(pt) Anarkismo.net: Teoria, Ideologia e Prática política: a Praxis Anarquista by Rafael V. da Silva - Federação Anarquista do Rio de Janeiro
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Quinta-Feira, 29 de Novembro de 2012 - 11:26:08 CET
Este texto é uma versão adaptada do artigo Praxis Anarquista: Teoria, Alienação e
Autonomia, publicado no site Passapalavra e que fora ligeiramente modificado, revisado e
corrigido. Para facilitar a leitura, separamos as duas partes do artigo. Essa separação
foi realizada sob a compreensão de que as duas partes do texto podem ser lidas de maneira
independente sem prejúizo para o entendimento de seus argumentos. ---- Com relação ao
conhecimento- Visto que o ser não se revela a si mesmo senão em dois momentos
indissoluvelmente ligados [...]; que a realidade de um exige essencialmente a presença do
outro; que é tão absurdo isolá-los como tentar reduzi-los, porque, nos dois casos, é negar
a verdade inteira e suprimir a ciência, concluiremos primeiramente que a característica da
ciência é invencivelmente esta: acordo entre a razão e a experiência.
(P-J Proudhon)
A ciência não cria nada, ela só constata e reconhece as criações da vida. E sempre que os
homens da ciência, saindo do seu mundo abstracto, se ocupam da criação viva no mundo real,
tudo o que propõem ou criam é pobre e ridiculamente abstracto, sem sangue nem vida,
morrendo à nascença, semelhante ao homunculus criado por Wagner, o discípulo pedante do
imortal doutor Fausto. Disto resulta que a única missão da ciência é esclarecer a vida e
não governá-la.
(Mikhail Bakunin)
É preciso alertar, que o esforço teórico em desenvolver conceitos libertários não se
propõe a dar conta de toda a realidade, o que de fato, acredito ser impossível, não por
uma “deficiência temporária do saber” (CASTORIADIS, 1986: 96), mas porque não podemos
jamais reduzir o real a uma ordem racional pré-constituída. O real não é um “artefato
estável, limitado e morto” (ibid). Esta percepção sobre o real, enquanto um espaço de
vida, e que, portanto, escapa incansavelmente a teoria, fora muito bem compreendida por
grande parte dos anarquistas [1]; a ciência, dizia Bakunin, “só trabalha com sombras... A
realidade viva escapa-lhe, e só se mostra à vida” (BAKUNIN, 1975: 42). Este fato, nunca
fez com que os anarquistas rejeitassem os esforços teóricos, mas compreendessem que a
modificação da realidade não passa pela proposta da teoria total, que tudo abarcaria; que
tudo compreenderia. A ciência inclui o pensamento da realidade, não a realidade em si
mesma; o pensamento da vida, não a vida...” (Idem: 44).
A proposta da teoria total é uma quimera, mas isto não significa que devemos abandonar [2]
o esforço teórico, e muito menos a prática política. Isto porque a prática política, no
que diz respeito aos anarquistas visa transformação [3] , e toda transformação também
supõe elucidação e compreensão da realidade; portanto, prática e teoria, só podem ser
compreendidas numa relação completamente indissociável, é o que se pode chamar de praxis.
“Chamamos de praxis este fazer, no qual o outro ou os outros são visados como seres
autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria
autonomia.” (CASTORIADIS, 1986: 94)
A praxis supõe um saber e um fazer que visem autonomia. Sobre este fazer em sua forma
específica, atribuo o sinônimo prática política, que apesar de não precisar de uma teoria
total, se, se pretende eficaz necessita sim, de uma atividade teórica. Ambas, atividade
teórica e prática política estão intimamente relacionadas e na práxis se articulam.
Concordo com Castoriadis quando afirma que “A teoria como tal é um fazer, a tentativa
sempre incerta de realizar o projeto de uma elucidação do mundo” (CASTORIADIS, 1986: 93),
ressalta o caráter sempre provisório da teoria e que deste modo, reconhece suas
limitações. Do ponto de vista anarquista:
“O nosso Cristo distingue-se do Cristo protestante e cristão no seguinte: este último é um
ser pessoal e o nosso é impessoal; o Cristo cristão, já realizado num passado eterno,
apresenta-se como um ser perfeito, enquanto que a realização e a perfeição do nosso
Cristo, da ciência, dar-se-á no futuro: o que equivale a dizer que nunca se realizará.
