(pt) Anarkismo.net: O front de Rojava e o complexo teatro de operações da revolução social curda by BrunoL
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Sexta-Feira, 12 de Dezembro de 2014 - 20:10:13 CET
A análise é relativamente complexa e a resultante aparenta ser simples. As forças sociais
de Rojava se encontram cercadas na retaguarda pelo fechamento da fronteira com a Turquia.
Antes da libertação da parcela síria do Curdistão, as linhas de traficantes de armas e
abastecimento logístico dos jihadistas era alimentada (tolerada) pelo Estado Turco. Após
julho de 2012, o YPG, milícia de autodefesa organicamente vinculada ao TEV-Dem (composição
de forças sociais hegemonizadas pelo PYD (Partido da União Democrática) e que organiza a
sociedade local) começou a fechar a fronteira na busca de uma autonomia regional. ----
Kobanê se encontra cercada pelo ISIS e, na retaguarda, o poderoso Exército Turco corta as
linhas de suprimento para a cidade regida pela Autonomia Democrática de maioria curda.
A resposta do governo Bashir Al-Assad primeiro foi deixar o caminho entre Aleppo e Kobanê
aberto, de modo que após os bombardeios intensos sobre Aleppo (quando a aviação do Baath
bombardeou de forma indiscriminada), Kobanê ficasse superpovoada com um mosaico de etnias.
Na sequência, o governo alauíta deixou de atacar na região, abrindo o espaço e campo de
manobras para a disputa concorrencial entre o ISIS e a Frente Al-Nusra (criatura e
criador, respectivamente, pelos vínculos com a Al-Qaeda). Houve também um conflito pelo
controle territorial dentro da oposição não jihadista. Os combates entre YPG e Exército
Livre da Síria (FSA), se deram por quase um trimestre, levando a trégua no final de 2013.
Com este armistício, YPG e FSA passaram a operar em conjunto, mas ficando Rojava como um
solo libertado e com a Autonomia Democrática (nível local do Confederalismo Democrático)
como base de funcionamento.
Neste mesmo período, recrudesceu o avanço jihadista na região, com o beneplácito da
Turquia, dos países do Golfo (Arábia Saudita e Qatar em especial) e também com a ausência
de ataques vindas de Damasco. Resultado: o poder popular no Curdistão sírio se tornou a
única fonte de confronto direto contra a demência de ISIS e grupos rivais.
Operam neste cenário, em aliança estratégica, YPG e FSA. Reforçam a posição curda um
destacamento de peshmergas vindos do Governo Regional do Curdistão (KRG), no Curdistão
Iraquiano e controlado - pela via eleitoral - por três partidos da direita curda. O
governo de Irbil (capital do Curdistão iraquiano) negociou com o gabinete de Erdogan
(premiê turco) por meses para conseguir o salvo conduto em seu território soberano (o
Curdistão turco) de modo a chegar ao front em Rojava. O KRG é o mais próximo de um governo
pró-ocidental na região, sendo que suas forças já confrontaram o PKK no início dos anos 90.
Em contrapartida, uma trégua de unidade entre os curdos, permitiu que um contingente do
PKK-HPG (as forças de autodefesa da esquerda curda na Turquia, uma guerrilha móvel com
grande experiência) pudesse se deslocar ao teatro de operações em Kirkuk (Iraque) e junto
aos peshmergas combatessem o avanço do ISIS de modo a protegerem os yázidis, assírios,
caldeus e outras minorias. Deste modo, a aliança curda pode ampliar o território de
soberania do KRG. Isso valeu uma representação consultiva do PYD (partido co-irmão do PKK
em território sírio) e o aumento da popularidade da esquerda curda em área do KRG
(ressalte-se que o governo de Irbil é aliado das transnacionais do petróleo e tem
excelentes relações com Israel; ao contrário do PKK-PYD). Os ataques aéreos coordenados
pelos EUA mudam a dinâmica da guerra entre o ISIS X o YPG e aliados mas não impedem suas
manobras e avanços.
O maior problema para a vitória do YPG é a fronteira com a Turquia, severamente patrulhada
e comprovadamente sendo favorável ao ISIS. Por estes caminhos entram voluntários jihadista
europeus, armas e suprimentos, além de uma ação de controle policial por parte das tropas
turcas, impedindo as linhas de abastecimento para o front em Kobanê. Assim, combatem neste
front: YPG/FSA/Peshmergas X ISIS e, ausente do conflito está o que restara do governo
Assad (recuado ao sul da Turquia e na região em torno de Damasco). O Exército Turco assim
como as monarquias do Golfo acabam por auxiliar o ISIS e a Al-Nusra e o Irã, ao não
combater os jihadistas sunitas na região, também isola o combate entre a esquerda curda e
os seguidores de Al-Baghdadi.
A história se repete, desta vez Beirute Ocidental é Kobanê
Durante o fatídico ano de 1982, na segunda invasão das Forças de “Defesa” de Israel ao
Líbano (cinicamente chamada de Paz para a Galileia), foi cunhado um lema que marcou a
revolução palestina e o pan-arabismo. Na Beirute Ocidental sitiada por forças israelenses
aliadas das falanges cristãs (Kataeb e Tigres de Gemayel), na zona controlada pela Frente
Palestino-Muçulmana-Progressista as paredes diziam: “Beirute é a Stalingrado dos árabes”.
