(pt) Anarkismo.net: A Estratégia do Especifismo by Felipe Corrêa I. (1/4)
a-infos-pt ainfos.ca
a-infos-pt ainfos.ca
Domingo, 14 de Setembro de 2014 - 16:36:16 CEST
Juan Carlos Mechoso (Federação Anarquista Uruguaia) ---- Esta entrevista -- realizada por
Felipe Corrêa, com Juan Carlos Mechoso, da Federação Anarquista Uruguaia (FAU) -- aborda a
"estratégia do especifismo" da FAU. Nas perguntas são abordados temas relevantes, como:
conceito de especifismo, relação deste tipo de anarquismo com os clássicos e com
experiências similares que surgiram na história, a relação do especifismo com o contexto
da América Latina, comparações com outras ideologias que defendem a atuação em níveis
distintos (partido - movimento de massas), conceitos de ciência, ideologia e sua relação
com o socialismo, posições programáticas que os anarquistas devem defender nos movimentos
populares, conceitos e concepções de classe, neoliberalismo, modelo de desenvolvimento da
América Latina, poder popular, estratégia, luta armada, revolução social.
A ESTRATÉGIA DO ESPECIFISMO
Juan Carlos Mechoso (Federação Anarquista Uruguaia)
Entrevista a Felipe Corrêa
PREFÁCIO
Finalmente, depois de mais de cinco anos da realização desta entrevista, entrego a
tradução em português para publicação online e em livro, pela Faísca Publicações.
Trata-se, como verá o leitor, de uma longa sequência de perguntas e respostas em que Juan
Carlos Mechoso, destacado militante e fundador da Federação Anarquista Uruguaia (FAU),
fala sobre a estratégia de luta desta organização, construída desde sua fundação, em 1956.
Com respostas muito bem desenvolvidas, muitas das quais recorrem aos documentos da própria
FAU, a entrevista, que levou quatro meses para ser realizada, por email, no fim das
contas, ficou ótima e foi muito esclarecedora. Ambos, entrevistador e entrevistado,
ficamos muito empolgados e satisfeitos com o resultado final.
A partir de meados dos anos 1990, a FAU passou a ter uma influência determinante no
anarquismo brasileiro. Entre os fins de 1995 e o início de 1996 conformou-se a Construção
Anarquista Brasileira, uma iniciativa conjunta de uruguaios e brasileiros, que tinha por
objetivo a articulação anarquista no país e uma retomada de sua influência no campo
popular em geral. Desde então - e não sem erros, acertos e muito esforço e dedicação
militante -, praticamente tudo que foi desenvolvido no Brasil, em termos de anarquismo
especifista, teve influência direta da FAU.
A Organização Socialista Libertária (1997-2000), o Fórum do Anarquismo Organizado
(2002-2012) e a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB), fundada em 2012, com presença em
mais de 10 estados brasileiros, são frutos deste processo. A CAB tem investido na
construção de um anarquismo de base, classista que, por meio de sua organização específica
e política, vem buscando impulsionar e influenciar as lutas sociais e movimentos populares
de nosso país, com vistas à construção do poder popular, num processo de ruptura
revolucionária que conduza ao socialismo libertário.
Os termos "especifismo" ou "anarquismo especifista" referem-se, de algum modo, à maneira
que os uruguaios da FAU encontraram para se referir ao tipo de anarquismo que defendiam e
praticavam, o qual teve não apenas influências clássicas de anarquistas como Mikhail
Bakunin e Errico Malatesta, mas também de outras experiências locais e mesmo algumas
elaborações próprias. Assim, quando responde questões sobre "a estratégia do especifismo",
Mechoso reflete sobre o modo que a FAU encontrou, historicamente, para colocar suas ideias
em prática e quais foram as grandes linhas que nortearam sua atuação.
Conhecendo a recente produção de Mechoso sobre a história da FAU (Acción Directa
Anarquista: una história de FAU, 4 tomos, Editorial Recortes), e levando em conta esta sua
importante influência no anarquismo brasileiro, pensei, quando propus esta entrevista, em
tratar de outro tema. Não da história, já bem documentada nestes volumes, mas da
estratégia da FAU, da "estratégia do especifismo" da FAU. Nas perguntas, portanto, abordei
temas relevantes a este fim: conceito de especifismo, relação deste tipo de anarquismo com
os clássicos e com experiências similares que surgiram na história, a relação do
especifismo com o contexto da América Latina, comparações com outras ideologias que
defendem a atuação em níveis distintos (partido - movimento de massas), conceitos de
ciência, ideologia e sua relação com o socialismo, posições programáticas que os
anarquistas devem defender nos movimentos populares, conceitos e concepções de classe,
neoliberalismo, modelo de desenvolvimento da América Latina, poder popular, estratégia,
luta armada, revolução social.
Devo destacar que, a meu ver, este material possui duas virtudes. Por um lado, do ponto de
vista histórico, visto que ele discute aspectos importantes de uma organização que
protagonizou uma das maiores experiências do anarquismo no mundo depois da Revolução
Espanhola (1936-1939). A influência da FAU em setores sindicais, comunitários e
estudantis, se levada em conta o tamanho da população do país, foi notável e digna de
destaque em qualquer história global do anarquismo.
Por outro, da perspectiva atual, visto que ela contribui enormemente com o anarquismo
contemporâneo. As reflexões apresentadas por Mechoso, e mesmo suas referências à
experiência da FAU, são centrais não somente para um aprimoramento das práticas políticas
da CAB, mas, mesmo, para contribuir com o anarquismo de outras correntes e, por que não,
dos setores mais combativos e independentes dos movimentos populares em geral.
***
Minha demora com a tradução deste material relaciona-se a algumas dificuldades, que
gostaria, brevemente, de mencionar.
Ainda em 2009, quando finalizamos a entrevista, pensei que seria importante, ou mesmo
fundamental, publicá-la em português. Algum tempo depois disso, a própria FAU
disponibilizou a entrevista online e publicou-a numa brochura, pela Editorial Recortes.
Entretanto, quando pensei em operacionalizar a tradução e a publicação deste material, me
deparei com alguns problemas.
Qualquer leitor familiarizado com os textos da região do Rio da Prata em geral, e do
Uruguai em particular, sabe que sua compreensão, especialmente no Brasil, de Santa
Catarina para cima, não é simples. Ainda que escritos em espanhol, os textos uruguaios,
especialmente os da FAU, se simplesmente traduzidos ao português, respeitados seus termos
e sua estrutura fundamental de frases, parágrafos e dos próprios argumentos, permanecem
difíceis de serem entendidos pela maioria do público brasileiro. Várias traduções de
textos da FAU foram realizadas com este rigor, respeitando sua escolha de termos e
estrutura, e, por razão desta virtude, terminaram, em português, não raramente,
ocasionando dificuldades significativas em sua leitura e mesmo em sua compreensão.
Naquele momento, eu me encontrava bastante ocupado, o que indicava que o mais prudente
seria solicitar a outros companheiros que realizassem essa tradução. Notei, entretanto,
imediatamente, em função da questão acima colocada, que se isso fosse feito, a chance de
haver uma complicação seria grande. Mesmo que, do ponto de vista técnico, chagássemos a
uma boa tradução, muito provavelmente, ainda assim, haveria um risco grande para o
entendimento completo do texto por parte da maioria dos leitores brasileiros. Decidi, por
isso, realizar a tradução eu mesmo, ainda que isso fosse ocasionar uma demora significativa.
