(pt) Apoio Mútuo - Revista anarcosindicalista #2 ... E atingem-se os pontos de ruptura
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Quinta-Feira, 21 de Fevereiro de 2013 - 16:30:51 CET
Eassim foi: a austeridade para combater a dívida produziu mais dívida e háde
continuar a fazê lo, visto que ainda há muito que caminhar até se chegar a esse ponto,
cada vez mais semelhante a uma linha do horizonte, onde finalmente se obtém um excedente
orçamental. É apenas a partir desse momento que a dívida começa realmente a ser paga e,
para cortar pelo menos ao meio, como o pacto orçamen tal de Bruxelas prevê, uma dívida
pública superior (120%) à totalidade da riqueza produzida neste país durante um ano, será
necessário que o Estado se mantenha em austeridade durante muito tempo. Portanto, mais,
muito mais austeridade e talvez durante décadas. Ou isso, ou o cancelamento ou recom pra
da dívida. Ou, como Portugal já é a Grécia, as duas coisas simultaneamente.
A armadilha institucional onde a
burguesia portuguesa se prendeu, de
sua muito livre e espontânea vontade,
deixou fora do alcance do Estado os ar-
tifícios habituais para a redução do dé-
fice, nomeadamente a desvalorização
da moeda – cujo emprego, como a es-
querda esquece constantemente, acaba-
ria por repartir uma proporção nada
negligenciável dos custos do ajusta-
mento pela classe trabalhadora, ao de-
vorarlhe os salários reais – e forçando-
o a colocarse à disposição dos chama-
dos mercados financeiros, visto o finan-
ciamento junto do Banco Central Euro-
peu, na prática pura emissão monetá-
ria, também lhe estar estatutariamente
interdito. Mas, em função do desempe-
nho medíocre do capitalismo português
e visto que a dívida do Estado sobe con-
tinuamente desde há décadas, começa-
ram a ser exigidas taxas de juro cada
vez mais elevadas, e, como isso não bas-
tasse, os bancos portugueses, os mais
«alavancados» de toda a Europa, tam-
bém começaram a ser atacados pelas
célebres agências de rating, acabando
por empurrar definitivamente o Estado
para o resgate.
Possivelmente, se o problema se ti-
vesse circunscrito à Grécia, nada teria
impedido a Troika de continuar a aper-
tar o torniquete até o paciente sucum-
bir, mas a crise alastrouse. Para a Ir-
landa e Portugal primeiro e, posterior-
mente, para a Espanha e até a Itália.
Nestas condições, impôsse outro trata-
mento que não a sangria, porque todo a
saída real para a crise passa por o capi-
talismo alemão entender que, ao fim e
ao cabo, participar no Euro significa
também participar nas perdas. Mas a
burguesia alemã resiste, visto ser a
principal beneficiária do sistema vigen-
te, e resistirá enquanto lhe for possível.
Tornase inclusivamente duvidoso acre-
ditar que ela aceite fazer, à escala euro-
peia, aquilo que a burguesia catalã já
não quer fazer à escala espanhola.
Até à data, não andámos tanto a
sentir os efeitos da presença da Troika,
quanto os dos projectos de engenharia
social da direita coligada, mas o mo-
mento em que a Troika tinha que come-
çar a fazerse sentir como algo mais do
que uma espectadora parece ter chega-
do. Porque, após a tentativa gorada de
aumento na TSU e o fiasco nas contas
públicas, o Governo teve que fazer as
suas intenções passarem para um se-
gundo plano. Houve a pressão da rua,
evidentemente, naquela que foi uma das
maiores manifestações da história re-
cente portuguesa. Mas não apenas: o
consenso no seio da burguesia sobre a
austeridade acabou, porque a economia
mergulhou na maior crise desde 1975.
Para o patronato, impedir medidas que
possam significar um aprofundamento
da crise tornouse uma questão de so-
brevivência. Para a Banca, sobrecarre-
gada de títulos da dívida pública portu-
guesa e a receber uma parcela nada me-
nosprezável da «ajuda» de Bruxelas, a
austeridade pura e simplesmente não é
negociável.
A disputa daria origem a uma muito
mediatizada troca de galhardetes entre
António Borges, verdadeiro «ministro
sem pasta», e diversos representantes
da confederação patronal. Portanto, es-
ta espécie de governo de representação
de todas as classes possidentes, para
onde concorriam todos os interesses e
onde a todos algo se ofereceu, invaria-
velmente à custa dos de baixo, acabou
porque a crise tornouse tão grave que
sobrepôs à guerra da burguesia contra
os trabalhadores a guerra no seio da
própria burguesia, e a instabilidade no
Governo, onde apenas o receio de uma
crise política a somar à crise económica
mantém de pé a actual coligação
PSD/CDS, por entre ameaças de demis-
sões, é o reflexo mais imediato desta si-
tuação.
