberal produziu mais e
distintos lugares, em função de seus efeitos no campo social? ---- JCM - Sim, o modelo
neoliberal realizou sua produção específica por meio dos efeitos que teve no campo das
relações sociais, muito vinculado ao mundo da pobreza, dos de baixo. Penso até que se
procurou, por meio da produção de técnicas e de mecanismos de poder, um novo
disciplinamento, que fez com que o universo sumido na pobreza adotasse comportamentos que
terminaram por resigná-lo e inseri-lo nessa miserável realidade social. ---- Em seguida,
recorrerei novamente a materiais da FAU. ---- A fragmentação e a nova pobreza ---- Este
título faz parte dos apontamentos realizados num congresso da FAU, ocorrido por volta de
1998. Em que pesem as mudanças da atual conjuntura, vários temas abordados nestas
considerações parecem ser bem interessantes. Neste documento, que reflete sobre novas
situações, há questões colocadas e a suspeita de que determinadas dinâmicas poderiam se
desenvolver mais amplamente, e que deveríamos nos esforçar para nos conscientizar disso.
A atual conjuntura mundial e todos os seus efeitos econômicos, políticos e sociais, que
hoje possuem impacto em nossa América Latina e no mundo em geral não invalidam as
considerações daquele congresso. Não sabemos exatamente quais serão os alcances da chamada
crise e tudo leva a crer que, para os pobres do mundo - incluídos agora nesse grupo um
alto percentual de trabalhadores dos países altamente industrializados -, a situação vai
piorar.
Transcreverei os referidos apontamentos, pois acredito que eles são úteis para buscarmos
compreender situações e processos que estão em curso. Não se trata de um material acabado,
mas, simplesmente, de alguns apontamentos iniciais que buscamos ordenar, visando refletir
sobre questões que têm sido debatidas há tempos.
"Esta etapa do capitalismo atingiu uma globalização sem precedentes e tem promovido as
políticas neoliberais em grande parte do planeta. Os organismos internacionais vêm atuando
com uma coerência esmagadora e conseguindo promover uma cultura ainda mais individualista
em diversas partes.
Todos estes mecanismos fundamentais, que funcionam com aceitação e coesão em benefício de
um grupo reduzido de poderosos, vêm, ao mesmo tempo, produzindo um efeito de fragmentação
popular. Fragmentam-se o mundo do trabalho, os laços solidários, a vida social, a própria
situação dos pobres.
Junto com isso, há uma exclusão de multidões, de populações que sobram, assim como a
grande e a desumana luta pela sobrevivência entre aqueles que estão em meio àquilo que se
poderia chamar de 'nova pobreza'. Essa 'nova pobreza' constitui-se de pessoas sem
esperanças, para as quais a perspectiva de trabalho sequer está no horizonte. Para elas, é
imprescindível conseguir o pão de cada dia a qualquer custo. Mesmo o tão propagandeado
consumo de objetos menos importantes é, para essas pessoas, completamente negado. Aqueles
que fazem parte desta 'nova pobreza' veem os que têm muito, alguma coisa, pouco ou muito
pouco como fontes para obter um pouco daquilo que precisam.
Esta 'nova pobreza' é, na realidade, uma 'nova miséria', pois ela é maior do que em
qualquer outro período da história. Levando em conta os desenvolvimentos ocorridos, aquilo
que falta a estas pessoas é, também, mais do que nunca. Estes 'miseráveis', como novos
personagens que saíram das páginas de Victor Hugo, são obrigados a contemplar a opulência,
a corrupção, o luxo e tudo o que a sociedade de consumo oferece, sem poder ter acesso a
nada ou quase nada. Evidencia-se, inclusive, a diferença com aqueles que possuem a
segurança de um trabalho diário, que comem todos os dias e que podem criar seus filhos com
aquilo que é imprescindível.
Não produzirá tudo isso mais ódio, mais sentimentos de injúria e de desprezo? A palavra
justiça não será considerada, nos mais distintos contextos, um grotesco engano?
Surgem em diferentes partes menções de um novo fenômeno que está formulado de maneira
bastante fragmentária e superficial. Estaríamos em um momento histórico de guerra surda no
mundo da 'nova pobreza' e da 'nova miséria' contra os ricos e poderosos e mesmo com
aqueles de baixo, que são vistos como tais?
Esta problemática indica que há setores dos de baixo que não possuem como referência a
ideologia dos trabalhadores e que estão produzindo outra. Este pode ser o caso daqueles
que estão completamente marginalizados e dos camponeses que vivem na mais completa
miséria, assim como dos indígenas camponeses, com a diferença de que estes incorporam em
sua visão de mundo elementos provenientes de culturas milenares. Quais seriam os efeitos
articuladores, neste universo, da ideologia dos trabalhadores?
A chamada "segurança cidadã" [seguridad ciudadana], que, apoiada pelos meios de
comunicação, sustenta que cada 'miserável' é um inimigo comum, não teria relação com
grande parte disso que falamos? Não se está pretendendo, e conseguindo, que seja levada a
cabo uma aliança tácita da polícia, do sistema, com aqueles que possuem algo, ainda que
este "algo" seja somente um trabalho seguro e bem remunerado? Não estaríamos fazendo,
mesmo que sutilmente, o jogo do sistema que, para sua sobrevivência e reprodução,
estabelece nesta etapa uma luta contra os 'miseráveis'? Esta nova situação gera muitas
reflexões.
O mundo está cheio de prisões e elas continuam a ser abertas em vários lugares. Haverá
mais presos e a 'nova pobreza' aumentará seu vínculo com esse mundo. Boa parte da 'nova
pobreza' estará ainda mais habilitada para esta guerra?