Com este assunto resolvido, tive de enfrentar uma outra questão. Eu poderia fazer o melhor
possível para manter a fidelidade ao original em espanhol, adaptando, dentro do possível,
os termos e a estrutura do texto; um procedimento que, em geral, utilizo nas traduções que
faço, ainda que, comparativamente a outros tradutores, talvez mais rigorosos, eu já seja
considerado um tradutor de "mão pesada", provavelmente pelo meu constante trabalho de
edição. Ou então, eu poderia realizar uma adaptação, de interferência muito maior no texto
original, de termos e mesmo trechos inteiros, o que, se por um lado fugiria bastante do
original em espanhol, por outro permitiria chegar a um produto final, um texto, bem mais
adaptado ao português e compreensível aos leitores brasileiros.
Cheguei à conclusão, não sem dificuldades, de que a segunda alternativa seria a mais
adequada. Utilizei as leituras que tenho do material da FAU para, em vários momentos,
realizar ajustes importantes que, creio, permitiram que o texto tenha ficado bem mais
compreensível aos brasileiros. Sugiro que, aqueles que queiram uma fidelidade completa ao
original, inclusive em relação à forma dos uruguaios - que envolve aspectos relevantes da
cultura popular do país e da própria militância da FAU -, se remetam ao próprio original,
que está disponível na internet [http://www.anarkismo.net/article/18368].
Assumo, portanto, todas as responsabilidades por quaisquer problemas que esta tradução
possa apresentar. Ainda assim, no fim das contas, acredito esta decisão foi a mais adequada.
***
Finalmente, gostaria de realizar alguns comentários sobre o entrevistado, o querido Juan
Carlos Mechoso, ou simplesmente "o velho", como alguns de nós carinhosamente o chamamos.
Quero, neste momento, prestar-lhe uma breve e devida homenagem, dedicando a ele esta
publicação. Sua modéstia certamente fará com que ele desaprove esta iniciativa, mas creio
que a homenagem deve ser feita.
Mechoso, ainda que, segundo ele mesmo, seja somente parte deste experimento coletivo dos
trabalhadores uruguaios corporificado na FAU, é um personagem de primeira ordem na
história do anarquismo.
Nascido em 1935 numa família humilde, filho de um barbeiro e operário com uma empregada
doméstica, ele teve de abandonar os estudos depois da 4a série e começar a trabalhar.
Convertido ao anarquismo muito cedo, ainda aos 14 anos, participou da fundação da FAU em 1956.
Foi militante comunitário no Ateneu do Cerro, dirigente sindical dos trabalhadores da
indústria da carne e dos gráficos. Participou ativamente da Resisténcia Obrero Estudantil
(ROE), um agrupamento de tendência que unia trabalhadores e estudantes em lutas e
mobilizações de massas, e também da Organização Popular Revolucionária 33 Orientales
(OPR-33), braço armado da FAU, que realizou ações como sequestros políticos e expropriações.
Preso por doze anos, entre 1973 e 1985, foi brutalmente torturado pelas forças da ditadura
militar e, com a abertura, foi um dos rearticuladores da FAU, ainda nos anos 1980. A
partir dos anos 1990, contribuiu diretamente para a difusão do especifismo no Brasil e em
outras localidades.
Trata-se, sem dúvidas, de um quadro multifuncional, com capacidades práticas e teóricas
muito acima da média; um "quadraço", como diriam alguns.
Hoje, próximo dos 80 anos, e com toda esta bagagem, o que impressiona em Mechoso é o amor
com que continua a defender o anarquismo, as lutas populares e, em especial, sua
humildade. Num momento em que pessoas com 5% de sua história política acreditam ser os
donos da verdade e fazem da arrogância sua marca mais característica, ele cultiva
pressupostos éticos que o afastam de qualquer soberba e que permitem que se relacione e
discuta com as gerações mais novas e que continue a conquistar as pessoas para suas propostas.
Juntamente com outros membros de sua organização, que não sobreviveram aos horrorosos
crimes das ditaduras militares latino-americanas, como no caso de seu irmão "Pocho",
Mechoso merece nossa homenagem, ainda em vida, pela obra prestada ao anarquismo.
Quero agradecer enormemente ao companheiro por ter me dado a oportunidade de conhecê-lo e
de aprender com sua extensa experiência!
Arriba l s que luchan!
Boa leitura!
Felipe Corrêa
Setembro de 2014
===============================================================================
A ESTRATÉGIA DO ESPECIFISMO
Juan Carlos Mechoso (Federação Anarquista Uruguaia)
Entrevista a Felipe Corrêa
Felipe Corrêa (FC) - Nesta entrevista, eu gostaria de tratar não somente da história da
Federação Anarquista Uruguaia (FAU) - que foi abordada detalhadamente nos quatro volumes
de Acción Directa Anarquista: una historia de FAU[1] -, mas da estratégia de transformação
social proposta pela FAU, que implica o especifismo. Levando em conta que o especifismo da
FAU tem ampla influência na América Latina, e mais ainda no Brasil - todas as organizações
especifistas do país, consolidadas ou em formação, possuem sua influência direta -, como
você o definiria? Para a FAU, que é o especifismo?
Juan Carlos Mechoso (JCM) - Entendo a prioridade temática que você menciona, ainda que me
pareça útil dizer que o especifismo da FAU também pode ser "visto" e "lido" em seu
funcionamento, em sua tomada de posição frente a alguns problemas, assim como na
estratégia que vem sendo aplicada em sua trajetória política e militante. É claro que, com
isso, não estou dizendo nada que você não saiba, mas me pareceu útil que isso fosse dito.
Ainda assim, quero colocar que tratarei de responder suas perguntas com base em posições e
documentos que a FAU elaborou em diferentes momentos históricos. Entretanto, darei
preferência àqueles que possuem mais relação com a posição teórico-política da organização
na atualidade.
Digo isso, pois meu trabalho militante sempre se deu, durante esses 54 anos, dentro de um
marco orgânico e participei dele, em distintas instâncias, na elaboração, na adequação e
na reafirmação de posições que têm sido o horizonte de nossa prática social e política
cotidiana. Minha formação se deu nesse contexto. Acredito que o que mais lhe interessará
são as posições que a FAU tem defendido nos distintos campos sociais. Certamente, em
relação a determinadas questões particulares, e talvez em relação a alguns detalhes, darei
opiniões pessoais. Também intervirei pessoalmente quando, pelas exigências técnicas de uma
entrevista, for necessário resumir os textos produzidos pela própria FAU. De qualquer
forma, tentarei fazer com que as respostas estejam alinhadas às orientações fundamentais
da organização.