A baixa produtividade crónica do
capitalismo português, onde as qualifi-
cações dos patrões já são, em média,
inferiores às dos trabalhadores e nove
décimos de todas as empresas têm me-
nos de cinco empregados, já nos ofere-
ceu uma crise de características seme
lhantes há um século atrás. Ainda que
não se possa menosprezar o papel que a
integração europeia teve no declínio da
agricultura portuguesa, importa não es-
quecer que a mesma, entre o minifún-
dio que produzia pouco e o latifúndio
que não produzia nada, era à partida
um alvo fácil. Mesmo a industrialização
foi, em boa medida, produto do afluxo
de capital estrangeiro, com 75% de cer-
tos ramos de actividade nas mãos de
capitais americanos. A indústria autóc-
tone, ou dependia dos mercados prote-
gidos das colónias, ou das subvenções e
condições especiais oferecidas pelo Es
tado fascista, sem as quais Champali-
maud jamais teria conseguido montar a
sua Siderurgia, ou ainda de taxas de ex-
ploração só possíveis mediante uma re-
pressão sem piedade ao movimento
operário. Eliminados esses factores, não
podia ficar muito de pé. Mais tarde, o
projecto de utilizar os trabalhadores
portugueses como fonte de mão-de-
obra barata para o capital estrangeiro
viuse gorado ao surgirem fontes de
mãodeobra mais baratas noutras par-
tes. Inútil culpar por isso a Europa e o
Euro.
A situação grega pode fornecernos
pistas úteis acerca do nosso próprio fu-
turo, com um ano a um ano e meio de
antecipação, mas as analogias têm limi-
tes. Não se imagina que um movimento
fascista de tipo clássico venha a conse-
guir a mesma força em Portugal que a
Aurora Dourada grega, ainda que boa
parte do ímpeto do fascismo seja sim-
plesmente o resultado dos aparelhos
securitários do Estado a empurrarem
por trás. Assistimos nas ruas a um dis-
curso sobre a classe política, a corrup-
ção e a soberania nacional que poderia
ser facilmente instrumentalizado pela
extremadireita, apesar de a esquerda
institucional também estar presente
para cantar em coro e produzir uma li-
teratura abundante onde tenta explicar
toda a situação como o resultado da
promiscuidade entre o poder político e
o económico mas, de Estado para Esta-
do, apenas vemos variar as modalidades
específicas desta «promiscuidade», que não
significa outra coisa senão a unidade da classe
dominante, que não se pode cindir em duas,
uma para a economia e outra para a política, e
argumentos desta ordem não são explicação
para nada.
A aspiração a um Estado burguês sem
burgueses, tutelando um capitalismo onde se
operaria, finalmente, a «justiça na econo-
mia», constitui todo um programa para uma
certa esquerda facilmente identificável, mas
vive de fantasias sobre o que são ou podem
ser o Estado e a Lei. Apesar de nada disto ser
inédito, apetece dizer que falta ainda à es-
querda das ilusões passar por aquele choque
de realidade que é afrontar directamente o
poder da burguesia em vez de apenas falar
sobre fazêlo. A burguesia não se faz obedecer
porque capturou o Estado e esvaziou a De-
mocracia; é a Democracia que, mesmo pre-
tendendo outra coisa, tem que lhe prestar
vassalagem porque a produção social está nas
suas mãos. Os trabalhadores apenas têm uma
palavra a dizer sobre isso na medida em que,
se assim o quiserem, podem fazer com que a
produção se interrompa e, se a força da bur
guesia está já na própria instituição da pro-
priedade privada, a força dos trabalhadores
não é um dado adquirido mas depende da sua
capacidade para agir concertadamente, de
uma capacidade de organização que pode
existir ou não, funcionar melhor ou pior, pelo
que varia bastante.
A exigência de «gente séria» para gover-
nar, que tanto se faz notar nas ruas, adquire
contornos no mínimo conservadores, visto
basearse ainda no apego a um «deve» dis-
tante do «haver». Este movimento de protes-
to revelase profundamente ambivalente, pri-
mário e confuso. Ele significa na prática o
descrédito completo, total, do sistema político
existente e a tendência para o ver substituído
por qualquer coisa de contornos imprecisos,
até para os próprios manifestantes e que, no
futuro, ao clarificarse, terá invariavelmente
que operar uma ruptura no seio daqueles que
ontem, solidariamente, calcaram as ruas, po
larizandoos e atirandoos uns contra os ou-
tros. Porque parte disto desemboca necessa-
riamente no fascismo e tornase necessário
que a outra parte, pelo menos, lhe resista.
JT
Outubro de 201 2
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