Nossa América Latina possui mais da metade de sua população na pobreza. Essa situação, na
estrutura vigente, não deve melhorar, mas piorar nos próximos anos. É isso que revelam os
próprios números oficiais. Além disso, em muitos lugares vem ocorrendo uma alternância
maior entre o trabalho e a fome, visando evitar que as pessoas entrem no mundo 'miserável'
e hostil.
Vêm havendo levantes de populações que expressam, algumas vezes de maneira confusa,
insatisfações e incômodos em relação à sua situação de marginalidade e miséria; eles tem
sido protagonizados por camponeses, desempregados e indígenas. Mobilizações deste tipo
podem ser vistas na Argentina, no Brasil, no Peru, no Equador, no México, na Bolívia. Na
Bolívia, justamente, um movimento foi criado em torno da questão da água, um elemento
mobilizador nada ortodoxo. E esta mobilização geral, impulsionada pelos mais pobres,
ocorreu no país mais pobre do continente. Talvez o vetor de rebeldia, que se utiliza da
violência para a mudança, esteja vindo de parte daqueles que são os maiores oprimidos.
Os 'miseráveis', sua luta e este sentimento de revalorização dos direitos humanos e de
certos valores são talvez os eixos centrais deste momento. No plano ideológico, conforme
colocamos em nossa estratégia geral, reafirmamos os valores do trabalho, a ideologia que o
mundo do trabalho produziu e produz em condições de opressão e exploração. Ela constitui
uma orientação para a tarefa militante. Isso não significa que ela já esteja presente em
amplos setores do movimento popular, nem, tampouco, que, quando alguns de seus elementos
existam, eles estejam claros.
Ao mesmo tempo, para realizar suas leituras e atuar em consequência com estes fortes
fenômenos, um movimento deve ter preparação espiritual. Ou seja, ele deve possuir uma
compreensão e algumas noções que estão para além da leitura que se realiza sobre eles;
certos níveis de experiência coletiva.
Voltando ao tema da fragmentação, deve-se agregar que ela pode ser vista, com facilidade,
nas instituições políticas e sociais. Ela também pode ser vista em campos menos
institucionais, muitas vezes vinculada à variada e 'inofensiva' oferta cultural, que é
promovida pelo próprio sistema ou que este sistema permite que se desenvolva. Parece haver
uma tendência geral, em muitos meios, de se observar ou de se interessar somente por
aspectos parciais das coisas. O corporativismo se junta a esta fragmentação perversa e
interessada. Temos a impressão que algumas práticas, para além da influência cultural do
meio, devem-se às más leituras, com distorções ideológicas que ocasionam falhas, ainda que
sejam construídas com materiais de investigação e de reflexão que muito aportam. Estas
distorções, entre outras coisas, levam a superdimensionar aquilo que é específico e dar um
caráter quase que de autossuficiência às questões parciais.
É certo que parte disso constitui uma reação legítima às totalidades e globalidades
vazias, que não se fundamentam nos elementos específicos que supostamente a compõem e que
criaram muitos dogmas e teorias 'científicas' carentes de consistência. Mas não se pode
pensar na eficácia de elementos parciais, que tanto se estabelecem, na maioria das vezes
com a melhor das vontades, altemativistas, tecnicistas e afins, quando estamos frente a um
sistema de dominação e exploração, diante de um aparelho repressivo global, diante de um
modelo neoliberal generalizado, de um aparelho ideológico de grande penetração. Essas
especificidades parciais, assim entendidas, assemelham-se à ideologia do velho Vizcaya:
'Mantenha-se no seu esconderijo'. Também, às vezes, servem para salvar a consciência do
purgatório.
Aproximando-se do que dissemos acima, parecem haver crescido traços do individualismo mais
bárbaro, com iras e conflitos que circulam mais na população e entre iguais, do que em
relação aos de cima.
Juntamente com os novos fenômenos, o aparelho ideológico do sistema, ao qual se une um
profundo liberal-reformismo de 'esquerda', sustenta um determinado 'não se pode', ou faz
alguma coisa dentro daquilo que se considera 'educado' ou 'novo', de fabricação e admissão
recentes. Tudo dentro de um perímetro que não inclui os 'miseráveis' ou os confrontadores.
Isso, em certas sensibilidades, parece gerar desalento, confusão, frustração, desespero e,
finalmente, vontade de voltar-se a si mesmo, dedicando-se às suas próprias coisas.
Obviamente, esses e outros fatores afetam os valores solidários e coletivos, as
perspectivas do amanhã, os esforços em prol de alguma coisa que não existe hoje, e
estimulam o individualismo, o corporativismo, a falta de respeito com os outros, as
posturas de curto prazo. Estariam também gerando cumplicidade com o sistema?
Há uma torrente ideológica que inunda um vasto campo, que muitas vezes nem nos deixa
pensar adequadamente. Como se dizia: deve-se 'separar o joio do trigo' e, ainda que isso
não seja uma tarefa simples, ela é imprescindível."
FC - Sei que você esteve bastante envolvido com a discussão sobre poder popular. Você
poderia me explicitar, para você, o que é poder popular e por que esta estratégia é
importante para o movimento popular? Creio que, no Uruguai, deve ocorrer como no Brasil,
em que diversos outros setores utilizam também o conceito de poder popular, cada um para
se referir a uma coisa diferente: alguns com estratégias mais parecidas com as nossas,
outras com propostas vanguardistas ou diametralmente opostas. Como fazer para defender o
poder popular e diferenciar nossa proposta das autoritárias? Você poderia explicar sua
concepção de poder popular nos marcos da estratégia e do programa?
JCM - Para responder esta pergunta, também utilizarei documentos da FAU.