Em 1956, quando a FAU foi fundada, o denominador teórico comum da militância nesta tarefa
política era o especifismo. Esta concepção do anarquismo era uma forte referência geral;
compreendia-se, com isso, a necessidade de construção de uma organização política
anarquista. O referencial teórico de maior relevância naquele momento era Errico
Malatesta. Isso não significava, e esse assunto nem sequer foi discutido, que todas as
suas ideias e propostas seriam consideradas da maneira como foram produzidas em seu
momento histórico. Contudo, muitas de suas posições teóricas, políticas e proposições para
atuar no meio social e popular foram especialmente consideradas e serviram de inspiração.
É importante dizer que, desde o início, o especifismo da FAU, mesmo tomando Malatesta como
referência, não incorporou muitas de suas concepções e proposições, incluindo suas
polêmicas com outras correntes do anarquismo. Destas polêmicas, houve uma atenção especial
à sua refutação do individualismo, amplamente compartilhada por nós naquele momento.
Mikhail Bakunin foi uma outra forte referência. Dele, foram também incorporadas algumas
noções, priorizadas naquele momento pela FAU, em função do tempo e do lugar que estávamos
vivendo.
Você poderia me perguntar: Por que a FAU incorporou algumas coisas e não outras? Isso tem
uma explicação histórica. Na construção da FAU, havia distintas gerações de militantes.
Havia companheiros que, desde as décadas de 1910, 1920 e 1930, militavam no anarquismo.
Muitos destes militantes participaram de várias polêmicas internas, anteriores e
posteriores à Revolução Russa, e também de diferentes experiências organizativas.
Companheiros que, inclusive, conheceram, conversaram e discutiram com militantes que
formaram os primeiros sindicatos no Uruguai, perto dos anos 1880.
Há casos como o de Antonio Marzovillo, que vinha militando desde 1905, e que participou
ativamente na formação de comitês de apoio a Emiliano Zapata, no momento em que ele
combatia no México. Vários militantes também haviam participado da Revolução Espanhola de
1936. Havia ainda anarcossindicalistas que militaram junto com companheiros que foram
ativos ou estiveram presentes na reorganização da Federación Obrera Regional Uruguaya
(FORU) em 1911, companheiros que defenderam, naquela ocasião, o especifismo.
No momento da formação da FAU circularam, junto com o material de Malatesta, outros textos
que tratavam do especifismo. Um deles, da própria militância uruguaia, elaborado por José
María Fosalba na década de 1930; outro, sobre anarquismo e organização, de Georges
Balkanski, que estava vinculado à Federação Búlgara (FAKB).
Além disso, havia também antecedentes especifistas concretos. Em 1919, funcionou um Comitê
de Relações Anarquistas que, além de coordenar a militância libertária no nível sindical e
popular, tinha como propósito a fundação de uma organização especifista. Em 1926, depois
de um longo processo de atividades e discussões, uma plenária do Comitê de Relações
Anarquistas deu vida à FAU, naquele momento, Federação Anarquista do Uruguai. A FAU de
hoje é, ainda que complexamente, herdeira de tudo isso.
Porém, apesar dessas variadas experiências de militância que estiveram presentes na
formação da FAU, a discussão teórica não foi tensa e nem muito longa. Havia um acordo
tácito desde a convocatória. Os "velhos" companheiros consideravam sanadas muitas daquelas
polêmicas que, em outro momento, foram encaradas com paixão.
É possível dizer, aproximando-se bastante de como se deu a questão "real", que o caráter
político da organização evidenciava-se mais na maneira de encarar a tarefa das diferentes
frentes de trabalho: sindical, estudantil, comunitária e interna. Foram realizadas
análises da situação histórica e conjuntural uruguaia relacionando-a com os âmbitos
político geral, sindical, estudantil e comunitário, e dando ênfase à América Latina.
Uma das primeiras tarefas levadas a cabo pela FAU foi a organização do Congresso
Anarquista Latino-Americano, que se realizou em 1957, e teve participação da militância de
Cuba, do Brasil, da Argentina, do Chile e do Uruguai. A preocupação central da militância
jovem, majoritária naquele momento, era que a organização política que estava sendo criada
deveria ser um instrumento de fortalecimento do anarquismo e proporcionar sua
"atualização" em relação à nossa realidade específica latino-americana e uruguaia. Parecia
fundamental não copiar e nem fazer importações automáticas de esquemas e fórmulas que
haviam tido razão de ser em outras conjunturas históricas. Dizíamos mais ou menos o
seguinte: "Sem preguiça mental, somos obrigados a pensar nossa realidade e nosso tempo e
produzir respostas consequentes".
Deve-se apontar que essa prioridade na América Latina não excluía uma forte preocupação
internacional, levando em conta os marcos internacionalistas do anarquismo uruguaio, que
existiam, praticamente, desde os anos 1860. Foi assim que a FAU adotou, desde o início,
uma posição que foi chamada por aqui de "terceirista", a qual consistia em rechaçar
completamente "os imperialismos russo e ianque".
Dessa maneira conformou-se, desde o início, o especifismo da FAU, que se traduziu em
realizações concretas: Declaração de Princípios, Carta Orgânica - que estabelecia direitos
e deveres dos militantes -, tentativas de compreender a conjuntura histórica geral,
particular e projetos de trabalho para os distintos campos, envolvendo aquilo que era
imediato e aquilo que dizia respeito ao médio e ao longo prazo.
Ao mesmo tempo, tínhamos consciência que muitas dessas posições deveriam ser aprimoradas e
aprofundadas em futuros congressos. Convém mencionar uma outra coisa, que parece ser
relevante: não consideramos os assuntos esgotados, havia modéstia e consciência sobre a
complexidade da maioria das temáticas abordadas e, por outro lado, recordávamos
frequentemente os danos causados por dogmatismos, esquemas prontos e abstrações que eram
adotados fora de contexto, com base na crença de que seriam válidos para todos os tempos e
lugares. "Hoje, mais do que nunca, o anarquismo precisa ter a cabeça aberta" disse uma vez
um "velho" militante.
Deve ser ressaltado que estas posições nunca implicaram relativismo ou pragmatismo. Sempre
houve uma estrutura conceitual que dava sustentação aos vários discursos, a qual era
concebida como algo em movimento, abarcando as possibilidades de mudança em função dos
novos aportes surgidos no campo do conhecimento. Foram discutidos os aspectos gerais
dessas questões conceituais e chegamos a algumas compreensões comuns.
Havia uma recusa do esquema arquitetônico de infra e superestrutura e uma preocupação
especial com conceitos e questões como: poder e Estado, ideologia, papel da utopia,
ciência e socialismo, compreensão do classismo para além da estrutura econômica,
reformismo e revolução, pacifismo e violência revolucionária, método e conteúdo, elementos
permanentes da estrutura capitalista, recusa ao evolucionismo e ao progressismo. Tais
foram os conceitos e questões mais relevantes naquele momento.
Devo esclarecer que o especifismo não era entendido igualmente por todos e havia nuances.
O maior ou menor grau de organicidade e o compromisso com as decisões foram temas que
geraram divergências. Nunca se discutiu e nem se concebeu algo como aquilo que ficou
conhecido como "Síntese", ou seja, todas as correntes anarquistas atuando juntas em um
mesmo organismo.[2]
No entanto, em um determinado momento, fatos como a prática de alguns grupos e sua própria
maneira de atuar foram evidenciando estratégias e prioridades muito distintas daquelas
preconizadas pelos setores sindicais, comunitários, populares, e por parte da militância
proveniente do meio estudantil. Esse fator, somado aos aspectos políticos do momento e à
concepção de ruptura que se começava a defender, teve como resultado, em 1963, a saída de
um grupo de companheiros. É claro que esses companheiros eram anarquistas, mas tinham
outra concepção sobre como operar as transformações sociais.