Em 2014, a cidade de Kobanê, sitiada no território sírio pelas bem equipadas forças do
Daesh (ou Estado Islâmico do Iraque e do Levante, ISIL ou ISIS), é a Stalingrado dos
curdos, armênios, chechenos, alevis (uma versão de sufismo), yázidis, assírios, árabes
(xiitas, sunitas e cristãos), além de turcos de esquerda e uma leva crescente de
voluntários internacionais.
Esta cidade sofre também com a pressão das tropas da Turquia, governada pelo partido
islâmico AKP, e um Estado a trabalhar pela derrubada do regime do clã Assad. O governo de
Ankara está de fato permitindo o livre trânsito de jihadistas, boa parte destes oriundos
de comunidades islamizadas de países europeus. Além do passaporte da União Europeia, uma
leva considerável dos combatentes do integrismo sunita provém de países membros da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Nesta aliança militar, dentre os 28
países membros, apenas a Turquia é de maioria e religião oficial islâmica.
O Estado turco tem autonomia decisória, excedentes de poder e executa uma estratégica
realista que leva a um temível jogo duplo. Publicamente, coordena com os EUA para formar
uma coalizão contra o ISIS. No dia a dia da frente de combate, relutou em liberar seu
território para os reforços de 150 pershmerga (leões do Curdistão, combatentes curdos
leais ao Governo Regional Curdo em território iraquiano), que vindos do cantão de Cizîre
(dupla fronteira com Iraque sob controle curdo e a Turquia), ajudaram a resistência de
Kobanê. Nos bastidores, autoriza a passagem do terror islâmico para atacar as posições da
esquerda pela retaguarda.
Como já foi dito acima, duas são as facções islamistas combatendo a revolução curda. Uma é
o ISIS, liderado pelo auto-proclamado califa Al-Baghdadi, uma organização
religiosa-militar que conta no teatro de operações da Síria com mais de 18.000 combatentes
provindos de mais de 90 países. É revoltante o papel da Turquia na luta contra Rojava.
Outra é o braço oficial da Al-Qaeda na região, a Frente Al Nusra. Para Erdogan e seus
correligionários, é preferível manobrar o terror sunita a tolerar a autonomia de Rojava e
sua constituição pluri-étnica e com experimentos de democracia direta e semi-direta. Como
o Exército Livre da Síria (FSA) assinou uma trégua com o YPG/YPJ (forças de autodefesa de
Rojava), logo o antigo braço satélite de Ankara diminuiu sua capacidade de operar como
satélite do gabinete de Erdogan. Assim, o islamismo moderado do AKP, tolerante com o
Ocidente, pode reforçar o Islã integrista e totalitário do ISIS. A meta é combater a
esquerda curda e seus aliados multiconfessionais.
O custo político-ideológico da unidade curda
A esquerda curda precisa garantir um corredor e santuário de reabastecimento para o front
em Kobanê. Este terreno seguro é o território controlado pelo KRG. Assim, tal dependência
pode implicar na possibilidade de assimilação de Rojava dentro da dinâmica pró-Ocidental
do gabinete do premiê Nerchevan Barzani. Vale lembrar que Barzani é um aliado de Israel e
assinou uma série de contratos com petrolíferas ocidentais, tendo uma excelente relação
com os Estados Unidos (vistos nesta zona como libertadores da ditadura de Saddam Hussein).
O temor não precisa ser exagerado, mas cabe um debate sincero sobre o nacionalismo curdo e
a possível unidade com o governo liberal do KRG. Independente destas variáveis
pró-liberais, as possibilidades estão realmente abertas, desde que o YPG/YPJ/HPG vençam o
ISIS no front em Kobanê.
O que está em jogo é o redesenho da geopolítica do petróleo e a formação de uma nova
sociedade. Não por acaso estamos diante de um silêncio cruel. “Not a single word “- nem
uma única palavra. Se tomarmos como medida da preocupação dos EUA a linha editorial da CNN
e seus vínculos com o Partido Democrata, se refere a Revolução de Rojava como a frente de
batalha dos curdos sírios. Não há nenhuma referência ao PYD, ao YPG como uma força
beligerante de uma outra forma de vida em sociedade e menos ainda uma referência ao
Confederalismo Democrático. Trata-se de cruel silenciamento e ocultamento diante dos olhos
do mundo. O discurso é que não haveria um parceiro confiável, logo o Ocidente deveria
deixar que os Estados islamizados (Irã, Turquia e Arábia Saudita) tomem sua própria
iniciativa. Considerando que a Turquia é parte da OTAN, está aí o aliado preferencial. E,
para Ankara – nas regras duras do realismo geopolítico - não haveria diferença substantiva
entre o PKK e o ISIS, por mais absurdo que isto possa parecer.
Qualquer semelhança de expectativa com a Revolução e Guerra Civil Espanhola não é nenhuma
coincidência.
http://www.anarkismo.net/article/27697
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