Estratégia geral
Para abordar o conceito de poder popular, é necessário, antes de entrar no tema, fazer
alguns apontamentos gerais, fundamentados em materiais que foram elaborados pela
organização em 1970. Farei pequenos ajustes naquilo que for imprescindível, pois me parece
que os elementos colocados são suficientemente claros para enriquecer qualquer debate.
Vejamos.
"A atividade de uma organização política implica uma previsão do devir possível dos
acontecimentos em um espaço de tempo mais ou menos prolongado, a qual inclui a linha de
ação a ser adotada pela organização diante dos acontecimentos, de maneira a influenciá-los
no sentido mais eficaz e adequado.
Estas previsões são chamadas de linha estratégica. Normalmente, uma linha estratégica é
válida enquanto a situação geral à qual ela corresponde se mantém. Por exemplo: A
estratégia de luta prolongada, de criação das condições e do desenvolvimento de ações de
luta armada, no marco do processo de deterioração econômico-social, com sua derivação
previsível de endurecimento das lutas.
Naturalmente, se a situação geral sofrer mudanças muito relevantes, elas irão alterar as
condições dentro das quais a organização terá de operar; a organização, se quiser atuar
com eficácia, deverá revisar sua estratégia para adequá-la à nova situação.
Deve-se observar que isso não implica modificar os objetivos buscados, os fins, e nem os
princípios ideológicos. A estratégia diz respeito a um plano mais modesto, embora
decisivo, que se relaciona com a atividade operacional da organização, com sua prática
política.
Este aspecto é relevante pois, frequentemente, há aqueles que tendem a converter em
'princípios' questões que são, e que só podem ser, formulações estratégicas, válidas na
medida de sua adequação e de sua eficácia para operar numa dada situação. Estas
formulações podem se tornar perigosas, se se converterem em dogmas, com pretensão de
aplicabilidade e utilidade universais.
Por razão destas extensões arbitrárias e dogmáticas da validade de experiências
estratégicas, ocorreram intermináveis discussões em torno daquilo que poderíamos chamar de
'falsos problemas'. [...] Em alguns casos, tais posições motivaram, durante anos,
discussões em que os diversos 'argumentos' foram repetidos e esmiuçados. E, à medida que
estas discussões ocorreram, foram-se criando posições rígidas e dando a elas uma
transcendência que não mereciam. Transformou-se em questão de princípio, aquilo que era
somente questão de estratégia. Com isso, perdeu-se de vista que o único método adequado
para resolver estas questões é a realização de uma análise da situação concreta -
econômica, social, política - dentro da qual se tem que atuar. A situação, a realidade
social - que se constitui de maneira dinâmica, por meio de situações que se modificam e se
seguem umas às outras -, é o único 'juiz' idôneo para decidir essas controvérsias.
Porém, a estratégia proporciona somente as linhas gerais para um período. É a tática que
dá corpo a ela na realidade concreta, atual, e que a traduz em fatos. As opções táticas, à
medida em que dizem respeito a problemas mais precisos, concretos e imediatos, podem ser
mais variadas, mais flexíveis. Todavia, não podem estar em contradição com a estratégia.
Uma concepção estratégico-tática adequada tem de levar em conta, conforme colocado, a
situação real e o período previsto para sua realização. Mas isso não basta; os fatos, a
prática, a experiência 'pura' não bastam. E mais: a experiência 'pura' não existe. Toda
organização que atua politicamente chega a uma concepção estratégico-tática a partir de
certos pressupostos, implícitos ou explícitos, que são ideológicos, teóricos.
Não há estratégia apolítica, neutra ideologicamente. Não há como deduzi-la de uma análise
presumidamente 'objetiva', acética em termos ideológicos. Aqueles que acreditam na
possibilidade deste tipo de análise, de uma definição sem orientação ideológica, se
limitam, quase sempre, a aceitar como nível máximo de desenvolvimento 'político' aquilo
que pode derivar do desenvolvimento espontâneo. Substitui-se a ideologia por concepções
emanadas do 'senso comum', o qual sempre está inevitavelmente penetrado pelas ideias
'comuns' e pelas crenças difundidas pelos grupos sociais dominantes. A única maneira de
superar estas ideias e crenças 'comuns' é enfrentá-las com um conjunto organicamente
estruturado e o mais amplo possível de posições, com uma ideologia. A ideologia constitui
um motor essencial da ação política e um componente inevitável de toda estratégia. Toda
prática política implica motivos determinados e um sentido que só se tornam claramente
discerníveis à medida que são explicitados e organizados numa ideologia.
Devemos aqui realizar alguns apontamentos. Tem sido muito frequente o deslocamento de
esquemas de outras realidades, de maneira mais ou menos mecânica, que funcionam como uma
espécie de substituto do conjunto real, da verdadeira realidade social que temos em nossa
frente. Durante muito tempo, e há muitos que continuam com isso, foram traçadas linhas
estratégicas e táticas, não com base em uma análise cuidadosa da nossa realidade, mas com
base no que 'fulano' ou 'sicrano' disseram, muitas vezes em relação a situações levadas a
cabo em outras regiões distantes e distintas. [...]
Na América Latina, essa maneira de proceder, de acordo com 'modelos' pré-fabricados, foi
responsável por imensos estragos. Inclusive, a simples produção de informação - que
deveria ser realizada por um trabalho descritivo de rigor sobre as condições e
circunstâncias locais ou regionais - encontrou grandes obstáculos. Nesta situação, a
'cópia', o deslocamento mecânico de 'receitas' de eficácia comprovada pela experiência
[...] alheia, torna-se uma iniciativa rápida e atrativamente 'fácil'.