Digo isso para afirmar que a FAU teve distintos períodos. Depois de 1963, aprofundaram-se
muito mais os aspectos organizativos, a coerência estratégica com uma concepção de
ruptura, a posição coletiva de que era necessário maior preparação à repressão que se
manifestava. Mas esse é um tema que pode ser tratado adiante.
Foi, também, naquele momento, que começamos a tratar com maior rigor a sistematização de
temas teóricos, a organização da estrutura conceitual que sustentaria os distintos
discursos com a devida coerência. Pois, para nós, uma organização política precisava de
uma ferramenta, ou de uma caixa de ferramentas, conceitual consistente, que ajudasse a
formular e constituísse um guia para a estratégia de ruptura que desejávamos levar
adiante, que possibilitasse a realização de leituras rigorosas da realidade social e a
construção das consequentes linhas políticas para colocar este projeto em prática.
Essas questões não ficaram somente no discurso e nem no campo dos desejos. Em suma, elas
foram encaradas como atividades referentes a qualquer outra frente de trabalho, tratando
que tivessem a mesma regularidade e o mesmo planejamento.
FC - Vejo que o especifismo defendido pela FAU tem muita relação com a sua própria
história. Também é possível notar que você relaciona o especifismo como uma tendência
clássica do anarquismo, que defende a distinção entre organização política e movimentos
populares e, desta forma, creio que é inevitável concordar com ampla influência das
concepções organizativas de Malatesta e Bakunin, que tinham esta posição. Contudo, estas
não são as únicas influências, já que podemos identificar na FAU, também, traços do
anarcossindicalismo e do anarquismo expropriador da região do Rio da Prata. Você poderia
me descrever quais são as influências de cada uma destas "partes" no conceito de
especifismo defendido por vocês? A FAU hoje poderia ser considerada herdeira da concepção
de organização política revolucionária bakuninista representada pela Aliança da Democracia
Socialista e também da concepção de "partido anarquista" de Malatesta?
JCM - Sim. É possível dizer que tudo isso, em geral, está presente no seio da FAU e
veremos agora de que maneira. No Uruguai, as duas concepções ou correntes anarquistas de
maior envergadura foram o anarcossindicalismo e o especifismo. A corrente chamada
antiorganizacionista e os grupos de afinidade que defendiam a "propaganda pelo fato"
tiveram pouca força e já haviam desaparecido na década de 1940. Restavam alguns poucos
companheiros que tinham participado de expropriações ou colaborado em operações armadas e
que, no momento de fundação, juntaram-se à FAU. Só não se integrou à organização um
espanhol que esteve preso 24 anos, Boadas Ribas, um catalão próximo de Buenaventura
Durruti e que, na região do Rio da Prata, relacionou-se com Miguel Arcángel Rosigna.
Entretanto, ele permaneceu próximo da FAU e, mais de uma vez, colaborou com atividades
pontuais.
O que se chama de "individualismo" não tinha, naquela época, qualquer expressão
significativa no Uruguai, visto que os antiorganizacionistas constituíam uma outra coisa,
que mereceria uma explicação à parte.
Várias expressões do anarquismo, que se tomadas de maneira puramente abstrata são
distintas, foram se integrando em um processo rico e fluido. Mas esta integração, que
envolveu uma ampla circulação de ideias, experiências, opiniões, afinidades, não afetou o
núcleo duro organizativo da organização.
Refiro-me ao que você chama na pergunta de "partido anarquista". A organização foi
construída por sujeitos militantes que admiravam os expropriadores e os vingadores
anarquistas, a luta dos trabalhadores com fins revolucionários e classistas, os Solidários
e Durruti, o intento revolucionário na Espanha, a posição insurrecionalista, classista e
organizativa, em alguns momentos clandestina, de Bakunin.
No entanto, o processo não foi construído como uma colcha de retalhos, mas como uma trama,
tecida por meio de um método determinado. É certo que ele uniu mais uns do que outros, já
que havia uma constante implícita: a necessidade da violência revolucionária para um
processo vitorioso de ruptura com o sistema capitalista. Este sistema era avaliado pela
maioria dos militantes da mesma maneira que Malatesta, Bakunin e outros companheiros, os
quais sustentavam que a dominação tem por base a violência. Uma violência exercida em
diversos campos que visa assegurar a reprodução do sistema, mesmo com seu desdobramento
histórico. Tal configuração violenta, com enorme capacidade de reprodução, só poderia ser
descontinuada dessa maneira.
Voltemos à questão organizativa. Durante as atividades que compreenderam discussão,
elaboração e ação social, construímos, de fato, uma trama ideológico-organizativa. Nesta
trama, não se via como um problema que o trabalho público e clandestino fosse realizado ao
mesmo tempo; sustentávamos, também, que a atividade armada e sindical-popular pública
deveriam ter organicidade própria, de acordo com sua especificidade, e não ser encaradas
separadamente, mas dentro de uma mesma organização. A FAU, como organização política,
deveria compreender em seu seio toda a atividade que fosse necessária para sua estratégia
e seu projeto de ruptura.
A militância que continuou na FAU depois de 1963 identificou-se com estas noções e sentiu
que esse conjunto de atividades constituía uma unidade que, organizada em um mesmo
coletivo, teria potencial operacional, em termos sociais e políticos, podendo levar a
cabo, coerentemente, um processo de ruptura e começar a estabelecer novas relações sociais.
Se, por não entender "os princípios", não pudermos construir uma organização anarquista
que compreenda o conjunto de atividades necessárias para um processo de transformação das
estruturas sociais, estaremos dando ao anarquismo um atestado de morte.
Foi naquele momento que a FAU, como organização política, integrou tais componentes, que
terminaram se fundindo e se reconstruindo em uma unidade, dando a ela o caráter que hoje
possui. Essa construção não foi produto de uma decisão política e nem de uma elucubração
intelectual, mas se forjou na ação e decorreu de fracassos, retificações e, também, da
paixão pela construção de um anarquismo que fizesse parte da cena social-política, e não
somente de reuniões.
Ainda assim, não se trata de um processo terminado, visto que tais questões não têm fim.
As adequações, correções e integrações de novos conceitos parecem ser necessidades
permanentes.
A FAU teve, tem e pretende ter a intenção de promover um anarquismo revolucionário,
organizado e em concordância com os tempos presentes; tal foi sua intenção que, com
modéstia e consequência, ela tratou de levar adiante. É claro que isso envolveu acertos e
erros, algo que é quase inseparável do fazer e do estar presente em uma atuação social
complexa que exige respostas contínuas.
Havia uma preocupação central de não transformar o anarquismo somente em uma crítica, o
que terminaria criando um mundo de penumbras e desesperança, algo muito próximo da
resignação. Para evitar qualquer mal-entendido, posso dizer que somos partidários de um
pensamento crítico, mas acreditamos ser necessário, junto com ele, que haja propostas e
atuações consequentes.