[...]
O nosso Cristo ficará pois eternamente incompleto, o que deve abater muito o orgulho dos
seus representantes creditados entre nós.”
(BAKUNIN, 1975: 57-58)
“Na ciência, as teorias, sempre hipotéticas e provisórias, constituem um meio cômodo para
reagrupar e vincular fatos conhecidos, e um instrumento útil para a investigação, o
descobrimento e a interpretação de fatos novos: mais não são a verdade.”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Umanitá Nova, 27 de abril de 1922.
In: RICHARDS, 2007: 39.)
[...]
“Eu não creio na infabilidade da ciência, nem em sua capacidade de explicar tudo, nem em
sua missão de regular a conduta de homens, como não creio na infabilidade do Papa [...].
Eu só acredito nas coisas que podem se provar; mais sei muito bem que as provas são algo
relativo e podem superar-se e anular-se continuamente mediante outros fatos provados
[...]” [4]
(Ibid. Excerto de Pensiero e Volontá, 15 de setembro de 1924. In: RICHARDS, 2007: 40.)
Assim sendo, é importante também não ir a outro extremo e negar a produção de quaisquer
esforços teóricos, como se estes de nada servissem; isto de fato, é ignorar que toda
alteração da realidade, também pressupõe certa elucidação. A lente “ideológica” não é
suficiente para interpretar e analisar a realidade, o que facilmente redundaria numa
atitude purista, que rapidamente cairia num maniqueísmo de feições pouco enriquecedoras à
atividade política. Ainda que a elucidação teórica da realidade não determine a ação
consciente, ela pode ajudar a orientá-la, o que é fundamental para quaisquer projetos que
se pretendam de longo prazo, como é o caso da estratégia anarquista de transformação social.
“Para entender o que acontece (a conjuntura) é preciso poder pensar corretamente. Pensar
corretamente significa ordenar e tratar adequadamente os dados que se produzem, em
quantidade, sobre a realidade.
Pensar corretamente é a condição indispensável para analisar corretamente o que acontece
em um país em um momento dado da História desse país ou de qualquer outro. Isso exige
instrumentos. Esses instrumentos são os conceitos. Para pensar com coerência é necessário
um conjunto de conceitos coerentemente articulados entre si. Se exige um sistema de
conceitos, uma teoria.” (FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria.)
A importância da teoria, ou já utilizando o conceito aqui desenvolvido, da atividade
teórica, está em fornecer instrumentos adequados, mesmo que estejamos cientes de sua
incerteza, e, portanto, que saibamos conscientemente que ela é provisória para a ação
política em determinado contexto sócio-histórico. É provisória, mas não incoerente, pois
possui seu grau de organização. “Que não haja um saber rigoroso sobre a sociedade não quer
dizer que não haja nenhum saber sobre a sociedade, que se possa dizer qualquer coisa, que
tudo valha”. (CASTORIADIS in VOLKER, 1981: 97). A atividade teórica é aberta, mas não
relativista por “princípio”; relativizo algo para chegar a algum lugar, destruo algo para
construir outra coisa em seu lugar: é o princípio do pensamento aberto.
“O pensamento avança na interrogação sendo a cada vez obrigado a manter provisoriamente um
certo número de coisas, mesmo que seja para recolocá-las em questão em um segundo
movimento. Um pensamento livre ou aberto é aquele que realiza esse movimento; não é uma
liberdade pura, um raio que atravessa o vazio, uma luz que se propaga através do éter, é
uma marcha que a cada vez tem que se apoiar em alguma coisa, tem que orientar-se tanto
pelo que não é ela própria, quanto pelos ‘resultados’ precedentes – mas que pode voltar-se
sobre si mesma, ver-se rediscutir seus pensamentos, etc.”
(ibid: 81).
O fato de não intentar esgotar a totalidade do real em esquemas racionais não significa
afirmar que a atividade teórica esteja completamente desligada dos problemas globais da
sociedade e nem que se furte de pensá-los enquanto uma totalidade, ou seja, enquanto um
conjunto da sociedade instituída; já que ela própria (a atividade teórica) está inserida
neste conjunto. Condenamos um “saber globalizado, no sentido de um saber total ou
absoluto” [5] que se propõe um sistema, mas
“Um pensamento filosófico é um pensamento que necessariamente visa o todo de seu objeto.