A reincidência persistente destas posições, especialmente por parte de certos setores da
pequena burguesia culta, gerou - por razão de uma reação que, ainda que seja explicável,
está equivocada - uma subestimação dos elementos ideológicos, considerados parte de uma
'teoria' da qual se poderia prescindir. Superar esta subestimação é tarefa atual. Devemos
partir destes aspectos e avançar nos caminhos do conhecimento e da elaboração teórica mais
eficazes como fundamento, cada vez mais firme, de uma linha estratégico-tática já definida."
O conceito de "estratégia em sentido restrito". Por quê?
Nas discussões congressuais, havíamos chegado à conclusão de que os conceitos de
estratégia geral e tática deixavam uma espécie de vazio entre eles. Havia questões que não
correspondiam à estratégia geral e nem pertenciam ao campo da tática. O conceito de
estratégia em sentido restrito surge como uma definição provisória para este conceito
"intermediário".
Situamos tal conceito entre a estratégia geral e a tática. A ele atribuímos uma função de
desenho geral, em um plano de aproximação maior da ação social-política. O conceito de
estratégia em sentido restrito compreende as linhas gerais já estabelecidas em diferentes
campos, mas funciona como uma ferramenta para uma aproximação maior da realidade social.
Isso significa que não iremos operar nesta realidade de maneira pragmática ou somente
empírica, e que também não iremos operar a partir da limitada dimensão tática.
Por outro lado, a estratégia em sentido restrito alimenta o programa de trabalho para um
período, a partir de orientações conjunturais.
Sobre o programa
Situamos o programa "específica e concretamente no campo das práticas sociais. No campo em
que se expressam as tensões e lutas sociais". O programa compila a avaliação realizada
acerca da etapa na qual se encontra um determinado sistema analisado e, a partir do espaço
de ação existente, desenvolve as possibilidades de trabalho. O programa compreende "a
orientação do conjunto de nossa ação para um período".
Trata-se de não ir fazendo o que aparece, nem estimar isoladamente cada coisa que surge,
nem desanimar porque o avanço não é imediatamente visível. Trata-se de fixar objetivos e
avançar rumo a eles. De escolher ação e estabelecer prioridades em função desses
objetivos. Isso implica, claramente, que haverá atividades que não realizaremos, eventos
dos quais não participaremos. Eles podem ser importantes e até espetaculares, mas devem
ser descartados se não se encaixarem nos propósitos para a etapa de nosso programa. Em
outros casos, estaremos em minoria absoluta ou com grandes complicações, em atividades que
condizem com nossos objetivos. Escolher o que mais gostamos ou o que nos traz menos
complicações não é uma política correta. Por exemplo, as diversas lutas, experiências,
reivindicações por melhorias ou defesa de conquistas que mobilizam a população devem
contar com nossa participação. Obviamente, priorizando aquelas mais combativas e com
sentido social mais adequado.
No entanto, somente estar presente não adianta; deve-se estar presente com uma "intenção".
Por razão das grandes mudanças que ocorrem na situação social, é conveniente estabelecer
programas de curto prazo que não contradigam o que se planejou para o médio prazo e muito
menos os objetivos centrais de longo prazo. Também é relevante estabelecer prazos, já que
não é possível avaliar a eficácia de um trabalho depois de alguns meses ou mesmo depois de
um ano de realização. Há tarefas que demoram algum tempo para dar frutos. Aquilo que se
realiza somente em uma perspectiva restrita de curto prazo, algo pontual, termina tendo
pouco ou nenhum resultado. Um acúmulo político-social é uma tarefa complexa, que depende
de vários fatores. Combinam-se no tempo acertos e erros, correções e reiterações.
Em relação a uma certa cultura que vem se difundindo, pode-se dizer que criatividade não
significa mudar toda hora de projeto, mas "inventar" e renovar dentro dos marcos de
determinados objetivos e de tarefas metódicas que possuam regularidade. Uma coisa é
criação, outra é instabilidade. Um projeto de certo tempo requer perseverança,
regularidade e estabilidade. A questão da regularidade deve ser enfatizada, pois o que
permanece é o trabalho de todos os dias; a continuidade de uma estratégia estabelecida em
que as diferentes tarefas sejam finalmente convergentes. Realizar somente atividades e
tarefas pontuais e episódicas não leva a lugar algum.
Pode-se pensar em um tempo para nosso programa neste momento?
O programa deve avaliar constantemente nossa força, levando em conta nossa capacidade
militante. A distribuição do esforço deve se dar em função desta capacidade; todos os
objetivos estabelecidos devem estar relacionados a esta capacidade. O programa não
compreende somente a articulação do trabalho externo, mas deve abarcar também o trabalho
interno. Devem-se articular os tempos e as atividades destes dois planos de maneira
sistemática. Descuidar das tarefas em qualquer um destes planos ocasiona uma hipertrofia
particularmente delicada. Deve-se cuidar para que o conjunto das atividades funcione de
maneira coerente.
O "recipiente" que abarca os frutos do trabalho militante é a organização anarquista, e
ela não pode ser relegada a um segundo plano. Ela reúne os esforços e dá continuidade e
sentido à ação. Constitui o recipiente que abarca uma finalidade de transformação,
impulsiona o crescimento de consciência combativa e transformadora na população e sofre
suas próprias mudanças ao realizar essa tarefa. Se nossa força e nossa presença externa
crescem, devemos ter, ao mesmo tempo, uma organização específica com a força
correspondente à incidência no campo das relações sociais.
As formas organizativas em condições de abarcar um processo de trabalho militante tão
variado é algo complexo e requer um balanço de nossas forças nos marcos da estratégia e do
projeto adotado; um projeto que pode ser de curto ou médio prazo.