Nossa organização coloca, em sua Declaração de Princípios, mais ou menos o seguinte: O
anarquismo constitui-se, basicamente, em torno de uma crítica das relações de dominação em
todas as esferas sociais - política, econômica, militar, jurídica, religiosa, educacional,
etc.; crítica esta que se redefine permanentemente, segundo a sociedade e o momento
histórico concretos em que ela se encontra, discriminando e hierarquizando os níveis
determinantes na estrutura social, mas expressando sempre, com todo rigor e coerência, a
necessidade de encontrar os fundamentos originais, o núcleo duro das injustiças sociais e
das crises por elas geradas.
Com esses elementos analíticos é possível empreender uma crítica completa das distintas
formações sociais e orientar a elaboração de um projeto social alternativo, que possa
suprimir as distintas formas de privilégio e habilitar a prática revolucionária que esse
projeto requer, nesse largo trajeto de diversas lutas. Uma elaboração teórica, um processo
e uma luta que têm como eixo central o trabalho político fortemente organizado.
FC - Alguns setores de nossa corrente acabaram, muitas vezes, estigmatizando Piotr
Kropotkin, principalmente por sua concepção evolucionista e em certo sentido
educacionista, muitas vezes invalidando-o ou diminuindo-o como teórico de relevância para
o "nosso" anarquismo. Não estou de acordo com isso, pois creio que Kropotkin, apesar de
ter posições diferentes das nossas, muitas por razão do contexto em que viveu, tem também
contribuições importantes que devem ser levadas em conta. Vejo que Kropotkin é citado e
utilizado com frequência pela FAU e também por você. Do seu ponto de vista, qual é a
validade do pensamento de Kropotkin para o especifismo?
JCM - Kropotkin, seu pensamento e seu comunismo anarquista tiveram muita influência no Rio
da Prata e também em outros lugares da América Latina. Foram livros e artigos como A
Conquista do Pão, "Aos Jovens" e escritos traduzidos em periódicos da época que difundiram
com força o anarquismo e, especialmente, sua concepção comunista. Tanto é assim, que, no
Uruguai, foram comunistas anarquistas os antiorganizadores, os anarcossindicalistas e os
especifistas. Quando Malatesta começou a difundir o comunismo, este já era conhecido em
certos meios. Muito deste conhecimento relaciona-se com Kropotkin e com a bagagem que a
forte imigração trouxe para estes lados: diversos militantes libertários da Espanha, da
Itália, da França que já conheciam bem estes elementos teórico-políticos.
Não há dúvidas que, independente do respeito que temos por Kropotkin, pode-se dizer que
ele tem seus prós e contras, no que diz respeito às suas propostas teóricas, políticas e
posturas em nível internacional.
Deve-se considerar que ele esteve vinculado à Primeira Internacional, em 1872, algo que
foi o resultado de sua passagem pela Suíça. Pouco depois, começou a elaborar sua concepção
de comunismo anarquista, em oposição ao coletivismo bakuninista, que era dominante até
então. Também não é correto dizer que ele foi uma pessoa que se dedicou somente ao
trabalho intelectual, de pesquisa e não ao trabalho comprometidamente militante.
Kropotkin foi preso na Rússia por volta de 1874 e assim ficou por cerca de dois anos,
fugindo posteriormente, viajando por alguns países europeus e realizando propaganda.
Naquele momento, fundou Le Revolté, um periódico anarquista que chegava ao Rio da Prata,
onde foi muito lido, especialmente por imigrantes, que logo difundiram suas ideias. Ele
esteve ainda vinculado a greves operárias, e seu vínculo com a Associação Internacional
dos Trabalhadores custou-lhe um processo e cinco anos de prisão em Lyon. Com a mobilização
pela sua liberdade, não ficou todos esses anos preso; foi libertado dois anos antes.
Por que estou dizendo isso? Ainda que eu não esteja dizendo nada original, convém sempre
tratar da estatura política e da envergadura deste militante, mesmo que tenhamos variadas
diferenças em relação às suas posições.
A produção de Kropotkin é ampla e de temática variada. Ela vai do espírito da revolta, das
prisões, até o apoio mútuo, as considerações sobre o Estado e a Revolução Francesa.
Parece-me claro que este não é o espaço para fazer comentários mais amplos sobre sua produção.
Deve ser acrescentado, para evitar uma possível confusão, que várias posições de Kropotkin
não contaram com adesão em nossa região, e menos ainda na FAU, que sequer levou algumas
delas em conta. Dentre estas posições, podem ser citadas: sua proposta organizativa geral;
seu otimismo entusiasta, de que a revolução chegaria logo, uma concepção otimista mesmo
para aquele agitado contexto social; seu fatalismo, marcado pela ênfase de que "os Estados
já caminham, como fatalidade histórica, para sua decadência"; sua concepção mecânica do
universo, que seria desaprovada por Malatesta.
Mesmo que seja possível encontrar seu entusiasmo teórico-político reproduzido nos
materiais do movimento operário no Rio da Prata, pode-se dizer que ele não teve efeitos
negativos. Deve ser considerado, ainda, que isso se deu em momentos de grande ímpeto do
movimento operário de orientação anarquista, o qual tinha muito presente um objetivo
revolucionário. No entanto, é possível dizer, também, que a maioria de seus materiais
escolhidos para difusão não tinham caráter teórico ou filosófico, mas, essencialmente, de
agitação.
Não estou sustentando nada que se assimile à defesa de um "retorno a Kropotkin". Ele não
foi um teórico de peso na formação da militância da FAU, mas também não se pode dizer que
tenha estado completamente ausente. Foram editados pela organização alguns materiais, e
digo isso com total franqueza, previamente bastante discutidos, buscando que contribuíssem
com a orientação e a estratégia levada a cabo. Muitos desses materiais vinculam-se ao meio
operário ou às temáticas como as prisões.
Pode-se dizer que, na FAU, Kropotkin conta com muito respeito e reconhecimento, por razão
de seu amplo trabalho militante e de seus escritos tão difundidos nos fins do século XIX e
no início do XX. Avaliamos que ele teve preocupações de sistematizar temáticas, procurar
ferramentas teóricas e de análise, mas que a episteme desenvolvida naquele momento, muito
característica daquela época, em muitas ocasiões o limitou, fez com que ele acreditasse
ter um saber que ainda estava distante e o colocou em becos sem saída.
Sua produção, entretanto, não pode ser desprezada, apesar das questões incompatíveis
conosco que, sem dúvidas, são muitas. Reitero, então, que há materiais de Kropotkin que
possuem um aporte histórico e que podem ser selecionados, com vistas a adaptá-los
parcialmente para uma organização anarquista que não possua sua concepção "filosófica".
FC - Vejo, pelo que você diz, que houve, e ainda há, uma preocupação da FAU de não
importar uma teoria pronta da Europa, ou mesmo dos teóricos clássicos, mas também incluir
elementos latinos e reflexões próprias no anarquismo, de maneira que ele possa ser
adaptado à nossa realidade. Parece-me, claramente, que houve uma grande preocupação em
adaptar a ideologia à conjuntura, ao momento histórico e à nossa localidade. Quais foram
estes elementos e reflexões locais incorporados no anarquismo para que ele fosse adaptado
à realidade latino-americana?
