(pt) Terrae Liberdade O Estado brasileiro sobrevive da tortura (Relato de um dxs 23 perseguidxs, militante da OATL, sobre o dia 12) (en)
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Quarta-Feira, 3 de Setembro de 2014 - 12:37:19 CEST
Uma vez, minha avó me contou que a polícia, após o golpe militar, entrou na sua casa
procurando materiais comunistas. ---- A suspeita era de que ela e meu avô, que se
conheceram na famosa Fábrica de Tecidos, onde trabalhavam desde os 13 anos, eram operários
subversivos. ---- Em 2014 lembramos os 50 anos do Golpe Militar. ---- E tudo tão estranho
e comum, hoje. ---- Em 2007 eu fui buscar uma pessoa na rodoviária de Macaé. Chegando na
casa onde morava, na comunidade "Nova Brasília", dezenas de pessoas faziam uma roda em
frente ao meu portão. ---- Um menino estava caído no chão de terra, cobrindo o seu próprio
sangue derrubado pelo Estado. ---- No ano seguinte, o Grupo de Educação Popular (GEP)
tentou organizar um festival de hip hop com debate sobre racismo no Morro da Providência,
onde até hoje organiza um Pré-Vestibular Comunitário e Alfabetização de Jovens e Adultos,
construído por alguns dos atuais "criminosos" e membros, segundo o Estado, desta
fantasiosa "quadrilha armada" perseguida no dia 12 de Julho. Algumas horas antes de
começar a atividade, a Praça Américo Brum já estava sitiada pelo 5 Batalhão da PM, mesmo
estando na época "ocupada" pelo GEPAE (Grupo Especial de Operações Especiais), da própria
polícia.
Foi apenas ligar os refletores, que iluminariam a quadra, que o tiroteio começou. Todos
nós deitamos no chão e uma moradora que estava sentada num bar da praça foi atingida por
uma bala "achada" atirada pela polícia.
Ela foi levada para o Souza Aguiar e sobreviveu.
No ano anterior, lembro do dia em que dois policiais invadiram a Ocupação sem-teto Zumbi
dos Palmares (despejada em 2011) e levaram um morador pra "prestar esclarecimentos" na
delegacia. Motivo? Esta ocupação estava ajudando a organizar outra ocupação, a Ocupação
Quilombo das Guerreiras (despejada em 2014), e os moradores deveriam saber "o que
aconteceria com eles se isso continuasse".
A democracia no Brasil... algumas histórias bem pequenas perto do dia-a-dia de
perseguições, torturas e mortes que atravessam a vida de escravos, descendentes de
escravos ou "subversivos" no Brasil.
Amarildo e Claúdia se tornaram cantos pois suas vidas matadas estranharam o cotidiano e
escancaram o óbvio: a tortura funda e sustenta o Estado brasileiro.
O golpe de 64 apenas extendeu as técnicas de tortura, existentes e sofisticadas desde a
colônia, para algumas organizações políticas e pensamentos.
O que encaramos hoje, com a prisão ilegal e o enquadramento em leis criminosas de 23
manifestantes, é a retomada desta extensão, tão visível desde Junho de 2013.
Àquela ou àquele que não aceita ou que se defende, prende-se e tortura-se.
Foi em 2003, pela primeira vez, que eu percebi que esta história de democracia para
movimentos sociais urbanos era bem estranha. Soube na época que um militante anarquista
havia sido levado para uma área distante e torturado pela polícia. Os policiais o vendaram
e atiravam para o alto dizendo que iriam matá-lo e aos seus outros companheiros. Hoje este
militante é professor e milita comigo, mas carrega os traumas deste dia.
No despejo da Ocupação sem-teto Guerreiros do 234, em 2009, 2 manifestantes foram presos e
sufocados com cacetetes da PM apenas por questionarem a brutalidade do despejo.
Em frente ao mesmo prédio, e após mais um despejo de uma ocupação sem-teto, eu e mais 6
manifestantes fomos presos sem termos feito nada. As imagens mostram o momento das
prisões, como mostram também policiais colocando 7 pessoas dentro do camburão de uma mesma
viatura e proibindo a distribuição de água. Depois, todos fomos levados para a Polícia
Federal e encarcerados. Eu e outro companheiro, que também está passando pela mesma
situação hoje, tivemos que ficar pelados dentro da cela e nos abaixar de costas para o
policial. Motivo? Hábito, hábito de torturar. Ficamos ainda por horas em celas sem
banheiro e sem poder ter acesso a eles. Apenas com a pressão de manifestantes, em frente a
delegacia, e dos advogados, que tivemos acesso aos direitos básicos.
Isso, anos atrás, parecia escandaloso para nós. Uma das coisas que 2013 mostrou, em termos
de repressão, é que isso era uma pequena experiência capaz de ser ativada de forma muito
mais cruel, e é isso que observamos hoje.
Tornou-se cotidiana a imagem de manifestantes feridos brutalmente pela polícia ou a
notícia de presos e detidos. Como não lembrar das 200 prisões totalmente arbitrárias
efetuadas no dia 15 de Outubro? Os relatos de tortura são terríveis e não podem ser
esquecidos.