Renunciar à ilusão do “sistema” não significa renunciar a pensar o ser, ou o conhecimento
por exemplo. [..]
Visar o conjunto é indispensável quando se pensa a sociedade; é isto o que constitui esse
pensamento. E o mesmo vale quando pensamos a sociedade segundo uma perspectiva política e
não de um ponto de vista teórico. O problema político é o da instituição global da sociedade.
[...]
Temos de ultrapassar a oposição entre a ilusão de um saber global sobre a sociedade e a
ilusão de que poderíamos nos contentar com uma série de disciplinas especializadas e
fragmentárias. O que deve ser destruído é o próprio terreno sobre o qual se ergue essa
posição.”
(CASTORIADIS, 1987: 252-253.)
Quanto mais conectada a prática, mais “realista”, e deste modo, útil e adequada é a
teoria. Quanto mais afastada de uma experiência concreta coletiva, torna-se mais exótica e
incompreensível, assumindo conseqüentemente feições que permanecem no campo do abstrato,
inviabilizando uma análise lúcida da realidade, ou redundando na iconoclastia pela
iconoclastia [6] .
A atividade teórica, portanto, alimenta e é alimentada pela prática, constituindo-a, e
sendo por esta constituída: “Elucidação e transformação do real progridem, na praxis, num
condicionamento recíproco” (CASTORIADIS, 1986: 95). As modificações teóricas e as
correções das análises são, portanto, constantemente modificadas pela prática política,
porque a última instância da praxis é justamente a transformação daquilo que é dado, a
transformação do real: “Para teorizar com eficácia é imprescindível atuar [7] ” (FAU, op.
cit.). Se o real é modificado constantemente pela atividade política, obviamente a teoria
deverá se ajustar e permitir-se modificações. Oxigenando-a, possibilitamos que a atividade
teórica seja um instrumento cada vez mais propositivo para a intervenção concreta na
realidade.
O problema da teoria no movimento revolucionário se deu quando houve a transformação da
atividade teórica em sistema teórico, especificamente pela fantasia do saber absoluto e da
teoria total, que dominou a tradição marxista. Utilizo o termo sistema não no sentido
utilizado pela FAU, como um conjunto mais ou menos coerente de quadros conceituais, mas
sim, no que diz respeito a uma teoria que pretende dar conta, ou esgotar a totalidade do
real. Portanto, reafirmamos que ao não propor tornar-se um sistema, mas uma atividade, a
atividade teórica pretende fornecer possibilidades de elucidação, mas não dar respostas
prévias ou definitivas àqueles elementos que só podem ser dados (emergir) pela praxis e
por sua criação histórica. As especificidades das revoluções ocorridas na histórica
comprovam que a experiência da classe trabalhadora enquanto projeto radical trouxe
elementos novos que não podiam ser previstos e acabaram sendo incorporados à teoria.
Podemos utilizar a teoria para elucidar estes projetos, dar sentido a estes, ou,
(inclusive sentido para a ação contemporânea) organizá-los num quadro conceitual coerente,
mas jamais “explicá-los”, ou reduzi-los a algum grau de determinação.
Quando somos confrontados com a experiência dos zapatistas, o que mais nos chama atenção
não é a maneira com que as “leis” da “história” os empurraram a sair às ruas em 1994 para
combater o NAFTA. As condições econômicas podem até nos ajudar a compreender o que
ocorrera no México, mas tampouco servirão para explicar as novas relações, os paradigmas
quebrados e a emergência de um projeto radical que não é um socialismo requentado, mas
algo essencialmente novo. As condições econômicas não explicam a praxis, pois esta faz
emergir novos elementos, como fora o caso zapatista. E se isto nos anima, o faz justamente
por ser algo novo, não por ser simplesmente original, mas radicalmente novo; não existia e
nem poderia existir anteriormente, justamente por que é fruto da praxis, da criação
histórica, neste caso citado, criação de classe, realizada em determinado período pela
ação de determinados indivíduos organizados coletivamente, e por conseguinte que não
poderia ser prevista ou determinada a priori por “esquematismos”.