JCM - Isso é verdade. Inclusive, decidimos não fazer importações de teorias, esquemas,
métodos e propostas que tiveram seu momento histórico e que hoje não constituem uma
contribuição efetiva para nossa atuação no nível social-político.
Porém, temos de evitar confusões, pois nunca quisemos produzir nossa própria teoria, nosso
próprio corpo conceitual, latino-americano, fora daquilo que se produzia na Europa ou em
outras partes do mundo. Ou seja, nunca quisemos produzir uma ciência latino-americana ou
uma ciência de outras partes do mundo. O conhecimento científico que é produzido, desde
que seja consistente, possui valor em qualquer parte do mundo.
Fazendo uma alusão em tom de brincadeira, nunca rechaçamos a teoria da relatividade, sua
noção de tempo e espaço, pelo fato de Einstein não ser latino-americano. Algo que poderia
parecer com os absurdos da URSS de demonizar as pesquisas de Mendel ou as produções de
Jacobson, por não se ajustarem ao esquema da lógica dialética.
Nos momentos em que esta discussão foi realizada, consideramos haver novas pesquisas e
novos conhecimentos que descontinuavam noções anteriores e ofereciam novas abordagens, e
que deveriam ser necessariamente incorporadas pelo anarquismo, sob pena de ele permanecer
uma relíquia histórica.
Reivindicamos que o corpo categorial que fosse adotado, por razão de ter o adequado rigor
- mesmo com a noção de que o conhecimento é infinito e que, por isso, este corpo não pode
ser dogmático -, deveria ser complementado com elementos que cada localidade específica
pudesse oferecer. Enfatizamos, tomando em conta as realidades existentes na América
Latina, sua dependência, sua opressão imperial e toda sua história, que era fundamental
estudar cada realidade, cada formação social, para que as ferramentas teóricas e as
coordenadas políticas tivessem embasamento, constituindo propostas não em função de um
povo fabricado no pensamento, mas daquele efetivamente existente.
A história da emancipação dos povos latino-americanos da dominação colonial e as
características destes movimentos e de suas bases subsidiaram ciclos de debates que se
alternavam com a discussão de outras experiências libertárias, como o movimento
makhnovista, o México de Magón e Zapata e a Revolução Espanhola.
Sobre as realidades da América Latina, circulavam várias revistas e aportes de militantes
que percorriam diversos países e que tinham uma inserção efetiva nos meios operários e
populares de países com grande população indígena e mestiça. As ideias e as lutas federais
de José Gervasio Artigas, por exemplo, geraram bastante interesse.
Tudo isso não tinha nada a ver com o nacionalismo, como algumas vezes foi dito sobre a
FAU. Sempre houve uma clara definição internacionalista, mas sabíamos que não pairávamos
no ar, mas estávamos em um terreno concreto que contava com pessoas e história. É certo
que algumas dessas coisas estavam na contramão da "cultura" da época, muito arraigada em
parâmetros muito gerais e reducionistas. Falava-se, em alguns momentos, da América Latina
como se ela fosse algo homogêneo e pudesse ser descrita e interpretada com um conjunto
muito reduzido de conceitos.
Algumas coisas estavam sendo vendidas como ciência. Coisas que hoje são muito conhecidas,
como as afirmações de que as localidades em que primeiro surgiriam as condições para o
socialismo seriam aquelas com um importante desenvolvimento industrial e grande
concentração do proletariado. Dizia-se que o mais importante a considerar seriam elementos
desta ordem e, para além disso, havia somente remanescentes residuais, que seriam
liquidados rapidamente pelo desenvolvimento.
Em nossa região, havia "remanescentes" com muita força, como no caso dos povos originários
e oprimidos, que realizavam lutas por reivindicações importantes e, muitas vezes,
resistências bastante profundas, algumas das quais associavam-se à ideologias milenares e
por elas eram motivadas.
As concepções totalizantes, quase mecânicas, que mencionei acima, não provinham de nossos
meios. Entretanto, algumas vezes, parte delas foi absorvida, trazendo junto a ela posições
similares, que contribuíram com confusões e, muitas vezes, com o caráter bastante
contraditório de nosso desdobramento teórico-político. Por exemplo, juntamente com o
aspecto reducionista da interpretação economicista ou com o eurocentrismo vinham o
progressismo e o evolucionismo.
Havia uma posição contrária ao eurocentrismo e sua bagagem, independente dos meios
ideológicos dos quais eles viessem. Também havia precauções em relação a nosso
colonialismo cultural internalizado. Essa tendência de seguir a moda de temáticas sociais,
propostas, formas de organização, que não têm relação com nossa localidade, com aquilo que
vivemos por aqui, com aquilo que urgentemente necessitamos. Esta prática de importar
projetos e estratégias, sem levar em conta toda a análise dos aspectos fundamentais de
nossa formação social, de nosso imaginário - nosso sujeito histórico latino-americano e
cada uma das localidades envolvidas -, daquilo que nos permite estabelecer uma relação
efetiva com o povo, iniciar processos no seio do povo e com ele.
Esta relação não pode ser estabelecida unicamente por ideias súbitas e decretos de
condições e características forjadas por processos puramente intelectuais. É claro que
nossa posição contrária ao eurocentrismo não implica negar ou não incorporar os aportes
rigorosos e consistentes que vêm da Europa; isso seria uma espécie de discriminação às
avessas.
FC - Pelas suas respostas, é possível concluir que o especifismo não é algo que foi criado
por vocês na segunda metade do século XX, mas um nome dado a uma prática que vem do
anarquismo clássico. Vejo que você se refere como "especifismo" ao coletivismo bakuninista
ou, principalmente, ao anarcocomunismo que existiu na América Latina e em tantos outros
lugares do mundo, que defendia os "níveis" distintos de organização, da organização
anarquista e dos movimentos populares. Por que então a escolha do termo "especifismo" e
quando a FAU passou a utilizá-lo?
JCM - Nunca pensamos que o especifismo fosse uma criação nossa. Nunca pensamos ou dissemos
algo assim. Isso teria sido, no mínimo, uma vaidade infantil. O especifismo já tinha sua
rica história e produção ideológica. E como eu disse, no contexto de formação da FAU
víamos em Malatesta sua expressão mais clara e desenvolvida, especialmente em alguns de
seus trabalhos.
Deve-se levar em conta que Malatesta esteve um tempo na Argentina - passou, inclusive, por
Montevidéu, no Uruguai -, nos anos 1885-1889. Foi a pedido de Polinice Mattei, um
anarquista italiano que fazia parte do movimento operário, que Malatesta escreveu os
primeiros estatutos de uma sociedade de resistência, o sindicato dos padeiros. Em pouco
tempo, os sindicatos de resistência desenvolveram-se fortemente e constituíram a espinha
dorsal das grandes "centrais" operárias como a Federación Obrera Regional Argentina (FORA)
e a própria FORU, as quais compreendiam em seu seio cerca de 90% do movimento organizado
dos trabalhadores.