Etapa de resistência
As condições sociais, políticas e ideológicas parecem indicar que não estamos em uma etapa
revolucionária, nem sequer de acumulação combativa. Transformações de fundo no curto e no
médio prazo não estão no horizonte. Essa afirmação é importante não para fazer uma
discussão teórica e abstrata, mas para articular nossa prática hoje. Nessa perspectiva
teórica e prática, podemos dizer que, hoje, nos encontramos em uma etapa de resistência.
Quando estabelecemos essa linha geral, não deixamos de tomar em conta a luta armada da
lendária guerrilha colombiana e nem o criativo e vigoroso movimento zapatista, que possui
claras e inovadoras proposições revolucionárias.
Um de nossos documentos dizia o seguinte: "Resistência, portanto, para esta etapa. Para
fortalecer lutas, aumentar o ânimo, retomar a confiança em nossas próprias forças, pensar
num amanhã justo, criar uma alternativa coletiva, combater o individualismo e o
derrotismo, resgatar a solidariedade, gerar novas possibilidades revolucionárias." Temos
que trabalhar para que o conjunto das práticas inscreva-se coerentemente no plano
estabelecido. Ou seja, não devem coexistir, por inércia do passado, práticas sociais e
políticas que possuem consonância com outro momento da sociedade e práticas
correspondentes a este momento histórico. Essa diferença pode gerar confusão e ter impacto
no meio social. Ainda que compartilhemos uma mesma finalidade de intenção revolucionária,
isso não significa que devamos ficar repetindo as mesmas estratégias; não podemos importar
modelos utilizados em situações anteriores que foram singulares.
Por que uma estratégia de poder popular? E qual poder?
Devo responder agora o porquê de a estratégia de poder popular ser importante para os
movimentos populares. Na realidade, esta estratégia é importante tanto para os movimentos
populares quanto para a organização política anarquista.
Nossa ideia libertária de poder possui seus fundamentos nas concepções teóricas e
políticas que, com tanta lucidez, inclusive prevendo o futuro, foram desenvolvidas por
Bakunin. Sem a destruição do Estado capitalista, sem a ação e a participação popular, ele
não vislumbrava possibilidades de ruptura e de criação de uma nova civilização, a maneira
pela qual muitos militantes daquela época chamavam o mundo novo que buscavam construir.
Bakunin dizia coisas como estas:
"A livre organização ocorrerá após a abolição do Estado
A sociedade poderá e deverá iniciar sua própria organização que, entretanto, não deve ser
realizada de cima para baixo, e nem de acordo com algum plano ideal projetado por alguns
poucos sábios ou filósofos, nem por meio de decretos promulgados por algum poder
ditatorial, ou mesmo por uma Assembleia Nacional eleita pelo sufrágio universal. Tal
sistema, como foi dito, levaria inevitavelmente à formação de uma aristocracia
governamental, ou seja, uma classe de pessoas que não têm nada em comum com as massas
populares; e esta classe voltaria com toda certeza a explorar e submeter as massas sob o
pretexto do bem-estar comum ou da salvação do Estado. [...] Na realidade, o que vemos na
história? Que o Estado sempre foi patrimônio de uma classe privilegiada."
Desde o presente, mas modificando as práticas e a lógica
É certo que a passagem para uma sociedade distinta deve começar a ser feita dentro deste
sistema. Mas a experiência nos indica que há meios, orientações, instrumentos,
instituições e formas de organização que devem ser abandonados, se queremos conformar
forças sociais capazes de produzir verdadeiras transformações nos conteúdos e nas formas
da organização social. Isso constitui uma alternativa imprescindível, se desejamos
construir uma sociedade distinta, que tenha por objetivo modificar o conjunto das relações
sociais que existem em uma sociedade determinada.
Há uma larga experiência no que diz respeito às tentativas de escolher caminhos curtos,
basicamente as de tipo estatal, por parte do socialismo e de movimentos que afirmavam
querer superar o capitalismo. Tudo isso em nome do realismo, da necessidade de ver
pragmaticamente o processo de transformação, de escolher supostos caminhos que, conforme
foi sustentado, poderiam conciliar, em nosso favor, as aspirações de transformação e os
mecanismos de reprodução sistêmicos.
Diziam-nos ser possível estar dentro destes mesmos circuitos de poder - constituídos,
historicamente, para assegurar maior eficácia à dominação - e, a partir deles, trabalhar e
produzir política no sentido de mudanças que, aos poucos, sufocassem esse próprio canal
dominante, no qual estaríamos inseridos e pelo qual seríamos diariamente influenciados. Em
termos de lógica, trata-se de algo bastante pobre.
O que a história demonstra, assim como as produções teóricas de rigor, é que estes
dispositivos de poder absorvem e tornam funcional aquilo que neles circula. Também parece
claro que, por meio da lógica do sistema, não se podem conceber questões contrárias a ele.
Todo esse conjunto institucional, todos esses mecanismos não estão vazios; mais do que
isso, estão cheios. Cheios de produções constantes em favor de manter, reproduzir e
recriar este tipo de ordem social. Não parece, de maneira alguma, ser uma boa estratégia
escolher estas vias, estes lugares e estes trajetos que têm dono e, ao mesmo tempo, o
poder de imprimir sua marca a tudo que deles fizer parte.
"A sociedade poderá e deverá começar sua própria reorganização", diz Bakunin no material
anteriormente citado. Deve-se destacar que há um conjunto de atividades que podem e devem
ser realizadas desde já, no seio das sociedades capitalistas. Atividades sociais e
políticas que permitam um exercício de participação e de resolução de problemas da
população. Estas atividades produzem noções e experiências que aumentam a consciência e a
confiança nas próprias forças.