Obviamente, toda criação no terreno histórico também pressupõem a relação com velhos
elementos (e no caso do Zapatismo podemos nos referir às tradições milenares, a figura de
Zapata e a cultura radical das comunidades indígenas que já existiam antes da emergência
do fenômeno zapatista); elementos que já existiam, pois obviamente, se toda criação é
histórica, parte de um terreno social (o melhor termo seria social-histórico). Mas o que
caracteriza a criação é justamente esta capacidade de criar novas significações a partir
do que existe, mas sem dúvida, ultrapassando o que existe e criando elementos novos,
elementos, que a teoria é incapaz de prever, mas que a atividade teórica pode ajudar a
elucidar, sem nenhum receio de recorrer a possíveis alterações e modificações de seus
pressupostos conceituais.
Um aspecto da alienação da teoria, portanto, se conforma, quando há sua transformação de
atividade teórica em sistema teórico, sistema que se propõe sempre a reduzir a realidade a
um esquema totalmente racional, portanto possível de ser estritamente delimitado por um
quadro conceitual que obedece a determinadas leis gerais. Isto causa sua autonomização [8]
, transformando-a num sistema que se propõe absoluto, ou se conforma como teoria acabada,
subordinando a ação política ao seu quadro conceitual, mesmo que recorra vez ou outra a
uma relação que se pretenda dialética. Dialética, que confirmada pela prática de vários
grupos de esquerda, assume um sentido cada vez mais envergonhadamente retórico. A
alienação da teoria também causa alienação da prática política, pois esta permanece
subordinada ao que anteriormente criara [9]. A prática torna-se refém da teoria e se
aliena, pois ao invés de buscar a criação de novas estratégias e meios, permanece fiel a
teoria que acreditara “dar conta” de toda a realidade, pelo menos em seus pressupostos
fundamentais. E se há alguém, ou um grupo específico de revolucionários, que detém e
maneja a teoria revolucionária, se este grupo supostamente detém a “chave” do caminho da
revolução, deterá as estratégias corretas para a prática da classe trabalhadora.
“[...] a idéia de que a ação autônoma das massas possa constituir o elemento central da
revolução socialista, aceita ou não, será sempre secundária para um marxista conseqüente –
por não ter interesse verdadeiro, nem fundamentação teórica e filosófica. O marxista sabe
para onde deve ir a história; se a ação autônoma das massas segue nesta direção, ela nada
lhe ensina, se segue para outro lado, é uma má autonomia, ou melhor, não é mais uma
autonomia, posto que se as massas não se dirigem para os objetivos corretos é porque
continuam ainda sob a influência do capitalismo. Quando a verdade foi conquistada, todo o
resto é erro, mas o erro nada significa num universo determinista: o erro é o resultado da
ação do inimigo de classe e do sistema de exploração.” (CASTORIADIS, 1986: 44-45)
A classe permanece então refém destes teóricos [10], desta vanguarda: os únicos que podem
interpretar; revisar e analisar os aspectos teóricos fundamentais que podem prever e
construir os processos revolucionários. O socialismo perde gradativamente seu aspecto
humano e torna-se cada vez mais refém de um discurso e de uma orientação, cujo predomínio
técnico é evidente. A política passa a ser daí em diante, “[...] a aplicação de um saber
adquirido num domínio delimitado e com fins precisos” (Ibid: 86-87), controlada
evidentemente por determinadas vanguardas ou usando eufemismos gramiscinianos,
“intelectuais-orgânicos”. Esta questão de fundo revela a relação problemática que o
marxismo compôs entre ideologia e teoria; especialmente quando intentou transformar o que
era uma aspiração dos trabalhadores (socialismo) em um desdobramento, uma conseqüência
lógica da aplicação de uma técnica revolucionária, possível de ser conduzida corretamente
por um sistema teórico. O marxismo transformou o que seria uma aspiração (ideologia) dos
trabalhadores em uma doutrina, uma suposta “ciência” da revolução [11] , capaz de
compreender não só o funcionamento do sistema capitalista, mas ser uma teoria total que
busca também explicar a história humana e seus acontecimentos, revelando suas leis pelo
chamado materialismo histórico-dialético [12], parte fundamental do socialismo “científico”.
Atentos a isto, muitos militantes anarquistas empreenderam duras críticas a este
procedimento. Estes, no entanto, jamais descartarem a possível utilidade da teoria no
processo de luta.
“O anarquismo é, no entanto, uma aspiração humana, que não se baseia em nenhuma
necessidade real ou suposta da natureza, e que pode realizar-se segundo a vontade humana.