É claro que isso não ocorreu somente pela influência de Malatesta. Dizer isso seria
transformar nossa simpatia e respeito em religião. Nos meios operários, havia uma busca
por meios organizativos e Malatesta conseguiu dar algumas respostas, o que não foi pouca
coisa. Com sua intensa atividade, apoiada pela coletividade italiana e por muitos outros
anarquistas, ele fundou ou impulsionou fortemente grupos especifistas na Argentina. Foi
naquele momento que os coletivistas, especialmente os espanhóis, que residiam na
Argentina, aderiram ao comunismo anarquista, cujos militantes articulavam estes núcleos.
Isso repercutiu rapidamente no Uruguai, pois a relação com a militância anarquista
argentina era constante.
Para não me alongar muito neste assunto, devo dizer que na década de 1920 houve uma outra
FAU (Federação Anarquista do Uruguai), inspirada nas ideias especifistas.
Em relação à sua pergunta, posso dizer que a opção pela utilização do termo "especifismo"
era necessária para indicar em que parte do espectro ideológico anarquista nos situávamos.
Utilizamos esse termo para indicar, fundamentalmente, que éramos partidários de uma
organização política anarquista e, também, que nossas posições, nossa estratégia, nossa
orientação geral e nosso programa, diferiam de outras expressões anarquistas. Tais
expressões, em relação às quais podíamos ter coincidências pontuais, não possuíam uma
atuação regular que se correspondesse àquilo que considerávamos fundamental em termos de
trabalho cotidiano no nível social-político, o qual, pensávamos, deveria estar articulado
com uma estratégia e uma tática que acreditávamos ser coerentes e necessárias para o
processo de ruptura, nosso objetivo finalista.
Ao mesmo tempo, devo agregar, não pensávamos no especifismo como um corpo teórico-político
acabado, mas como um marco importante que deveria continuar a ser desenvolvido. Nossa
organização, assim como todas as organizações anarquistas que se identificavam com esta
orientação geral, deveria, modestamente, tentar aportar o que fosse possível, para não
ficar parada no passado.
Algo disso foi colocado pela FAU na Conferência Latino-Americana de 1957; não era
suficiente fazer balanços e enfatizar que o anarquismo estava em baixa - o que, naquele
momento, era a mais pura verdade. Nossa responsabilidade era situá-lo no tempo e
relacioná-lo aos problemas colocados.
Parecia-nos que o primeiro aspecto a ser considerado era que alguma coisa estava errada.
Era fácil buscar culpados fora do anarquismo, dizer que as mudanças haviam nos retirado do
âmbito social e tantas outras coisas que soavam mais como autojustificação e um certo
conformismo. Entretanto, isso nos impediria de enfrentar o desafio histórico que tínhamos
pela frente e não permitiria que assumíssemos nossa falta de adequação e de acompanhamento
das transformações ocorridas no capitalismo. Não queríamos ficar repetindo as mesmas
coisas, voltados a nós mesmos, sem a sensibilidade social de nos colocar completamente ao
lado de nosso povo; não queríamos nos transformar, na prática, em um tipo de elite, apta
para as críticas exageradas, mas com enormes dificuldades de aprender com tantas coisas
que os tempos novos traziam.
Nesta conferência latino-americana, esta posição não foi defendida somente pela FAU; a
delegação argentina, que em determinados momentos teve grande lucidez, realizou uma ampla
análise de nossas dificuldades naquele momento.
Sustentamos que, na maioria das vezes, colocávamos mal as perguntas e, em consequência, as
respostas não podiam ser apropriadas. Como aponta Gastón Bachelard, colocar bem as
perguntas já é um grande passo. Parecia fundamental incorporar amplamente a modéstia,
conhecer a situação em que estávamos e reconhecer que teríamos, necessariamente, muitas
dificuldades ao buscar sair deste labirinto social. Afinal, tínhamos perdido a referência
de um grande período histórico, sem termos nos perguntado o que estava acontecendo.
Devemos buscar referência naqueles antigos congressos, dos quais participavam os "velhos"
teóricos e nos quais se colocavam, com audácia e criatividade, posições filosóficas e
políticas, as quais buscavam avançar e atrair o interesse de um público amplo. Não é
relevante, para o que quero destacar, o fato de muitas daquelas posições estarem
impregnadas pela estrutura de conhecimento daquele momento histórico, podendo, hoje, à luz
de novas pesquisas e descobertas, serem consideradas pouco consistentes. Enfatizo apenas a
atitude política.
Em uma determinada época, que não foi curta, a militância anarquista analisou a
problemática que tinha em frente e formulou propostas de ação. Todos os períodos contaram
com muitas mudanças. Por isso, a falta de respostas adequadas indicava que a problemática
não vinha sendo abordada corretamente, que havia ausência de criação, de audácia política
para explorar o novo, para exercitar o pensamento crítico. Isso, os "velhos" teóricos
fizeram muito bem, dando suas vidas ao anarquismo e adquirindo continuidade em variados
movimentos posteriores.
Devo ressaltar que, em nossa apresentação "pública", nos nossos meios e para outras
organizações políticas e sociais, não nos colocamos como especifistas; nos apresentamos
como uma organização política anarquista. O termo "especifismo" tem utilidade somente
entre os anarquistas ou para responder aquela pergunta que, muitas vezes, os jornalistas
nos fazem em suas reportagens, sobre qual anarquismo defendemos. No nível popular, se
afirmássemos ser especifistas, isso implicaria que teríamos de andar com um folheto
explicativo no bolso, para entregar sempre que fizéssemos esta afirmação.
Deixamos claro, internamente à organização e aos anarquistas em geral, que somos parte da
corrente ideológica anarquista, e que sempre foi nosso desejo contribuir, mesmo que com um
pequeno grão de areia, para a continuidade de seu avanço. Este avanço também implica a
incorporação de diversos aportes, estudos e pesquisas que vão aparecendo, aqui e ali,
tanto pelos trabalhos de arqueologia histórica, como pela busca de coisas novas.
Devo agregar que, hoje em dia, muitos de nossos companheiros preferem uma definição
precisa e clara e, assim, definem a FAU tão somente como uma organização política anarquista.
FC - Desde o início da FAU vocês utilizam este conceito organizacional do especifismo?
Falo isso, pois, quando a FAU foi fundada, já havia alguns documentos que, pelo menos do
meu ponto de vista, são resultado deste mesmo "caldo" em que se forma o especifismo da FAU
e possuem certa semelhança com ele. Falo particularmente da Plataforma Organizacional dos
Comunistas Libertários[3] do Dielo Truda de 1926, a Plataforma da Federação dos
Anarcocomunistas da Bulgária[4] de 1945 e do Manifesto Comunista Libertário[5] de George
Fontenis de 1953. Vocês tomaram contato com estes documentos no momento da constituição da
FAU e da aplicação/atualização deste conceito de especifismo? Eles tiveram alguma
influência na criação do especifismo da FAU?
JCM - Creio que parte desta pergunta já foi respondida anteriormente. Mas podemos reiterar
que nenhum destes documentos circulou durante o processo de constituição da FAU, com
exceção do texto de Balkansky, que pertencia à Federação Búlgara.