Quanto mais a participação popular tiver se desenvolvido na etapa prévia às transformações
de fundo, maiores serão as possibilidades de formas de organização que caminhem rumo ao
autêntico socialismo.
Ainda assim, devemos ter em mente algo que parece ter fundamento: a desestruturação de um
sistema vai abrindo novas possibilidades, fazendo surgir novas combinações que não se
apresentavam anteriormente. Por isso, os limites não podem ser observados somente a partir
de uma noção de horizonte que hoje se apresenta diante de nós. Diante de algumas mudanças,
devem surgir possibilidades que antes não podiam ser sequer imaginadas. Há situações que,
produzidas por um processo de ruptura, geram descontinuidades com parte daquilo que existe
e estabelecem um novo cenário. Não são "saltos" mágicos, mas possuem relação com aquilo
que os precede. Entretanto, deve-se destacar que estas possíveis situações não podem nos
surpreender, em termos de organização política; devemos estar tecnicamente preparados para
tais eventos, caso eles venham a acontecer.
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Poder popular e ruptura
Assegurar a viabilidade de implantação do poder popular, de acordo com o que definimos e a
partir de nossa perspectiva libertária, implica, em termos estratégicos, uma definição
determinada de ruptura revolucionária. Esta definição constitui um dos núcleos
fundamentais do debate estratégico da esquerda latino-americana hoje em dia, pois há
propostas que não apontam para o empoderamento do povo, mas buscam sua adesão e canalizam
sua energia combativa e seus desejos de transformação para os clássicos caminhos, ou seja,
para a institucionalidade do sistema de dominação.
A autonomia deste processo de poder popular depende tanto do curso que pode seguir o
processo revolucionário, quanto das características concretas assumidas pelas ações de
enfrentamento do sistema. Nesse sentido, concebemos esta tarefa como um acúmulo efetivo do
povo, criando instância organizativas que lhes são próprias, novas formas, instituições
independentes, novos mecanismos que possibilitem a ruptura revolucionária de base popular.
Não há dúvidas, e a própria história vem mostrando, que as possibilidades de construção
socialista se fortalecem à medida em que há participação popular e se enfraquecem se os
eventos de rebeldia forem concebidos exclusivamente para modificar aqueles que controlam
as estruturas de dominação.
Sabemos que o que aqui foi dito tem um propósito preciso e muito geral; no entanto,
trata-se de algo necessário para tornar mais clara uma orientação de trabalho militante.
Outro tema relevante é saber como colocar, nas próprias atividades sociais e políticas,
esta questão do poder popular nas formações concretas de nossa América Latina hoje.
O protagonismo dos de baixo e seu poder
Definimos o poder como capacidade de realização e não como repressão. Neste caso concreto,
a capacidade de um povo realizar seus diversos interesses e constituir para si uma forma
de organização que esteja fundamentada em outras bases, em outros valores, diferentes dos
existentes, e que assegurem legitimamente a solidariedade, a liberdade e a justiça.
O poder, assim definido, por mais que seja concebido para o funcionamento em sociedades
complexas e de níveis tecnológicos nada simples, não equivale, em nenhum momento, ao
conceito de governo. Darei alguns exemplos para que esta ideia fique mais clara. O poder
popular concretiza-se no controle dos meios de produção de bens (fábricas, campos, minas
etc.), dos meios de comunicação de massa (jornais, rádios, canais de televisão,
informática em geral), dos serviços (transporte, energia, obras sanitárias, comunicações
etc.), dos mecanismos de decisão (pesquisas, trabalho científico) e dos meios
correspondentes no nível político, dos instrumentos "jurídicos" que forem estabelecidos
coletivamente, das estruturas ideológicas, dos planos de educação, das distintas
manifestações culturais. Este controle é do coletivo-povo, estabelecido por órgãos e
instituições que, durante o processo e no instante de assumir o poder, tenham sido
desenvolvidos. E isso dependerá de uma articulação entre o as partes de "cima" e de
"baixo", das quais fala Bakunin, sem autoritarismo ou hierarquia.
Seguramente, não se trata do fim da história e também não significa o fim da luta
ideológica e, talvez, de outras. Haverá ainda muitos fantasmas do passado, um poder
capilar, disseminado por toda a sociedade, que pode reproduzir valores e instituições do
sistema. Além disso, todos os circuitos afetados estarão desgastados nesta primeira etapa
de transformação profunda.
A natureza complexa do poder obriga a adotar linhas estratégicas igualmente complexas.
Frente a uma estratégia de poder estabelecido, destinada a perpetuá-lo, deve-se opor uma
estratégia das classes oprimidas destinada a construir um poder popular que assegure um
funcionamento melhor e justo de toda a sociedade. A concretização do poder popular requer
a preparação das organizações das classes oprimidas dedicadas a assumi-lo e a consolidação
destas organizações com seu correspondente papel. Isso é necessário, pois edificar o poder
popular não significa conquistar, pela força social e política dos oprimidos, os elementos
constitutivos do poder e que, imediatamente ao trabalho de ruptura, eles atendam o
conjunto das necessidades sociais.
Por fim, não se trata simplesmente de arrancar as classes dominantes do atual poder global
centralizado, mas de difundi-lo, descentralizá-lo nos organismos populares, de
transformá-lo em outra coisa. De fazer com que ele conforme uma nova estrutura política e
social.
O poder popular exercido pelos trabalhadores e pelo povo em organismos por eles
controlados, amplamente democráticos e participativos, assumirá este controle,
apropriando-se das funções tutelares exercidas pela esfera estatal. Por isso, uma
estratégia de poder popular deve ter como premissa essencial a construção destes
organismos, e essa é uma tarefa política fundamental, que desde já deve ser prioritária;
ela determinará se o futuro será revolucionário e socialista ou não. Por isso, a derrota
da ordem capitalista e autoritária e a construção de um poder popular legítimo estão sendo
realizadas diariamente, pela maneira que, permanentemente, se orienta e concretiza o
trabalho político e social.