Aproveita os meios que a ciência proporciona ao homem [...] quando estes servem para
ensinar os homens a pensar melhor e mais precisa distinguir com mais precisão o real do
fantástico, mas não se pode o confundir sem cair no absurdo, nem com a ciência nem com
qualquer sistema filosófico [13] .”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de
1925. In: RICHARDS, 2007: 21.)
Já compreendemos que a teoria para os libertários, que aqui por reflexão conceitual chamei
de atividade teórica “[...] aponta para a elaboração de instrumentos conceituais para
pensar rigorosamente e conhecer profundamente a realidade concreta” (FAU. Huerta Grande: a
Importância da Teoria), agora necessitamos precisar o que é possível compreender enquanto
ideologia. Não utilizo o termo ideologia no sentido marxista (falsa consciência).
Entendo-a como um “um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou
sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação” (FARJ, 2008: 17) A ideologia
“[...] é composta de elementos de natureza não científica, que contribuem para dinamizar a
ação, motivando-a, baseada em circunstâncias que, ainda que tendo relação com as condições
objetivas, não derivam dela, no sentido estrito. A ideologia está condicionada pelas
condições objetivas, ainda que não seja determinada mecanicamente por elas.
[...]
A teoria torna precisa, circunstancializa as condicionantes da ação política: a ideologia
motiva-a e a impulsiona, configurando-a em suas metas "ideais" e seu estilo.”
(FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria).
Assim como anteriormente defendi, que para o anarquismo, a prática política é
indissociável da atividade teórica e vice-versa, e que a transformação da ideologia
socialista num sistema teórico (marxismo) subordina e engessa a prática política, concluo
que a atividade teórica sem ideologia também é impensável num projeto que seja
transformador. Castoriadis tem a opinião de que a praxis se articula em torno de três
elementos, o que ele chama de círculo da praxis:
“Tudo isso leva novamente ao que chamo o círculo da praxis. Esse círculo pode ser
definido, como todo círculo que se preza em geometria plana, por três pontos não
colineares. Há uma luta e uma contestação na sociedade; há a interpretação e a elucidação
dessa luta; há a perspectiva e a vontade políticas daquele que elucida e interpreta.”
(CASTORIADIS in VOLKER, 1981: 66.)
O círculo da praxis, que Castoriadis define como luta, interpretação e perspectiva; pode
ser “traduzido” para a “linguagem” anarquista enquanto prática política, atividade teórica
e ideologia [14]. E se o socialismo e a autonomia não são fruto da simples aplicação de um
programa construído pelos especialistas, e que é embasado por um sistema teórico que
“descortinou” as leis de funcionamento da história e da sociedade; somos levados a
compreender, que o socialismo e a autonomia tornam-se frutos da ação e criação da práxis
pela organização da classe. O próprio surgimento do anarquismo comprova esta tese. A
emergência do anarquismo está inscrita no surgimento de novas significações no interior do
movimento operário e não pode ser explicada como conseqüência da simples elaboração de um
sistema teórico ou filosófico, mas de uma praxis em constante movimento e que constituiu a
espinha dorsal da ideologia anarquista.
“O anarquismo na sua gênese, nas suas aspirações, em seus métodos de luta, não tem nenhum
vínculo com qualquer sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as
injustiças sociais. [15]
Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que estavam
forçados a viver, e cuja sensibilidade se viu ofendida pela dor dos demais como se ela
fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte da dor humana
não é conseqüência fatal das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas deriva, por
outro lado, de feitos sociais dependentes da vontade humana e elimináveis por obra do
homem, abriu-se então a via que deveria conduzir ao anarquismo.”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de
1925. In: RICHARDS, 2007: 21.)
Ao afirmar que a ideologia anarquista nasceu de uma prática dos trabalhadores, Malatesta
também assinala que o anarquismo possui uma conexão direta com a ação política, com a
transformação social, e por isto, mediação permanente com a experiência da classe
trabalhadora, e sua criação histórica. Prática política, atividade teórica e ideologia
[16] no anarquismo, se articulam destarte, de maneira indissociável.
Concluímos que qualquer sistema teórico que pretenda subordinar a experiência do conjunto
dos oprimidos e das oprimidas está completamente equivocado, porque é da experiência da
classe, que surgem os únicos elementos e significações capazes de efetivar a reconstrução
radical da sociedade capitalista por um processo revolucionário, processo que acredito ter
como objetivos finalistas se, pretende-se eficaz, a superação da alienação e a construção
da autonomia, o que os anarquistas há muito tempo chamam apenas, de socialismo libertário.