Antes desse dia, dezenas de jovens já haviam sido seguidos na rua, em ônibus, ameaçados
por policiais e milicianos. Muitos se afastaram das ruas por isso, por medo da morte e da
tortura. Muitos começaram também a se defender, a reagir, e a ser condenados também por
responderem e não aceitarem.
Eram 6h30 do dia 12/07, quando recebi o telefonema de uma companheira da OATL dizendo que
a polícia tinha ido na casa dos seus pais, no subúrbio do Rio, com o mandado de prisão
provisório para ela. O telefone desligou e outro companheiro me deu o mesmo informe. Em
menos de 5 minutos eu estava na rua, fugindo da violência que atingiu tantas e tantos
companheiros neste dia, arrancados de casa para serem jogados atrás das grades. Começava
aí um filme, com enredo antigo: perseguições, buscas, grampos, fotos, revistas, carros,
interrogatórios.
Logo após estes dois telefonemas eu descobria que a polícia também estava me buscando na
casa onde morava, no Morro da Providência. Foram em 3 casas onde morei no morro. Pegaram
essas informações na rua. Humilharam moradores. Só soube disso quando voltei. Enquanto
isto ocorria, estava buscando minha liberdade e presenciando uma cena que para mim
expressou bem esta "ficção" e lembrança de 68.
No carro de uma pessoa, que me tirou de casa, fui encontrar com esta companheira que me
ligou antes. Marcamos num ponto próximo a uma estação de metrô. Sabíamos que as buscas de
prisão aconteciam, que outrxs compas estavam presxs, mas não imaginávamos ainda o nível da
operação e só me dei conta de tudo que se passava quando isto aconteceu. Segundos antes de
chegar ao local marcado, percebemos que estávamos sendo seguidos e monitorados por
policiais através dos celulares. Ao dobrar numa rua, próximo ao ponto, vimos um carro da
polícia civil que nos "aguardava". Um policial apareceu atrás desse carro, olhou para nós
fixamente e colocou a mão no bolso. Não tivemos dúvidas: estávamos numa emboscada.
Aguardavam a gente parar o carro e buscar a companheira para prender todos juntos. Tivemos
a sorte de perceber essa tática (comprovada pelas escutas, falas de policiais e
comentários presentes no inquérito), acelerar o carro e fugir. Tentamos ainda avisar a
companheira, mas os policiais já haviam cercado ela e só esparavam a gente parar o carro
para prendê-la conosco. Como seguimos, eles a prenderam nas escadas do metrô gritando seu
nome como se fosse uma criminosa. Segurando seus braços, perguntavam: "Cadê o carro, cadê
o carro?". Mas ela não sabia de nada. Já estávamos longe, incomunicáveis, clandestinos.
Nos 12 dias em que fui considerado "foragido", muitas coisas aconteceram. Me buscavam.
Foram na casa da minha mãe e a seguiram duas vezes pela rua e nos ônibus. Foram duas vezes
na casa de um colega professor com uma foto minha e fuzis nas mãos. Voltaram no morro.
Foram na rua onde morava e, não me encontrando, levaram um rapaz que estava no bar se
divertindo. Colocaram ele no carro e o soltaram em frente a Maré, na Avenida Brasil. Foram
na casa de uma companheira e tiveram a crueldade de interrogar a sua filha e a amiga,
ambas crianças, com a mesma foto minha e as mesmas perguntas. Criaram um clima de terror,
como se fôssemos realmente bandidos. O interessante é que no mesmo Morro da Providência,
onde começaram as buscas pelo "bandido", policias da UPP e traficantes vendiam drogas ao
ar livre na tal "área pacificada". Hoje o tiroteio voltou e poucos dias atrás um policial
desceu todas as escadas da favela carregando um jovem assassinado. UPP. Rio. Genocídio.
Importante dizer que as perseguições não acabaram com o habeas corpus concedido pelo juiz
Siro Darlan. Todos nós estamos proibidos de frenquentar reuniões públicas e manifestações.
Quando nos encontramos nas ruas, ainda somos seguidos por policiais que tiram fotos de nós
sem qualquer constrangimento. Importante dizer, também, que o único preso das
manifestações de Junho é Rafael Braga, sem-teto e negro, condenado pela justiça racista.
Que Fábio e Caio continuam presos e torturados em bangu, que mais de 200 mil pessoas estão
presas sem julgamento. Que o acontecido conosco tem seu lugar histórico, pelo que busca
expressar, mas que em termos de violência e violação de direitos não é dada perto do que o
povo sofre todos os dias. Me lembro como era "normal", voltando para casa, deitar no chão
da rua enquanto o caveirão subia. Como era "normal" ter a sua casa arrombada, ter medo,
assistir e ouvir espancamentos, gritos e não falar ou poder falar nada. Grande parte da
população vive numa cela aberta, sob tortura diária - em casa, no trabalho, na rua.
Enquanto houver Estado, haverá isso. E as principais vítimas permanecerão as mesmas:
descendentes da diáspora e da escravidão.
Pedro Guilherme - Professor da rede estadual, militante da OATL e do GEP.
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A Educação por de trás das grades, o preconceito e a perseguição.
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