Devemos, portanto, criar ou recriar, fortalecer e consolidar as organizações de
trabalhadores e populares, do conjunto de oprimidos, e defender seu protagonismo como
maneira de ir fecundando, pouco a pouco, o único socialismo possível. Um socialismo que
esteja fundado na liberdade, em que todos os avanços técnicos e científicos que hoje
conhecemos sejam colocados a serviço de um funcionamento social mais adequado, que
beneficie todos os seres humanos, o povo de maneira geral.
Os ensinamentos do capitalismo e a causa dos de baixo
O último século de capitalismo e de lutas dos povos, em especial, deixou muito material
para reflexão e estudo. Ele nos ensinou que o sistema tem uma capacidade muito grande de
se desenvolver, de driblar suas dificuldades e de digerir suas lutas intestinas. Nos
ensinou, também, que as práticas desviantes não lhe causam crises profundas e que podem,
até mesmo, constituir elementos que lhe deem vida, que assegurem seu aperfeiçoamento e as
mudanças no poder dominante, inclusive em nível imperial.
Tudo parece indicar que um sistema assim não se suicida e que não podemos esperar que seu
processo interno nos facilite a vida; este processo não cria elementos que aceleram a
chegada ao socialismo. Toda sua estratégia de existência é contrária às bases necessárias
para uma sociedade pautada em outro tipo de relações sociais e concebida em termos
socialistas. O poder popular do qual falamos, é concebido em termos de socialismo libertário.
Os dispositivos, os mecanismos, as instituições, os hábitos, os comportamentos, as ideias
que inundam a vida social, a própria forma de encarar a produção de bens e serviços, sua
relação com a natureza - tudo isso tem de ser posto de cabeça para baixo para possibilitar
outra forma de vida social. Este universo social e orgânico não produz nada de útil para
os de baixo. As velhas ideias de progresso crescente na medida do desenvolvimento
capitalista foram sepultadas pela história, junto com uma série de outros paradigmas.
Utilizamos o conceito de "os de baixo" ou de "povo" num sentido muito preciso. Ele não tem
nada a ver com o conceito de "sociedade civil", que faz tábula rasa das classes e das
frações de classe que nelas existem. "Sociedade civil" esta, que exclui as estruturas de
poder dominante que circulam por ela e que também sustentam o sistema. "Sociedade civil"
esta, que iguala distintos interesses ao mesmo tempo que sequestra e mascara uma brutal
realidade.
Nossa obrigação política desde já
De acordo com o modelo de sociedade que queremos construir, nossa ação hoje e no amanhã da
transição deve se dar em dois eixos interdependentes e indivisíveis: o poder popular e a
organização específica política.
Sobre o primeiro, como eu disse, todo ato de democracia direta, de participação, toda
instância autogestionária constitui um aporte a esta construção. Mas, simultaneamente, é
importante assumir a lição da história, de que é impossível chegar a uma sociedade de
socialismo e liberdade sem uma organização política forte e inserida na realidade de seu
tempo. A complexidade que reveste um processo de transformação exige um alto nível de
compreensão dos mecanismos sociais.
Obriga caminhar com um projeto finalista e com uma flexibilidade que permita ter condições
de operar nas diversas circunstâncias conjunturais. Colocar-se e solucionar problemas,
planejar períodos de ação, estar atento às mudanças, estimar as próprias forças, as forças
do inimigo e de aliados pontuais. Desenvolver uma capacidade de análise que permita
visualizar acontecimentos para poder operar com maior eficácia. Trabalhar por um
desenvolvimento técnico e político que permita uma incidência pertinente.
O socialismo exige outro caminho, outra produção
Entrarei brevemente em caminhos um tanto pretensiosos. Então, qual é o caminho hoje?
Pode-se fazer essa pergunta, que é uma pergunta correta.
Parece que a experiência histórica do último meio século indica um ponto de partida, que é
o de não participar do núcleo duro do sistema com vistas à transformação. Não escolher
elementos que têm força reprodutora visando criar algo totalmente distinto. Parece ser
necessário buscar estrategicamente os pontos em que o sistema se mostra mais vulnerável e
onde seu controle é relativo, possui fraquezas, como faz um "vírus", e, assim, fortalecer
as reações e resistências que a política opressora desperta em zonas sociais não
controladas totalmente pelo sistema.
Pode-se acertadamente questionar: Concretamente, o que significa isso? Uma resposta
sintética e inicial nos aproxima de um tema nevrálgico, que só abordarei brevemente.
O sistema não somente reproduz suas relações fundamentais. Ao fundamentar-se na dominação,
na exploração, na busca do maior lucro possível, na competição desumana, no individualismo
atroz, no mercado como seu grande deus, na constante repressão física ou psicológica dos
agentes oprimidos, na riqueza e no poder concentrados em uma classe dominante, numa
indústria "cultural" que transmite valores, este sistema produz, ao mesmo tempo, ainda que
involuntariamente, um outro universo, uma outra situação.
Há uma quantidade enorme de pessoas que estão excluídas do usufruto básico de bens e
serviços, e a maioria da humanidade caminha para a miséria e é progressivamente excluída.
Este universo, que inclui aqueles que estão privados de tudo (indigência), de quase tudo
(pobreza), ou que têm um acesso a muito restrito em relação ao que aspira (classe média
baixa) compõe hoje de 80% da população mundial.