Notas
[1] A frase completa de Bakunin, e que nos esclarece sua visão acerca do real é esta: “A
ciência, que só se relaciona com o que é exprimível e constante, isto é, com as
generalidades mais ou menos desenvolvidas e determinadas, perde aqui o seu latim e baixa a
sua bandeira diante da vida, pois só ela se relaciona com a parte viva e sensível,
inacessível e inefável, das coisas. Tal é o real e, pode-se dizer, o único limite da
ciência, um limite verdadeiramente intransponível... A ciência só trabalha com sombras...
A realidade viva escapa-lhe, e só se mostra à vida, que, sendo também ela fugitiva e
passageira, pode discernir e discerne efetivamente. (BAKUNIN, 1975: 42-43)
[2] Castoriadis neste ponto é bem elucidativo: “Para alguns, a crítica das pretensas
certezas absolutas do marxismo é interessante, talvez até verdadeira – porém inaceitável,
porque destruiria o movimento revolucionário. Como é necessário mantê-lo, é preciso
conservar, a todo custo, a teoria, aceitando abater suas pretensões e exigências ou, se
necessário, prontos para fechar os olhos. Para outros, já que uma teoria total não pode
existir, é necessário abandonar o projeto revolucionário, a menos que seja colocado em
plena condição com seu conteúdo, como vontade cega de transformar, a todo custo, uma coisa
que não conhecemos em outra que conhecemos menos ainda. Nos dois casos, o postulado
implícito é o mesmo: sem teoria total, não pode haver ação consciente. Nos dois casos, a
fantasia do saber absoluto permanece soberana. E nos dois casos, a inversão irônica de
valores se produz.” (CASTORIADIS, 1986: 90).
[3] Pois nem toda prática política visa transformação. E há práticas políticas que visam
transformações, mas não visam a autonomia. Podemos transformar um governo mais ou menos
democrático em um governo autocrático ou pior, em um governo de feições mais autoritárias.
Há neste ponto transformação, mas uma transformação que não visa autonomia.
[4] Segue o texto original. “En La ciência, las teorias, siempre hipotéticas y
provisórias, constituyen um médio cômodo para reagrupar y vincular los hechos conocidos, y
um instrumento útil para la investigación, el descubrimiento Y la interpretación de hechos
nuevos: pero no son la verdade. [...] Yo no creo em la infabilidad de la ciencia, ni em su
capacidad de explicarlo todo, ni em su misión de regular la conducta de los hombres, como
no creo en la infabilidadel Papa [...] Yo sólo creo em las cosas que pueden probarse; pero
sé muy bien que las pruebas son algo relativo y pueden superarse y anularse continuamente
mediante otros hechos probados [...].
[5] CASTORIADIS, 1987: 252-253.
[6] Iconoclastia que se normatiza como uma estratégia de evasão permanente.
[7] A separação entre fazer e pensar é o aspecto central das “doenças que caracterizam o
que Maurício Tragtenberg chamava de “delinqüência acadêmica”. A absurda separação entre
fazer e pensar, é a normatividade heteronômica da academia e o esvaziamento da teoria.
[8] Neste caso específico, utilizo a palavra autonomia no sentido de deslocamento, separação.
[9] Que é a subordinação da sociedade às instituições que ela mesmo criara.
[10] “E, se o socialismo é uma verdade científica à qual têm acesso os especialistas
através de sua elaboração teórica, disso se segue que a função do partido revolucionário
seria a de importar o socialismo no proletariado. Esse, com efeito, não poderia chegar ao
socialismo a partir de sua própria experiência; no máximo, poderia reconhecer no partido
que encarna essa verdade o representante dos interesses gerais da humanidade – e apoiá-lo.
[...] O partido deteria a verdade sobre o socialismo, já que detém a única teoria capaz de
levar até ele. Portanto, ele é, de direito, a direção do proletariado; e deve tornar-se
tal também de fato, já que a decisão pode pertencer apenas aos especialistas da ciência da
revolução. (CASTORIADIS, 1985: 163-164).