Nesse processo, formou-se uma Comissão Pró-Federação Libertária Uruguaia (CPFLU), que
trabalhou durante o ano de 1955, indicada por uma plenária nacional, para fazer circularem
posições sobre vários temas. Nos trabalhos da comissão foram mencionadas experiências como
a formação da Federação Libertária, na Argentina, em 1901. No momento de elaboração da
Declaração de Princípios e da Carta Orgânica, houve aportes dos "velhos" companheiros -
que haviam participado de muitas instâncias organizativas no Rio da Prata, entre 1905 e
1950 -, e também da militância jovem - especialmente das Juventudes Libertárias (JJLL),
que tinham uma proximidade decisiva, naquele momento, com a Federação de Estudantes
Universitários, a qual funcionava com uma estrutura completamente federalista e de matriz
libertária. Outro agrupamento presente nesse processo, Cerro, contava com companheiros que
haviam participado de diversas instâncias organizativas - um deles participou da Revolução
Espanhola -, que tinham experiência e que já haviam elaborado propostas concretas em
termos organizativos, não somente de princípios ou de Carta Orgânica, mas também de
estratégia e programa.
Muitos boletins preparatórios foram publicados, contendo distintos documentos; eles
incorporavam qualquer proposta que tivesse que ser considerada na instância fundadora. Se
alguém tivesse proposto algum destes documentos que você menciona, eles teriam sido
incorporados, pois o critério dominante era esse. Devo dizer que a ênfase que se dava
naquele "aqui e a agora", como se dizia à época, não significava qualquer disposição de
nossa parte para desconsiderar experiências, documentos e lutas anteriores. Nada foi
excluído. A questão sobre os documentos que circularam no processo de fundação foi tratada
exatamente da maneira que coloquei.
O fato destes documentos que você menciona não terem aparecido no processo de fundação não
significa que os "velhos" companheiros não os conhecessem. Por exemplo, militantes
exemplares como Nestor Makhno e Piotr Arshinov eram frequentemente mencionados nas
conversas realizadas alguns anos antes da fundação da FAU, tanto no Ateneu do Cerro, como
nas JJLL; além disso, a edição da Argonauta sobre o movimento makhnovista tinha ampla
circulação.[6] Agrego, a título de curiosidade, que este livro também foi publicado em
russo e havia alguns militantes, vinculados às atividades da FAU, provenientes daquela região.
FC - Hoje, estes documentos que citei acima constituem a base da estratégia de
organizações que reivindicam a tradição plataformista e se chamam anarcocomunistas. Como o
especifismo, com este nome, é reivindicado somente aqui na América Latina, muitas dessas
organizações têm sido as nossas interlocutoras em outros países. Primeiramente, gostaria
de saber se vocês têm acesso a esses documentos e que me colocassem seus comentários sobre
eles. Depois, gostaria de saber: Para você, qual é a diferença entre especifismo e
plataformismo?
JCM - O critério para a informação e a formação militante foi muito amplo. Inclusive,
antes da FAU ser constituída havia organizações sociais como o Ateneu do Cerro e
sindicatos que possuíam grandes bibliotecas. Estes ambientes buscavam impulsionar a
leitura e criar um ambiente para a troca entre os militantes. Muitos materiais anarquistas
e outras obras afins ou de interesse geral eram lidos. Refiro-me especialmente ao meio
operário. Naquele contexto, grande parte da militância libertária ou próxima de nossas
ideias leu Luigi Fabbri, Rudolf Rocker, Fausto Falaschi, Ricardo Mella, Anselmo Lorenzo,
Piotr Arshinov, Ricardo Flores Magón, Rafael Barret, Manuel Gonzalez Prada e, obviamente,
Bakunin, Malatesta e Kropotkin. Estes autores foram lidos e discutidos, formal e
informalmente. Junto a eles, também foram lidos folhetos e artigos com novas abordagens,
como, por exemplo, os textos de Gastón Leval e outros.
O mais provável é que o plataformismo não fosse conhecido por muitos militantes. Não sei
se seus textos fundamentais circularam nestes espaços, tanto entre a militância da FAU,
quanto entre aqueles que compuseram o Congresso Latino-Americano. Eles nunca foram
mencionados nas instâncias libertárias que se articularam nas décadas de 1950 e 1960. Os
anarcocomunistas partidários da organização, na Argentina e no Chile, naquela época,
possuíam acordo com as posições de Malatesta.
Entretanto, as regulares menções àqueles que foram os redatores da "Plataforma",
considerando-os militantes exemplares, foram sempre muito comuns; sempre se falou deles
com grande simpatia e respeito, mas somente isso.
Pessoalmente, para mim, ficou a impressão, anos depois, que aquilo que defendiam os
plataformistas era muito próximo do especifismo, particularmente do especifismo que era
praticado pela FAU. Uma análise sobre as diferenças e similaridades entre essas duas
propostas - que considere os aspectos que ainda são atuais e aqueles que se vinculam
estritamente a uma determinada conjuntura histórica - requer um trabalho específico, que,
inclusive, poderia ser muito interessante. Mas se trata de algo que exige tempo, dedicação
e a consulta de muita documentação; uma tarefa delicada e um tema sobre o qual não se pode
improvisar. Neste momento, trata-se de uma tarefa que não me entusiasma. Não penso sequer
na possibilidade de fazer uma análise esquemática e básica, sem muitas pretensões. Pois,
como eu disse anteriormente, hoje estou focado em terminar uma obra histórica sobre nossa
organização e não tenho muito tempo disponível.
Portanto, esta resposta será dada apenas neste plano das "impressões". Como contribuição,
eu poderia agregar que se perguntássemos aos companheiros da FAU das gerações anteriores
sobre o que é o plataformismo, suponho, com base na maneira como as coisas aconteceram por
aqui, que responderiam algo do tipo: trata-se de um grupo especifista como o nosso, que se
nutriu de outra história e de outra experiência.
Como você vê, faço várias menções a problemas que temos que superar, a desafios que estão
em nossa frente, à necessidade de começar a pisar firme para recuperar tanto terreno
perdido. Digo tudo isso partindo da perspectiva que o anarquismo teve uma vasta
experiência passada e que hoje tem ainda muito a dizer e a realizar. É óbvio que a
história libertária não está começando agora; somos herdeiros de um passado cheio de
combates, de militantes exemplares, de verdadeiros heróis do povo.
O anarquismo escreveu grandes páginas na história. O mundo dos trabalhadores conhece a
abnegação e a integridade que o caracterizaram, juntamente com um passado que até nos
assusta. O anarquismo deu respostas plenas à necessidade de transformar as estruturas do
sistema capitalista e estabeleceu com precisão as linhas gerais de reconstrução social que
têm, em seus aspectos fundamentais, uma vigência inquestionável; enfatizou a participação
popular, a ação direta o imperativo de não participar das instâncias burguesas. Diante do
fracasso das outras concepções de socialismo, o anarquismo pode, hoje, diante da história,
reivindicar seu direito de desenvolver seu modelo na sociedade. É claro que isso só pode
ser feito dentro da história, mas não do poder vigente, que deve ser derrotado, já que ele
não cairá por conta própria. Em nossa concepção, esse poder deve ser combatido a sangue e
fogo.
/2
Orig. http://www.anarkismo.net/article/27372
More information about the A-infos-pt
mailing list