Neste universo, vem havendo várias mudanças culturais. Mecanismos de sobrevivência, formas
originais de apoio mútuo, vivência com formas transitórias de trabalho. Em tais condições
de existência cotidiana surgem novas técnicas, novas formas de pensar e sentir e também
muitos comportamentos que não são desejados e que são combatidos pelo sistema. É um mundo
que não crê em certos discursos, instituições, práticas sociais e políticas, e no qual há
níveis distintos de modificações nas noções de justiça e de direitos, mudanças estas que
se distanciam das posições estabelecidas.
Com isso, vai-se produzindo um outro sujeito histórico, tanto em termos pessoais quanto
coletivos. Processo este que envolve o referido trabalho militante, ainda que haja outros
de maior intensidade e volume, que devem não somente ter nossa atenção, mas, ainda, sendo
possível, ser previstos em nossas análises.
Há momentos em que se condensam muitos problemas sociais e surgem respostas e mobilizações
sociais de forças e significados distintos. São momentos de ação direta que possibilitam o
desenvolvimento social combativo e a política afim com as nossas ideias. Dependendo de
como interviermos nestes contextos, sairemos dali mais ou menos fortalecidos. São
abundantes os exemplos de levantes populares em nossa América Latina que abrem fendas que
podem ser mantidas e aprofundadas ou, ao contrário, voltar a ser fechadas pelo sistema.
A fluidez de um caminho
O tempo dos processos não pode ser determinado somente pela nossa vontade. Por isso, temos
falado da necessidade de uma nova forma de fazer política, de construir um povo forte, de
articular estas duas instâncias em um campo coerente.
É relevante, também, da mesma maneira, que a estratégia, em seus diferentes níveis, e a
tática, tenham uma relação de influência recíproca. Pois a tática deve existir no seio da
estratégia e esta se realiza por meio daquela. Ainda que constituam campos distintos,
ambas devem estar permanentemente conectadas. A estratégia marca campos gerais, guias de
ação, coordenadas fundamentais; a tática deve ziguezaguear em função da fluidez da ação
histórica concreta. Mas esse zigue-zague deve ser feito dentro de determinados marcos e
com determinados conteúdos - do contrário, não se realiza nenhum projeto de transformação.
Estratégia e tática envolvem práticas distintas e não se pode considerá-las algo similar
ou desconhecer suas singularidades, o campo que cada uma abarca com maiores possibilidades.
Reduzir os princípios à condição de tática, sem as "mediações" correspondentes, transforma
o discurso em algo declamatório, que pode até dar a ele um agradável tom ético, mas que,
claramente, não é nosso propósito.
A construção de "um povo forte", nesse sentido, requer um determinado trabalho social
regular e uma organização política que se articule com ele, que faça disso seu "ofício".
Visto de longe, isso pode parecer uma trama muito complexa. Entretanto, não é, quando
lidamos com ela, quando a utilizamos e a combinamos diariamente com os diferentes
acontecimentos. Neste processo, geram-se os elementos adequados para o trabalho e deles
resulta um artífice idôneo para a ação de intenção revolucionária. Certamente, para tanto,
a preguiça deve ser totalmente abandonada.
Parece-me conveniente pontuar que utilizarei o conceito de "social" para descrever
atividades como a dos sindicatos, das cooperativas, o trabalho comunitário reivindicativo,
de direitos humanos, movimentos indígenas, camponeses, temas gerais e pontuais de tipo
reivindicativo ou lutas por melhorias imediatas como saúde, moradia etc.
Utilizarei o conceito de "organização política" para me referir a uma instância de
síntese, que busca assegurar a continuidade da estratégia, a elaboração teórica, o
desenvolvimento de instâncias técnicas, as orientações gerais na conjuntura, a busca de
eficácia nos confrontos, a visão geral sobre as lutas parciais, o estudo da estratégia do
inimigo em cada momento, a aprendizagem constante daquilo que envolve a luta popular, a
realização das alianças propícias ao processo. Que busca construir uma proposta de
funcionamento social para o presente, para a sociedade toda, na qual se processe uma
mudança sem interrupção.
Isso deve ser feito levando em conta, muito precisamente, o Estado, em sua forma atual,
como estrutura política do inimigo de classe, com toda sua capacidade repressiva, com
todas suas instituições de "perversa fantasia": eleições, parlamentos etc., mas tendo em
conta, ao mesmo tempo, que o poder dominante não se encontra somente no Estado, mas corre
por distintas artérias do corpo social.
Assim, o social e o político são concebidos como dois planos de ação simultânea e
devidamente articulados, mas cada um, com sua independência relativa, possui sua própria
especificidade. Somos, portanto, partidários de um trabalho simultâneo, dentro de um mesmo
projeto: da organização política libertária e do trabalho em todo o campo social. Somos
partidários da construção do poder popular, como anunciou nossa organização em materiais
produzidos a partir de 1960.
No entanto, devo dizer que os aspectos fundamentais desta concepção foram formulados no
contexto do próprio surgimento da concepção libertária de socialismo: a busca da revolução
social, a noção do Estado como expressão do inimigo de classe, a luta por uma sociedade
baseada na solidariedade, em oposição ao egoísmo cruel do capitalismo, a necessidade de
não se utilizar os mecanismos do sistema como eleições, parlamentos, as posições no
Estado, a luta contra a institucionalização dos sindicatos...
Foram estas propostas e práticas sociais e políticas que estabeleceram um rumo geral para
que fosse possível se desvencilhar do abraço mortal do sistema, de suas teias pegajosas e
enganosas que, em alguns momentos, foram tão atrativas para muitos. Dizíamos, na época:
"não entrar nos currais do inimigo".
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Orig. http://www.anarkismo.net/article/27372
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