[11] Sobre isto Malatesta parece conveniente. “Portanto, não somos anarquistas porque a
ciência nos diz que o sejamos; o somos, ao contrário, por outras razões, porque queremos
que todos possam gozar dos benefícios e das alegrias que a ciência procura. (tradução
minha)” Segue o original: Por lo tanto, no somos anarquistas porque la ciencia nos diga
que lo seamos; lo somos, en cambio, por otras razones, porque queremos que todos puedan
gozar de las ventajas y las alegrías que la ciencia procura. (MALATESTA in VERNON, 2007: 41).
[12] A concepção materialista-histórica sustentada pelo marxismo é insustentável segundo
Castoriadis por que: “– Faz do desenvolvimento da técnica o motor da história ‘em última
análise’, atribuindo-lhe uma evolução autônoma e uma significação fechada e bem definida.
– Tenta submeter o conjunto da história a categorias que só tem sentido para a sociedade
capitalista desenvolvida e cuja aplicação às formas precedentes da vida social coloca,
mais do que resolve, problemas. – é baseada no postulado velado de uma natureza humana
essencialmente inalterável, cuja motivação predominante seria a motivação econômica. Cf.
CASTORIADIS, 1986: pp. 41.
[13] O original é: “El anarquismo es, en cambio, una aspiración humana, que no se funda
sobre ninguna necesidad natural verdadera o supuesta, y qye podrá realizarse según la
voluntad humana. Aprovecha los medios que la ciencia proporciona al hombre [...] cuando
éstos sirvan para enseñar a los hombres a razonar mejor y a distinguir con más precisión
lo real de lo fantástico; pero no se lo puede confundir sin caer en el absurdo, ni con la
ciencia ni con ningún sistema filosófico.” A tentativa de transformar o anarquismo numa
ciência também fora criticada por Malatesta.
[14] Aqui vale um adendo oportuno. Seria mais adequado dizer que a ideologia anarquista
supõe um horizonte revolucionário (uma perspectiva, no sentido Castoriadiano) mais ou
menos sistematizado em torno de referências comuns que a constituem enquanto um conjunto
de idéias, motivações, etc, mas seria absurdo reduzir a ideologia anarquista à apenas um
simples horizonte futuro (fins - a anarquia). É preciso compreendê-la enquanto uma
dimensão de práxis (meios, métodos, ferramentas - anarquismo) que conduzem ou se orientam
à estes fins (e portanto, possuem relação direta com a prática política). É impossível
compreender a ideologia anarquista sem compreendê-la enquanto mediada pelos outros
componentes do círculo da praxis. O anarquismo em diversas análises fora compreendido como
simples negação do Estado. Mas o anarquismo é mais complexo do que uma simples negação. O
anarquismo também supõe um conjunto de métodos, ferramentas e estratégias revolucionárias
que buscam determinado fim.
[15] Segue o original em espanhol. “El anarquismo em su génesis, sus aspiraciones, suas
métodos de lucha, no tiene ningún vínculo necesario com ningún sistema filosófico. El
anarquismo nació de la rebelión moral contra las injusticias sociales. Cuando aparecerion
hombres que se sintieron sofocados por el ambiente social en que estaban forzados a vivir
y cuya sensibilidad se vio ofendida por el dolor de los demás como si fuera próprio, y
cuando esos hombres se convencieron de que buena parte del dolor humano no ES consecuencia
fatal de leyes naturales o sobrenaturales inexorables, sino que deriva, em cambio, de
hechos sociales dependientes de la voluntad humana y eliminables por obra del hombre,
abrió entoces la via que debía conducir al anarquismo. Errico Malatesta. “Anarquismo y
Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de 1925. In: RICHARDS, 2007: 21
[16] O círculo da práxis de que fala Castoriadis.
REFERÊNCIAS
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Internacional. São Paulo: Editora Imaginário, 2009a.
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__________________. O Conceito de Liberdade – Vol. 3, Porto: Rés Limitada, 1975.
__________________. O Sistema Capitalista. São Paulo: Editora Faísca, 2007.
BERNERI, Camillo. In Socialismo Libertário nº 24 – Ano VII – Trimestre:
Julho/Agosto/Setembro – 2010.
CASTORIADIS, Cornelius. A Experiência do Movimento Operário. São Paulo: Editora
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____________________. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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____________________. Socialismo ou Barbárie: O conteúdo do socialismo. São Paulo: Editora
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Atividade teórica ou sistema teórico?
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